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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - VILA SOCÓ - (10)
A tragédia, 25 anos depois

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Uma das maiores tragédias de Cubatão, senão a maior, foi o incêndio de um oleoduto da Petrobrás que passava sob uma favela, Vila Socó, destruída pelas chamas com a morte de cerca de uma centena de pessoas, em 24/2/1984. Em 25 de fevereiro de 2009, o jornal santista publicou matéria sobre os 25 anos da tragédia (transcrita no site MarciaRosa.com.br - acesso em 19/2/2014:
 

25/02/2009

A tragédia no incêndio da Vila Socó em Cubatão

93 mortes e cicatrizes abertas

Da Redação - por Manuel Alves Fernandes

Na mesma madrugada em que Luiz Inácio da Silva morreu em Natal, Rio Grande do Norte, a 3 mil quilômetros de distância, foliões cantavam, na semana da antevéspera de Carnaval, a marchinha Meu coração está pegando fogo, no baile do Havaí realizado no Ilha Porchat Clube, em São Vicente.

Zero hora e 50 minutos da madrugada: moradores da Vila Socó, nas margens do km 57 da Via Anchieta, em Cubatão, corriam para tentar escapar de um incêndio provocado pelo vazamento de 700 litros de gasolina da tubulação corroída que atravessava o mangue da favela, rumo ao Porto de Santos. Vinte e cinco anos depois, o que restou desses episódios foi a coincidência das duas tragédias, na mesma data e horário, que neste ano cai numa

Quarta-feira de Cinzas. E, também, a impunidade dos autores das causas das mortes. Luiz Inácio da Silva, homônimo do metalúrgico que chegaria à presidente da Republica, foi uma das 19 vítimas fatais de um acidente em Natal, provocado pelo motorista Aluízio Farias, que perdeu o controle do ônibus que dirigia e atropelou componentes do bloco O Cordão do Puxa-Saco.

O episódio, que praticamente pôs fim ao Carnaval de rua em Natal, segundo o jornalista Fred Carvalho, ficou conhecido como "a tragédia do Baldo". Além dos 19 mortos, deixou dezenas de pessoas feridas. Cerca de 5 mil pessoas pulavam Carnaval acompanhando o bloco, no trecho sob o viaduto do Baldo, quando a Avenida José Bernardo passa a se chamar Rio Branco, no Centro de Natal.

FOGO NO DUTO - Vinte e cinco anos depois, Silvana Araujo Santos, hoje secretária de gabinete da prefeita Marcia Rosa, conta que tinha na época 12 anos e seis irmãos. Morava, com os pais, no início da Vila São José, de frente para a Via Anchieta, a poucos metros do local onde irromperia o fogo do incêndio na favela de barracos de madeira sobre o mangue. Os pais vieram de Jacobina, Bahia, tentar uma vida melhor no polo industrial de Cubatão.

"Lembro que na tarde da sexta-feira, todo mundo sentia um forte cheiro de gasolina. Os bombeiros chegaram a ser chamados e orientaram os moradores para tomar cuidado. Havia um vazamento no duto, mas ninguém sabia onde era. Fomos alertados e saímos de casa momentos antes do incêndio. Quando pensamos em voltar, o fogo já havia consumido tudo", narra Silvana.

Nunca se soube ao certo o estopim da tragédia sobre o mangue que, naquele momento, se transformou em um imenso caldeirão com uma camada de gasolina que tomou conta de toda a área sob as palafitas. Sobreviventes da tragédia contam que, nas partes mais rasas, foi possível sair correndo para os pontos onde havia terra, queimando apenas os pés e tornozelos.

O fogo no duto que tinha um furo por onde vazou a gasolina e alimentou a grande chama (até que queimasse todo o combustível), contra a qual lutaram os bombeiros, foi dominado de madrugada, com ajuda do Plano de Auxílio Mútuo das Indústrias.

