Foto: Du Zuppani, publicada com a matéria, páginas 10 e 11
Um difícil começo
Chegar a Itatinga não era nada fácil. Mas, permanecer por lá era muito pior
Mata fechada, vastos manguezais, um dos maiores índices pluviométricos do Brasil e o forte calor tropical proporcionavam o ambiente
propício para uma série de vetores, entre eles o mosquito transmissor da malária. Esse talvez tenha sido o maior obstáculo para a conclusão da Usina.
Um a um, todos os operários que chegavam às encostas da Serra do Mar tombavam doentes. E no seu auge, mais de 3 mil trabalhadores viviam em Itatinga.
Foi nesse cenário que surgiu a figura ainda quase anônima do médico Carlos Chagas. Vendo o sonho se transformar em pesadelo, a direção da Companhia Docas de Santos recorreu a Oswaldo Cruz, então
diretor-geral da Saúde Pública, no Rio de Janeiro. Cruz, então, encarrega Chagas da tarefa.
Incumbido por Oswaldo Cruz, Carlos Chagas desenvolve um método de combate ao mosquito transmissor da malária que passaria a ser usado em campanhas de profilaxia por todo o mundo
Foto publicada com a matéria, página 12
Modo de vida - Àquela altura, já se conhecia bem o mecanismo de transmissão da malária, e o jovem médico logo elaborou um plano que consistia basicamente em combater o mosquito, o que foi
feito com grande êxito: em três meses a epidemia estava praticamente controlada. Mas não foi nada fácil.
Tudo começou com a construção da ferrovia de Itatinga, aproveitando as locomotivas alemãs usadas no cais do porto. Iniciada em 1905 e concluída em meados do ano seguinte, com 7.250 metros, a linha
férrea corria paralela às linhas de transmissão.
Porém, entre dezembro de 1904 e maio de 1905, a malária praticamente paralisou as obras. Chagas trabalhou de dezembro de 1905 a março de 1906, período em que a ferrovia foi concluída.
Ele investigou inicialmente as condições epidemiológicas da região - as espécies de mosquitos ali existentes, as características hidrográficas dos depósitos larvários e suas relações de distância com
as habitações e o modo de vida e de trabalho dos operários.
Durante as obras, os funcionários residiam em grandes barracões coletivos, sem qualquer proteção contra vetores. Chagas, então, impõe um polêmico confinamento dos operários
Foto publicada com a matéria, página 12
Nenhum efeito - Era um cotidiano extremamente penoso. Ainda sem as casas que viriam a caracterizar a Vila, os funcionários residiam em grandes barracões, sem qualquer proteção contra os
mosquitos. Na época das chuvas, viviam cercados em um viveiro inesgotável de mosquitos.
Chagas logo percebeu que não havia processo eficaz de proteção individual: nada fazia efeito concreto, nem fumo do tabaco para espantar os mosquitos, nem tampouco untar a pele com óleos de cheiro
ativo, pomadas supostamente inseticidas, substâncias amargas ou loções de petróleo, eucalipto, menta etc. Para piorar, as ações propostas pela literatura científica simplesmente não podiam ser aplicadas em Itatinga.
O receituário da época indicava o uso de véus e cortinados. Entretanto, esse tipo de proteção era facilmente atravessado pela tromba dos mosquitos. Para ser realmente eficaz, as pessoas teriam de
usar roupas espessas. Chagas bem que tentou esse método, mas a proteção era insuportável no úmido e quente clima local. A saída encontrada gerou polêmica e certa resistência.
Chagas determinou o confinamento dos operários em suas habitações coletivas, nas quais mandou instalar telas. Os operários foram divididos em dois grupos, os infectados e os sadios. Estes deveriam se
recolher aos barracões antes do crepúsculo da tarde e deixá-los somente após o amanhecer - período de maior atividade dos mosquitos.
Domínio da prática - Os documentos não permitem saber quanto a resistência a essa medida pesou na decisão de Chagas de abrandá-la, mas em um artigo publicado em 1907 ele argumentou que era uma
"exigência demasiado atentatória do bem-estar" dos operários, que tinham por hábito reunirem-se ao ar livre depois de um dia árduo de trabalho.
Seja como for, Chagas percebeu que os mosquitos só sugavam sangue num curto espaço de tempo, durante o crepúsculo. "Fora dele poder-se-á permanecer impunemente nas proximidades de pântanos, sem o
menor receio de ser picados", dispensando o confinamento durante toda a noite.
O procedimento permitia o trabalho noturno nas construções ferroviárias, o que, pelo elevado interesse econômico, merecia, segundo Chagas, "ser levado para o domínio da prática".
Uma das estratégias principais de Chagas foi canalizar diversos córregos que cortam a área da Usina - e que ainda estão em Itatinga. Há quem veja, nesse trabalho, influência do engenheiro
sanitarista Saturnino de Brito. O Canal 1, em Santos, foi concluído em 1907
Foto publicada com a matéria, página 12
Para o mundo - Iniciada a campanha em Itatinga em 18 de dezembro de 1905, houve, em janeiro do ano seguinte, 16 doentes. Em fins desse mês funcionavam as principais medidas de profilaxia:
hidrografia sanitária, proteção das casas, isolamento e quininização (tratamento com uso de quinino) de trabalhadores.
Em fevereiro, mês de maior intensidade epidêmica nos anos anteriores, ocorreram apenas três casos, residentes na mesma casa desprotegida. Até o dia em que Chagas entregou seu relatório, em março,
ninguém mais adoeceu, apesar das chuvas abundantes.
Em 1923, no Congresso Internacional de Malariologia, realizado em Roma, os especialistas reconheceram a importância dos métodos implantados por Carlos Chagas em Itatinga, que passariam a ser usados
em campanhas de profilaxia por todo o mundo.
Mas 'vencer' a malária foi apenas um dos obstáculos no caminho dos empreendedores Cândido Gaffrée e Eduardo Guinle. Antes mesmo de começar a construir a Usina, eles tiveram um inimigo tão
poderoso como os mosquitos que infernizaram a vida daqueles que ousaram transformar o sonho em realidade.
Área de mata fechada, com alto índice de pluviosidade...
Foto publicada com a matéria, página 11
... limitada em um dos lados pelo Rio Itapanhaú e diversos...
Foto publicada com a matéria, página 11
... lagos e cursos d'água, ambiente propício para a malária
Foto publicada com a matéria, página 11
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