O incêndio na Vila Socó, em 24 de fevereiro de 1984, emocionou Mendes,
que compôs a música "Vila Socó Meu Amor" em 15 minutos
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Cubatão em verso, melodia e lágrimas
Gilberto Mendes compôs sobre a Cidade
Thiago Macedo
Da Redação
São poucas as pessoas que conseguem transformar tragédias em belas obras. São poucas as pessoas que comovem com denúncias. E o compositor santista
Gilberto Mendes é uma delas. Em 89 anos de vida e quase que a totalidade dedicada à música, Cubatão cruzou sua brilhante carreira em, pelo menos, duas ocasiões.
Era 24 de fevereiro de 1984, quando a Vila Socó começou a arder em chamas. A favela onde viviam operários do Polo Industrial, erguida sobre o mangue e dutos de gasolina da Petrobrás, queimou até não
sobrar nada. Oficialmente, dizem que pouco mais de 90 pessoas morreram queimadas. Relatos de moradores e de pessoas que trabalharam no salvamento das famílias dão conta de que esse número é muito maior: centenas de mortos.
Na época, um dos veículos de comunicação anunciou assim a tragédia: "Viveram como bichos, morreram como bichos". O fato comoveu o Brasil e não passou impune pela mente e mãos do músico santista. Nos dias seguintes, Gilberto Mendes compôs Vila Socó Meu Amor.
Uma obra curta, criada para o canto coral, mas que faz uma crítica contundente à exploração do trabalhador na construção e funcionamento do maior polo industrial da América Latina.
A letra – uma das duas que o compositor escreveu em toda carreira – diz o seguinte: Não devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó,
transformados em cinzas, lixo em pó. A tragédia da Vila Socó mostra como o trabalhador é explorado, esmagado sem nenhum dó.
Reproduzida para aqueles que conheceram bem a tragédia, a música emociona muito. Não é preciso explicar. Ela reedita um episódio trágico de forma direta e verdadeira.
"Foi um acidente que comoveu a todos. A cidade toda. E eu estava no piano e me deu uma vontade de fazer uma homenagem àqueles mortos. Fiz aquilo
em 15 minutos", contou ele.
Comunista por formação, ele diz que segue acreditando no socialismo, mas à sua maneira. Questionado se o trabalhador continua sendo explorado e maltratado sem nenhum dó, ele responde: "Acho que sim. Talvez nem tanto como no passado, mas continua", A contestação é de quem, mesmo beirando os 90 anos (completa em 10 de outubro de 2012),
continua atento às questões sociais brasileiras.
Para Gilberto Mendes, o comunismo, tal como foi, acabou. "Não só acabou, como deu com os burros n'água. O que eu aprendi foi o seguinte: não
adianta você ter a melhor das ideias, o melhor dos propósitos, os melhores planos sob uma ditadura. O passo imediato de uma ditadura é a corrupção".
Tango em Parisi – Três anos depois da Vila Socó, Cubatão voltaria a ilustrar mais uma de suas obras. Mais uma vez ele usou outro triste símbolo do desenvolvimentismo desenfreado e sem
planejamento do Município. Compôs Último Tango em Vila Parisi, que é uma peça que mistura música e encenação teatral.
A Vila Parisi também foi um bairro miserável habitado por operários do polo no coração das indústrias. Foi por fatos ocorridos lá, que Cubatão
chamou a atenção do mundo com o surgimento de casos de anencefalia devido à poluição.
Gilberto Mendes conta que, claramente, escolheu o nome dessa peça parodiando o clássico filme franco-italiano Último Tango em Paris, de 1972, do diretor Bernardo Bertolucci.
Porém, na peça ele introduziu um outro elemento. No início da apresentação, o maestro declama um poema do poeta pernambucano Manuel Bandeira, Pneumotórax, onde um enfermo manda chamar o médico
e fica constatado que o seu problema está nos pulmões.
O paciente pergunta: "Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?". E o médico
responde: "Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".
O compositor explica sua intenção. "O paralelo é o seguinte: naquela época Cubatão estava muito ruim. E eu quis dizer assim, que a situação de
Cubatão não tinha jeito. O jeito era dançar um tango argentino".
Apesar dessas obras, Gilberto Mendes afirma que não costuma fazer música politicamente engajada. Em um texto seu de 1990 para a revista cultural santista Artéria, ele escreveu: "Não sou propriamente um compositor de música politicamente engajada, como o foram, por exemplo, Hanns Eisler, Cornelius Cardew. Mas sou uma pessoa politicamente engajada. E minha música, sempre que tomo uma
posição política, reflete em parte essa atitude". Não é difícil de constatar.
Compositor santista: "sou uma pessoa politicamente engajada"
Foto: arquivo, publicada com a matéria
Poesia também retrata tragédia
Vinte e quatro anos depois da tragédia da Vila Socó, em 1984, mais um artista relembra o fato de forma impactante. Desta vez, ao invés de música, o fim trágico daquele povo é transformado em versos
de uma poesia escrita pelo poeta radicado em Cubatão Marcelo Ariel.
Em Caranguejos Aplaudem Nagasaki, Ariel, como ele diz na própria obra, ergue um memorial a nós mesmos, "vítimas vivas do tempo", já que a Vila Socó havia estacionado na História.
Não por acaso, o poema é dedicado a Gilberto Mendes, no livro chamado Tratado dos Anjos Afogados (editora Letra Selvagem).
Em uma republicação do mesmo poema na Internet, Marcelo Ariel também dedica o texto ao jornalista, advogado e ex-vereador de Cubatão Dojival Vieira, que foi um dos principais líderes na luta por
moradias dignas para as famílias que sobreviveram ao fogo.
Caranguejos Aplaudem Nagasaki foi publicado em 2008, mas Ariel conta que ele foi escrito em cerca de dez anos. Naquela época, ele era um adolescente vivendo em Cubatão.
No mesmo Tratado dos Anjos Afogados, uma outra poesia faz referência direta ao episódio: Vila Socó Libertada, onde ele retrata o dia seguinte ao incêndio e diz em um dos versos que a "quietude neutra avalia o inconsolável". |