ODOR DA MORTE - No amanhecer de sábado, os jornalistas - entre os quais me encontrava - se depararam com o saldo dantesco: tocos enegrecidos que haviam sido gente; crianças mortas por asfixia dentro de geladeiras, onde foram colocadas pelos pais na esperança de escapar do incêndio. Casais mortos, abraçados. Uma das vítimas ficou na memória como espécie de símbolo da tragédia, até ser coberta pelo lençol de um bombeiro piedoso. "Estava grávida, exibia na pele retesada o contorno, quase desenho em alto relevo, do feto, morto no seu ventre", relembra o jornalista Luigi Bongiovani. Colados ao seu corpo, por ela abraçados, como uma única massa, dois filhos com cerca de cinco anos.

Essa imagem fez o então governador Franco Montoro quase desmaiar e ser atendido pelos médicos. "Havia também um cheiro único - que nunca mais senti e nem quero. Mas sua lembrança me vem de imediato à menção de Vila Socó", conta a jornalista Katia Giulietti, na época destacada para cobrir o acontecimento. "Esse aniversário deve ser esquecido. Tanto que minhas lembranças daquele dia são vagas. Estava, como tantos repórteres, em busca da confirmação de números. Números de vítimas. Das pessoas carbonizadas. Aquelas coisas retorcidas, que um dia foram vida, mas que ali apenas exalavam um odor forte. Único. Melhor esquecer. Lembrar para quê? Talvez apenas para constatar que, 25 anos depois, as condições de moradia de muitos moradores da Baixada Santista não são diversas daquelas e os riscos permanecem".

CORAÇÃO PEGANDO FOGO - A extensão da tragédia, como sempre ocorre, chamou a atenção, finalmente, das autoridades. A Petrobras trocou todo o sistema de oleoduto, proibiu a construção de barracos sobre a faixa de segurança de passagem da canalização; construiu casas para os sobreviventes e indenizou as vítimas. A Prefeitura aterrou o mangue. A favela foi extinta e, no lugar, surgiu um bairro urbanizado, com 1.253 casas de alvenaria, 4.317 habitantes (segundo censo da Prefeitura), ruas asfaltadas, escola e posto de saúde.

Oficialmente, 93 pessoas morreram, o equivalente ao número de corpos encontrados. Silvana não acredita nesses números. "Havia crianças, bebês e famílias inteiras cujos corpos não foram encontrados. Uma família de vizinhos meus, com sete pessoas, não foi encontrada", cita como exemplo.

Em 25 de fevereiro de 1985, o jornalista José Rodrigues publicou o livro Vila Socó - a tragédia programada, cujo mote era exatamente essa questão. Em prosa e versos, com ilustrações do também jornalista Lauro Freire, a obra foi dedicada "às vítimas da Vila Socó, até as não contadas que desapareceram nas cinzas".

Freire mostra no livro duas realidades, lado a lado: no primeiro quadro, foliões dançando e cantando "Meu coração amanheceu pegando fogo". No segundo quadro, pessoas em meio ao incêndio nos barracos gritando... "fogo... fogo!". Freire e José Rodrigues foram jornalistas de A Tribuna.

CRUZ DE MADEIRA - Os atingidos pelo acidente foram indenizados pela Petrobras e construíram novas casas na própria Vila São José - eles não se referem mais ao local como Vila Socó - ou em outros bairros. Hoje não há mais barracos na Vila, que até mudou de nome. É conhecida oficialmente como Vila São José, com uma paisagem urbana mais agradável e segura.

Quem passa hoje pela Via Anchieta não imagina a proporção da tragédia. Porém, no jardim próximo ao posto da Polícia Rodoviária, uma cruz de madeira se destaca, cercada por um muro onde há uma placa de bronze, com a relação de nomes das vítimas identificadas. De Kátia Cilene da Silva, uma criança; a Manoel José dos Anjos, um trabalhador, segue-se a relação de 89 mortos identificados, dos 93 corpos encontrados. Silvana lamenta que muitos tenham ficado anônimos, calcinados pelo fogo.

