Caiçaras de Bertioga lutam por suas terras
Texto: Leda Mondim
Fotos: Arquivo
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Jagunços
fazem ameaças e perseguem crianças, famílias inteiras correm o risco de perder as terras de onde tiram o sustento, caiçaras enfrentam
imobiliárias e viram atração turística. As mudanças ocorrem diante dos olhos assustados da população local. O movimento de carros e pessoas
cresceu, e o lugarejo não é o mesmo desde que se anunciou a construção das rodovias Rio-Santos e Mogi-Bertioga.
No rastro dessas estradas vieram poderosos grupos econômicos, que cobiçam como nunca
uma região onde os terrenos já valorizaram pelo menos 500 por cento. Antigos moradores, sem defesa, são obrigados a entregar o que lhes
pertence. E reclamam: a terra não é mais de quem trabalha nela. |
O trânsito na Rua João Ramalho é intenso. No número 291, mora dona Maria, que
acompanha a movimentação atentamente, fixando os olhos miúdos num ponto qualquer. Depois observa as terras que foram suas. Ela nasceu em Bertioga há
80 anos, filha de pais também nascidos lá, toda uma família que parece ter brotado do solo do lugar.
Dona Maria viveu sempre perto do Forte de São João Batista e herdou da família extensa
faixa de terras que vinha sendo beneficiada por gerações e gerações. Ela, que sempre ouvira falar que a terra é de quem trabalha nela, hoje possui
apenas um pequeno e ameaçado pedaço de chão. Agora, à cabeceira da mesa de madeira, recebe o alerta da neta: "Logo a gente perde isto aqui também".
Os impostos estão altos, a pesca já não rende nada: "Noutro tempo, era uma fartura, só
jogar a rede e ver aquela beleza. Hoje, já não há mais tanto peixe, não sei o que acontece", comenta a senhora. A rua onde mora recebe melhorias,
ela não pode pagar os serviços e nem providenciar os passeios. Mas mudar dali, para onde? Dona Maria não sabe. Nem sua neta.
Nessa situação de desespero e incerteza vive essa mulher que deixou nas terras de
Bertioga sua força, sua vida, seus filhos. "Tive 12, mas só dei sorte de criar cinco meninas. Não tinha médico, quase todas as crianças morreram
antes de completar um ano. Para ir buscar socorro em Santos era uma noite inteira de canoa por esse canal".
Ela conta também que nos seus tempos de menina todos os moradores do lugar se
conheciam, eram amigos, se ajudavam. Mas quando tinha "20 e tantos anos", Bertioga começou a mudar. O aparecimento de uma padaria foi o primeiro
indício das sérias mudanças que estavam por vir. Aquele lugar, que permaneceu isolado durante tantos anos, passou a ser cobiçado por aqueles que
queriam buscar o sossego que não tinham entre as paredes de concreto das grandes cidades.
A família Barreto, como tantos outros caiçaras, já não podia controlar o que era seu
ou resistir às pressões dos que cobiçavam aquelas terras tão próximas da praia. E, entre perder a posse de tudo aquilo sem qualquer direito,
preferiu vender por preços que não correspondiam sequer à metade do que realmente valiam.
Agora, o movimento naquelas terras que pertenceram a dona Maria é muito diferente:
filas de carros, brigas e tumultos. Ela nem sabe quem são aqueles vizinhos, donos de casas tão bonitas. Do tempo da mocidade de dona Maria só resta
mesmo o regime de quase comunidade em que vive com seus filhos e netos, no pouco de terra que ainda lhe resta.
Na medida em que a estrada avança, cresce a especulação
imobiliária
Caiçara quer respeito - Aquele trecho de Bertioga que dona Maria conheceu, todo
mato e caminhos estreitos, já não existe. Vieram as ruas, melhorias, ameaça de progresso. Os turistas lotam os ônibus com suas barracas e mochilas.
Fim de semana, caiçara vira atração turística, e fala sozinho, mas quer respeito num lugar que é seu.
Sobre as antigas famílias do lugar recai todo o ônus desse pseudoprogresso. Com os
turistas, vieram também as especulações de preços por parte do comércio local. As vendinhas transformam-se em mercados, hotéis e restaurantes
instalam placas luminosas, não se pode mais comprar e pagar no final do mês.
