Foto: Arquivo Codesp, publicada com a matéria, página 14
Nos bastidores de um projeto
Uma luta ferrenha entre grupos nacionais e estrangeiros quase mudou os rumos da Usina de Itatinga
Para muitos historiadores, o período entre 1870 e o final da I Guerra Mundial (1914) marcou a primeira onda do que mais tarde viria a ser
chamado de globalização. Inglaterra e Estados Unidos dominam esse cenário e é dentro desse contexto que vai surgir uma luta ferrenha entre grupos nacionais e estrangeiros pelo controle de vários segmentos da economia brasileira.
Entre eles estão os gaúchos Cândido Gaffrée e Eduardo Guinle, que acabam por encarnar um sentimento nacionalista frente à crescente ação de financistas e empresários de fora, como os norte-americanos
Frederick Stark Pearson e Percival Farquhar.
Pearson é o homem por trás da São Paulo Light & Power, criada em Toronto (Canadá) por meio de uma carta-patente emitida pela rainha Vitória da Inglaterra. Em 7 de abril de 1899 a empresa é autorizada
pelo presidente Campos Salles a funcionar no Brasil.
O café é a grande riqueza nacional, e o País precisa se modernizar urgentemente, sob pena de não conseguir escoar o seu ouro negro.
As disputas começam em 1888, quando Gaffrée e Guinle recebem da princesa Isabel a concessão, por 90 anos, do Porto de Santos.
Em 1890, a firma elevaria o capital e mudaria o nome para Empresa das Obras dos Melhoramentos do Porto de Santos. Em 1892, seria reorganizada como sociedade anônima, adotando a designação definitiva
de Companhia Docas de Santos.
Desse modo, o grupo realizaria em Santos sua obra mais importante, construindo (sob a direção do engenheiro brasileiro Guilherme Weinschenck) o primeiro porto nacional em condições de receber navios
de grande porte.
Cobiça - Segundo o diplomata, ensaísta, biógrafo e historiador mineiro Hélio Lobo (em seu livro Docas de Santos - Suas origens, lutas e realizações), a participação de Gaffrée e Guinle
na construção do Porto de Santos despertou a atenção de outros grupos econômicos para as enormes potencialidades econômicas do setor, entre elas a Light.
A princípio, entre 1904 e 1905, Gaffrée e Guinle mantiveram relações amistosas com a empresa. Porém,novos atritos surgiram, principalmente com as pressões de Percival Farquhar, que pretendia assumir
o controle da Companhia Docas de Santos, como já havia feito com outros portos importantes.
A crise entre os dois grupos se torna insustentável em 1906, quando a Companhia Docas de Santos se propõe a vender em São Paulo a energia excedente de sua usina de Itatinga. A Light, vendo seu
monopólio sob ameaça, decide endurecer o jogo.
Uma semana depois, o advogado Alexandre Mackenzie (1860-1943), segundo presidente da Brazillian Traction, o truste controlador da Light, insiste com os diretores da São Paulo Light & Power que
procurassem o governador e o prefeito para "pôr um ponto final nos planos de Guinle & Co."
Ele recomendou, ainda, que fossem feitos "todos os esforços para garantir a concessão do fornecimento de eletricidade no Município de São Bernardo, a fim de criar uma nova dificuldade para a ligação
entre Santos e São Paulo, pretendida por Guinle".
Resistência - No entanto, Guinle & Co. resistem e em 1908 conseguem a representação da GE no Brasil, que seria a fornecedora, junto com a Voith, da Alemanha, das turbinas e dos geradores a
serem instalados na Usina Hidroelétrica de Itatinga.
Nessa época, a dupla obtém, do Governo Federal, um decreto autorizando a construção de uma linha transmissora de Itapanhaú, onde pretendiam levantar uma nova usina, até São Paulo.
Finalmente, em 5 de fevereiro de 1909, a Companhia Docas solicita à Prefeitura de São Paulo autorização para vender na Capital o excesso de energia da Usina de Itatinga, que começaria a operar em
outubro do ano seguinte.
O preço da tarifa oferecido era extremamente conveniente (três vezes menor do que o praticado pela Light) e o prefeito Antônio da Silva Prado concorda com o pedido.
A Light não se conforma e sai a campo com uma inflamada polêmica sobre a terminologia "Lugares ocupados". Em outras palavras, a empresa queria manter o monopólio da oferta de energia elétrica nas
regiões onde já atuava - a concorrência não era bem vinda.
Porém, em abril de 1909, mesmo ano em que foi inaugurada a primeira linha de bondes elétricos em Santos, a Câmara Municipal de São Paulo dá parecer favorável à Light. A mídia acompanha de perto a
contenda.
A Tribuna - O jornal A Tribuna, de julho de 1910, retrata dessa forma a situação: "Agora imagine-se a força irresistível e esmagadora desse truste, dentro de alguns anos, quando
toda a sua vasta operação se vir realizada. Pense-se que ele chegue um dia a encampar as Docas de Santos e calcule-se como tudo lhe ficará sujeito em toda a maior e mais rica parte da República Brasileira. São todas as estradas de ferro do Sul,
numa rede colossal, abrangendo São Paulo, Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande nas suas mãos, com os portos a que elas conduzem".
Não se sabe como esse tipo de pressão ecoou junto às autoridades públicas, mas fato é que o então prefeito de São Paulo, Antonio da Silva Prado, revoga a autorização concedida a Gaffrée e Guinle -
que, no entanto, recorrem novamente à Câmara.
Em 22 de maio, os políticos paulistas voltam atrás. Decidem que a expressão "Lugares ocupados" se refere apenas às ruas e praças em que já estivessem instaladas luz e força. Mas, quando a disputa
parecia resolvida, o prefeito, no entanto, decide manter a exclusividade nas mãos da Light.
O pano de fundo nisso tudo era a pressão exercida por Alexandre Mackenzie e seus pares, dando prioridade à Light na defesa desse monopólio. Para isso, praticaram o que hoje se conhece como dumping,
ou seja, diminuíram as tarifas de energia e o custo das passagens dos bondes, em uma nova tentativa de sufocar a concorrência.
Por fim, Gaffrée e Guinle acabam desistindo da briga. Eles abandonam o setor de energia, mas conservam sob seus domínios o projeto de Itatinga. Ironicamente, em 1924/25 a Light acabou utilizando
parte da energia gerada em Itatinga para a construção da Usina Henry Borden, em Cubatão. Eduardo Guinle morreu em 1912 e Cândido Gaffrée em 1919.
Cândido Gaffrée - "Fundador da Companhia Docas de Santos, e um dos grandes beneméritos da Associação Beneficente dos Empregados da Companhia Docas de Santos"
Foto publicada com a matéria, página 15
A atuação de Gaffrée e Guinle na construção do Porto de Santos despertou a atenção de outros grupos econômicos para as enormes potencialidades econômicas do setor, entre elas a
Light
Eduardo P. Guinle - "Fundador da Companhia Docas de Santos, e grande benemérito da Associação Beneficente dos Empregados da Companhia Docas de Santos"
Foto publicada com a matéria, página 15
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