PLEBISCITO - A tragédia da Vila Socó ocultou outro acontecimento importante na vida de Cubatão. O incêndio ocorreu no penúltimo dos 17 anos (entre 1968 e 1985) do período em que a Cidade foi considerada pelo Governo Militar como Área de Segurança Nacional, por abrigar o polo industrial. Na época, os eleitores de Cubatão somente podiam eleger vereadores. Movimentos reivindicatórios eram reprimidos, e vários líderes sindicais e políticos foram presos e torturados.

Presidente da Comissão Pró-Emancipação, Adilson Antonio contaria tempos depois que, em fevereiro de 1984, a Associação dos Amigos Pró-Autonomia Política de Cubatão havia promovido um plebiscito, curiosamente apurado no dia 24 desse mesmo mês, amplamente favorável ao retorno do direito dos cubatenses de elegerem seu prefeito. Mas o resultado da consulta popular não foi anunciado por causa da tragédia, que acabaria provocando dois atos que mudaram a vida da Cidade: o lançamento do programa de controle ambiental, pela Cetesb, e o retorno da autonomia política do Município. Ambos em 1985, e determinados pelo então governador Franco Montoro.

IRRESPONSABILIDADE - Nas duas tragédias, a irresponsabilidade dos agentes públicos e autoridades judiciárias chama a atenção. Em Natal, tudo teria começado com um desentendimento entre o motorista e os integrantes da escola de samba. Apressados para ir embora, os passageiros começaram a puxar a campainha do ônibus, o que teria irritado o condutor do veículo. Aluízio saiu em velocidade "desabalada" pelas avenidas Coronel Estevam e Coronel José Bernardo. "Se tiver que morrer, morre todo mundo", gritava.

No trecho sob o viaduto do Baldo, Aluízio bateu a traseira do ônibus, na lateral dianteira de um Fusca. A batida mudou a trajetória do ônibus, jogando-o para cima do bloco, que passava naquele momento do outro lado da avenida. O veículo estava em alta velocidade e atingiu as pessoas num trecho de 86 metros. Aluízio fugiu.

Mas, foi denunciado pelo promotor de Justiça José Maria Alves em 30 de julho de 1984. Segundo Fred Carvalho, autor do artigo aqui citado, publicado no blog Nasemana, em que relembra o fato, "depois de 25 anos, o motorista de ônibus Aluísio Farias Batista, responsável pela tragédia do Baldo, e que jamais foi localizado, vai a júri em abril".

Na Vila Socó, 25 anos depois, a Justiça ainda não apontou os responsáveis pelo vazamento no duto corroído. A tubulação do oleoduto adquirido pela Petrobras à antiga São Paulo Railway estava podre, cheio de buracos, vazando. Exames periciais, solicitados posteriormente pelo Ministério Público e constatados pelo perito Jorge Moreira, comprovaram o apodrecimento e a corrosão.

SABOR AMARGO - Hoje, funciona na área um sistema de dutos enterrados e sob controle. Curiosamente, o pai de Silvana decidiu aceitar uma indenização e sair da vila, a exemplo do que fizeram muitos antigos moradores, hoje residentes no Parque das Bandeiras, em São Vicente. Fugiram de Cubatão. O pai de Silvana, depois de dois meses em alojamentos coletivos, comprou uma casa com a indenização, na Vila Nova.

Foram dias duros para a família, que levou dois anos para se recuperar. Ironia do destino, Silvana conta que nos fundos da nova casa passa o oleoduto. "Acho que foi feito muito pouco pelas vítimas. O Poder Público se omitiu, os antigos moradores perderam a identidade e a vizinhança. Ficou uma lembrança de sabor amargo".

DESCULPE ERRAMOS - A Tribuna - AO CONTRÁRIO DO QUE FOI PUBLICADO NESTA EDIÇÃO, A QUANTIDADE DE GASOLINA QUEIMADA DURANTE A TRAGÉDIA DA VILA SOCÓ, FOI DE 700 MIL LITROS E NÃO 700 LITROS.

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