"Estamos perdendo Bertioga,
e a culpa é toda nossa"
Texto: Álvaro Carvalho Júnior
Fotos: Carlos Marques
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"Até parece que a terra não é mais
nossa. Meus vizinhos de hoje são bem diferentes daqueles que eu tinha uns 10 anos atrás, e minha casa não fica mais no meio do mato, mas próxima
a uma avenida e com várias residências de gente estranha ao redor. A gente sente que aos poucos a cidade vai mudando de cara, recebendo novas
pessoas, e em determinados pontos das praias não podemos sequer pescar, pois as imobiliárias estão chegando, construindo casas e criando novos
lotes. A Bertioga está bem diferente e as pessoas também começam a mudar em seu comportamento. Os paulistas invadem a cidade nos fins de semana
e nas férias, mesmo sendo obrigados a enfrentar várias horas na fila da balsa. Bertioga está crescendo muito". (De um morador da região,
preocupado com a chegada dos estranhos). |
As estradas poderão terminar com o serviço de balsas
A lei nº 4.348, de 9 de setembro de 1980, publicada no
Diário Oficial do Município dia 17, passou despercebida por grande parte da população santista. Essa lei altera a estrutura administrativa da
Subprefeitura de Bertioga, a composição do órgão básico e adota providências correlatas. Ou melhor: Bertioga passa a ter maior agilização
administrativa, como se fosse um município autônomo, "com responsabilidade na execução dos serviços que lhe forem cometidos, de interesse
predominantemente local, respeitada a orientação dos órgãos centrais competentes", como diz o parágrafo 1º, do artigo 1º. Portanto, Bertioga começa
a ter vida independente, e a sonhar com uma possível autonomia político-administrativa difícil de se concretizar, mas não impossível.
É claro que em curto espaço de tempo Bertioga não conseguirá se transformar em
município, mas os levantamentos sócio-econômicos deixam quase certo que Santos, nos últimos anos, não soube como manter os 360 quilômetros quadrados
de terras quase virgens, 10 vezes mais extensas do que a área urbana da Cidade (36 quilômetros quadrados) e que se espalham desde a Serra do Mar até
São Sebastião, numa das regiões mais bonitas do litoral paulista.
Bertioga, "o lugar onde começa o Litoral Norte", deixa de ser uma subprefeitura, e
passa a ser uma administração regional, com muito mais liberdade administrativa. E os números levantados mostram que os santistas não acreditaram no
desenvolvimento da região. tanto que 80 por cento das terras de Bertioga pertencem a pessoas residentes em São Paulo, Mogi das Cruzes, São José dos
Campos e outras cidades do Interior, sem se levar em consideração que as empresas imobiliárias e de construção santistas simplesmente não chegaram
até lá: mais de 70 por cento das firmas do ramo que hoje atuam em Bertioga são de São Paulo.
O desenvolvimento rápido da região fica provado pelo boom imobiliário, a
valorização desenfreada dos terrenos e o aumento da população registrado nos últimos 10 anos. Em 1970, Bertioga tinha apenas 3.578 habitantes -
2.573 na zona urbana e 1.005 na zona rural -; hoje, os levantamentos feitos por técnicos da Prefeitura acusam mais de 6.000 habitantes, concentrados
principalmente em 20 por cento da área total do distrito.
Nestes 10 anos, foram construídos três hotéis, com capacidade para receber 40 pessoas
- total de 60 quartos - e implantadas cinco indústrias, três delas dedicadas à pesca e duas ligadas à construção civil.
O detalhe mais importante, entretanto, é que a participação do empresariado santista
pode ser classificada como nula. A região está sendo invadida por firmas de fora, e essa invasão deverá ser fortalecida com a construção da Rodovia
Mogi-Bertioga, uma estrada que ligará o Litoral e o Planalto e poderá provocar, inclusive, um esvaziamento no comércio santista. Os comerciantes
instalados em Bertioga não mais precisarão se utilizar de duas balsas e percorrer os 32 quilômetros por Guarujá para realizarem seus negócios. A
viagem pela Mogi-Bertioga não passará dos 50 minutos, e de Mogi a São Paulo, pouco mais de 20 minutos. Bertioga estará ligada ao maior centro
comercial do País - São Paulo -, com apenas 70 minutos de viagem, tempo que diminuirá sensivelmente assim que a construção da Via Norte estiver
terminada. Aí, a viagem Mogi-São Paulo não passará dos 15 minutos.