Casos como o de dona Maria se repetem pelos recantos de Bertioga, tornando-se mais
freqüentes desde que foram anunciadas as construções das rodovias Rio-Santos e Mogi-Bertioga. As perspectivas são ainda mais negras quando se pensa
que estas obras estarão concluídas nos próximos anos, levando para Bertioga pelo menos 100 mil turistas, livres de todos os transtornos ocasionados
pela balsa. Se os turistas hoje visitam Bertioga, e na temporada enfrentam até 15 horas de espera para fazer a travessia na balsa, sem esse
contratempo promoverão uma verdadeira invasão.
"O que está por vir?", perguntam assustados os filhos de Bertioga. A mesma indagação
faz o pároco local, padre Primo Bernardes, principalmente quando lembra que nem mesmo o terreno pertencente à igreja foi respeitado. "Há 10, 20
anos, ninguém pensava em dividir essas terras. Mas, agora, até sobre o terreno do fundo da igreja já avançaram", afirma ele.
Esse padre tem sob sua jurisdição os 53 quilômetros de Bertioga, e em três anos de
convivência com a população local presenciou muita injustiça e violência. Sabe de famílias inteiras que perderam suas terras ou vivem em litígio com
grupos poderosos. Hoje, apenas sofrem perdidas nos recantos do lugar.
"O caiçara é bom. Se o pressionam a deixar a terra, acaba abandonando tudo. Mas isso
com muita tristeza, porque quer bem a essa terra de onde tira o sustento, não faz conta de riqueza", comenta o padre. E, às armas penduradas nas
algibeiras dos jagunços, os caiçaras respondem com flores: em Itaguá, comunidade pobre que congrega 20 famílias, os moradores uniram-se e
construíram uma capelinha. "Lugar que se preza e quer respeito precisa ter sua capela", dizem eles.
O movimento foi considerado vitorioso. A companhia de agricultura e pecuária que
brigava pela posse do lugar "deu" terrenos para as famílias, blocos para construírem as casas e escritura. Mas a injustiça é escandalosa, e padre
Primo Bernardes não pôde deixar de comentar o caso: "O pessoal está todo contente, mas, no meu entender, daquela área até o mar e o morro era tudo
deles. Agora, estão com a posse só dos terreninhos".
Para as famílias de Itaguá restam a miséria e os blocos empilhados. Blocos inúteis,
porque não há dinheiro para se construírem as casas.
Medo e tensão - Histórias de jagunços armados, destruição de casas, ameaças e
perseguições são contadas pelos posseiros que vivem às margens do Rio Itapanhaú. De um lado, a Imobiliária Praias Paulistas e a Empreiteira
Soblocos; de outro, os posseiros sem qualquer força política ou econômica, mas a firme disposição de não deixar ninguém tomar o que é deles.
"Com família de alagoano ninguém mexe", diz o posseiro José, de cabeça erguida,
deixando bem à mostra o rosto angustiado e sofrido. E, apesar de terem-se passado dez anos desde que as 15 famílias da localidade entraram com a
questão no Fórum, ele ainda tem a esperança que a Justiça dê uma solução definitiva para o caso. E explica: "Do contrário, a gente nem vive e nem
morre".
Para quem chega, os posseiros mostram o comprovante dos impostos pagos em dia e o
cadastro do Incra. Mas isso não assegura a tranqüilidade, pois quem pode ficar sossegado sabendo de jagunços armados rodando pela região? Jagunços
que queimaram duas vezes a casa de Dito Branco ameaçaram com armas Luís Vieira da Silva e perseguiram a cavalo as crianças Cassiano, Davi e
Luzia, filhos de Waldir Moreira da Silva.
Tudo isso acontece apesar de existirem outras provas de que as famílias são donas do
lugar: a certidão de Aurelina Simplício da Silva comprova que ela nasceu lá há 36 anos; a mais nova no Itapanhaú mudou-se para lá há 20 anos.
