Tragédia de Vila Socó, uma triste lembrança
Manuel Alves Fernandes
Da Sucursal de Cubatão
Negligência, imprudência e imperícia. Estas três
palavras, que costumam ser consideradas como condições alarmantes e de alto risco pelas normas mais sérias de segurança, talvez expliquem a tragédia
da Vila Socó, em Cubatão, e, por analogia, também o incêndio da Vila Fátima, em São Vicente.
Houve negligência das autoridades desde as 18 horas do dia 23 de fevereiro de 1984, em
Cubatão, já que elas nada fizeram quando os moradores da Favela de Vila Socó, situada nas margens pantanosas entre os KMs 56 e 59 da Via Anchieta,
se queixaram do forte cheiro de gasolina que emanava do mangue. Afinal, era apenas mais um cheiro que saía dessas águas.
Houve imprudência dessas mesmas autoridades - dentre elas dirigentes da Petrobrás que
seriam posteriormente condenados pela Justiça - que se faziam de surdas às advertências de dirigentes políticos e representantes dos moradores, de
que o oleoduto adquirido da antiga São Paulo Railway estava podre, cheio de buracos, vazando. Exames periciais,
solicitados posteriormente pelo Ministério Público e constatados pelo perito Jorge Moreira, comprovaram o apodrecimento e as falhas da proteção
catódica que a Petrobrás alegava existir nessa canalização.
Palafitas - Houve imperícia, inabilidade das autoridades municipais e estaduais
da época, para resolver os problemas habitacionais decorrentes da extrema penúria social de moradores obrigados a viver, nos tempos modernos, em
casebres típicos da segunda fase da pré-história (na primeira, os homens viviam em cavernas), palafitas erguidas sobre estacas fincadas no mangue.
Na madrugada de 24 de fevereiro, enquanto se comemorava o ante-sábado de Carnaval
cantando a marchinha Meu Coração Amanheceu Pegando Fogo (gravada por Gal Costa) em um dos clubes da orla, 93 moradores da Vila Socó morriam
no incêndio provocado por algum fósforo, vela ou cigarro inadvertidamente lançados (nunca se soube ao certo a origem do estopim da tragédia) sobre o
mangue que, naquele momento, era na realidade um imenso caldeirão com uma camada de gasolina que tomou conta de toda a área das palafitas.
Sobreviventes da tragédia contam que, nas partes mais rasas, foi possível sair
correndo para os pontos onde havia terra, queimando apenas os pés e tornozelos. O ator de teatro amador Lourimar Vieira morava em um barraco a menos
de 30 metros do ponto onde o duto tinha um furo por onde vazou gasolina e alimentou a grande chama (até que queimasse todo o combustível), contra a
qual lutaram os bombeiros, durante toda a madrugada.
Mortos - Lourimar saiu correndo e só parou na Igreja Matriz, três quilômetros
adiante, para rezar porque tinham conseguido salvar sua mãe.
Pela manhã, os jornalistas se depararam com um saldo dantesco: cerca de 300 barracos
queimados. Tocos enegrecidos que haviam sido gente; crianças mortas por asfixia dentro de geladeiras, onde foram colocadas pelos pais na esperança
de escapar do incêndio. Casais mortos, abraçados. Uma das vítimas ficou na memória dos jornalistas como uma espécie de símbolo da tragédia, até ser
coberta pelo lençol de um bombeiro piedoso: grávida, exibia na pele retesada o contorno, quase desenho em alto relevo, do feto, morto no seu ventre.
Colados ao seu corpo, por ela abraçados, como uma única massa, dois filhos com cerca
de cinco anos. Essa imagem fez o então governador Franco Montoro sentir-se mal, quase desmaiar e ser atendido pelos médicos.
A extensão da tragédia, como sempre ocorre, chamou a atenção, finalmente, das
autoridades. A Petrobrás trocou todo o sistema de oleoduto, proibiu a construção de barracos sobre a faixa de segurança de passagem da canalização;
construiu nove casas para os sobreviventes e indenizou as vítimas. A Prefeitura aterrou o mangue.
Cruzeiro - Hoje não há mais barracos na Vila, que até mudou de nome. É
conhecida oficialmente como Vila São José.
A tragédia também contribuiu para que Montoro exigisse da Cetesb e das indústrias a
aplicação de um rigoroso plano de controle ambiental e de segurança industrial em Cubatão.
Hoje, 14 anos depois, a realidade da vila é bem mais agradável e segura. Quem passa
pela Via Anchieta não imagina a proporção da tragédia. Porém, no jardim próximo ao posto da Polícia Rodoviária,
uma cruz de madeira se destaca, cercada por um muro onde há uma placa de bronze, com a seguinte inscrição:
Cruzeiro da Vila São José - da vontade política da administração municipal e da
determinação desta comunidade, a Vila Socó, de palafitas e insegurança, transformou-se na Vila São José. Nossas homenagens àqueles que, em 24 de
fevereiro de 1984, com suas vidas, fizeram renascer a fé e a esperança de uma vida melhor.
De Kátia Cilene da Silva, uma criança; a Manoel José dos Anjos, um trabalhador,
segue-se a relação de 89 mortos. Porém, oficialmente, registraram-se 94: muitos não foram identificados, ficaram anônimos, calcinados pelo fogo. |