Os posseiros não compram briga e, como diz José, dispõem apenas de facão, "que nem é
arma e sim instrumento de trabalho". Como as intimidações não adiantaram, a Praias Paulistas tentou formas mais sutis de forçar os posseiros a
abandonarem a área: fez ofertas de Cr$ 60 mil pelos vários alqueires de terra.
Nesses dez anos que o caso está na Justiça, a Praias Paulistas não provou que as
terras são suas, e enquanto a questão tramita os posseiros não podem abrir novas frentes de cultivo para a plantação de banana, cana e laranja. Os
bananais estão cansados e, de onde se tirava até dois caminhões de banana por mês, não se consegue mais que 40 cachos. É a miséria espreitando
aquela comunidade e deixando sem perspectiva principalmente as 53 crianças e jovens, todos analfabetos.
"Tem noites que acordo amedrontado, preocupado, garro a pensar nisso e não
consigo mais dormir. Tô para perder as terras, não sei o que será de mim, de minha família, de todos daqui", desabafa um dos posseiros mais
antigos, inconformado em pensar que a Praias Paulistas e a Sobloco não plantam "um pé de nada".
A Prefeitura se omite sobre o caso, alegando tratar-se de uma zona rural, subordinada
ao Incra. Os posseiros já apelaram para vereadores e deputados, mas os resultados não vieram. Sem esperança, não sabem com quem contar.
Até 1982 as obras estarão terminadas
O código e suas alterações
As rodovias Rio-Santos e Mogi-Bertioga trazem em seu rastro a perspectiva da
especulação imobiliária. Até fevereiro do próximo ano, deverão estar prontos os 23 quilômetros de estradas que ligam Bertioga à Rodovia
Piaçaguera-Guarujá. A Mogi-Bertioga está prometida para 1982, e permitirá que se chegue do Oeste do Vale do Paraíba ao litoral paulista, em 50
minutos.
Não é à toa que existe briga por terra, comunidades inteiras vivem na iminência de
serem expulsas do solo onde tiram seu sustento, e não foram poupadas sequer as terras da igreja: os terrenos já valorizaram pelo menos 500 por
cento. Hoje, um lote de 500 metros quadrados pode custar Cr$ 2 milhões. "Mas, até com Cr$ 800 mil é possível comprar um terreno em Bertioga", dizem
as imobiliárias.
Os empresários não brincam em serviço, e a imobiliária Praias Paulistas tem um projeto
para a Praia de São Lourenço envolvendo oito mil lotes. Ou seja, mais de 50 por cento do total de lotes urbanizados existentes no distrito hoje,
calculados em 14 mil.
Felizmente, Bertioga é regida por severo código que disciplina a utilização do solo e
protege os recursos naturais, na tentativa de evitar a especulação imobiliária e todos os problemas dela decorrentes. O código foi elaborado pela
Prodesan em 1976, tendo por base possíveis catástrofes provocadas com a abertura da Rio-Santos e da Mogi-Bertioga.
A rigidez desse código chega ao ponto de não permitir a implantação, por exemplo, de
um complexo hoteleiro em Bertioga. Tanto que agora ele deverá sofrer algumas alterações, determinando áreas específicas onde as edificações poderão
se levantar, muito mais como uma saída econômica do que pressões ou influências de imobiliárias. Os motivos para essa alteração têm sua razão de
ser: atualmente, todo e qualquer terreno em Bertioga não pode ter uma área construída acima de 20 por cento do total da área do terreno. Portanto,
uma grande construção implicaria na compra de áreas imensas.
Os fundamentos principais do código deverão ser mantidos. A mata atlântica, as
várzeas, os cursos d'água, os manguezais, os morros e as praias continuarão sendo consideradas áreas de preservação permanente. As indústrias
poderão instalar-se, desde que ocupem a área rural e, mesmo assim, somente aquelas que processem matéria-prima proveniente da agricultura e
piscicultura. O detalhe mais importante do novo código é que as terras próximas à praia continuarão sofrendo sérias restrições, diminuindo o número
de exigências à medida que os terrenos sejam no interior. Essa foi a fórmula encontrada para facilitar as pessoas de baixa renda, impossibilitadas
de comprar terrenos de frente para o mar. Na realidade, a maioria dos moradores de Bertioga.
Homens e máquinas mudam a feição da área
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