Além da Mogi-Bertioga, existem outras vias que poderão facilitar ainda mais o
desenvolvimento daquela região. Com a construção da ponte sobre o Rio Itapanhaú, o complexo Rio-Santos estará ligado com a Piaçaguera-Guarujá. O
acesso do santista será facilitado; porém, invariavelmente, Santos, no seu perímetro, sofrerá um processo de isolamento, quebrado apenas pelo
complexo Anchieta-Imigrantes: um turista poderá sair de Porto Alegre e chegar ao Rio de Janeiro sem ter que passar por Santos. Mas,
obrigatoriamente, entrará em Bertioga.
Baseando-se em todos esses fatos, chega-se à conclusão de que a autonomia de Bertioga,
apesar de difícil, dependerá apenas de tempo. O santista, na realidade, não ligou para aquela região, concentrou-se na sua meia ilha, e agora não
encontra mais espaços para se expandir. A única solução seria um aproveitamento racional e planejado de Bertioga, a partir da implantação de uma
indústria de alto turismo, ou de instalação de um parque industrial no Vale do Quilombo - este, um projeto que permanece engavetado há muito tempo.
Mas a verdade é que a falta de uma ligação física com a Bertioga torna as coisas bem
mais difíceis. Por uma incrível ironia, o santista, para conhecer a parte mais bonita e resguardada de sua cidade, precisa atravessar um município -
Guarujá ou Cubatão - e enfrentar um serviço de balsas.
Código de Obras é rígido, mas poderá ser alterado permitindo edificações altas
Um processo irônico
O processo chega a ser bastante irônico: à medida que os órgãos públicos passam a se
interessar por Bertioga, maiores são as chances de um movimento popular local reivindicando a autonomia. Se depender de planos, Bertioga permanecerá
por pouco tempo sob a tutela de Santos, pois o prefeito Paulo Gomes Barbosa, além de aumentar os poderes administrativos da subprefeitura, ainda
mandou realizar um estudo detalhado dos problemas locais, exigindo ainda várias soluções que poderão ser aplicadas a curto prazo.
Esse estudo prevê até uma alteração no Código de Obras, permitindo a construção de
edificações acima dos limites atuais, mas apenas em determinadas regiões, onde as possibilidades de desenvolvimento sejam consideráveis.
Isso não significa que Bertioga sofrerá uma descaracterização. Apenas se pretende
criar condições para a instalação de complexos hoteleiros, por exemplo, já que o código atual não permite construções que ocupem mais de 20 por
cento da área total do lote. Com isso, fica praticamente impossível a construção de grandes hotéis, diminuindo sensivelmente as possibilidades de se
atrair para a região um turismo de alto nível. Utilizando um terreno de mil metros quadrados, pode-se construir uma edificação qualquer com apenas
200 metros quadrados.
Paralelamente às alterações do Código de Obras, vários outros projetos estão sendo
estudados. E a Sabesp pretende iniciar a recuperação da Barragem de Furnas, fazendo um levantamento topográfico do Rio Pelaes, onde será construída
uma nova captação de água para Bertioga, uma espécie de reforço para as próximas temporadas. Pretende-se ainda aumentar o aproveitamento da
captação, que, somada à barragem antiga, aumentará consideravelmente o fornecimento de água potável. Resultado: a vazão atual, que gira em torno de
40 a 50 litros por segundo, simplesmente será dobrada. "E tudo isso poderá ser feito a curto prazo, com início das obras previsto para o próximo
ano", afirma o superintendente regional da Sabesp, José Lopes.
E se hoje Bertioga não tem rede de esgoto, provavelmente até o final de 81 esse
problema estará superado. A Sabesp pretende iniciar obras que se estenderão até a Colônia do Sesc, envolvendo toda a área urbana, que fica próxima à
balsa. Todos esses projetos serão desenvolvidos assim que o financiamento do Banco Nacional da Habitação (BNH) for liberado. "Tudo dependerá agora
da liberação das verbas. Os projetos estão prontos, bastando apenas o dinheiro para que entremos na fase executiva. A previsão é para 1981",
confirmou José Lopes.
A Central Energética de São Paulo mantém duas subestações no local, enquanto a Telesp
já instalou mais de 500 telefones, abrangendo até a Praia de São Lourenço. Os serviços de saúde pública desenvolveram-se a ponto de Bertioga manter
o melhor Pronto-Socorro da Baixada, excetuando-se o PS Central em Santos, onde já são previstas obras de expansão, caso haja necessidade. Portanto,
já existe uma infra-estruturra montada na região. Até mesmo as emissoras de tevê - Canal 8 e Canal 10 - instalaram estações geradoras, apesar de não
existirem cinemas, teatros ou qualquer outra forma de lazer. A não ser, é claro, as praias, bem maiores que as de Santos.
Não existe nenhum tipo de poluição em Bertioga. Seu mar
é bem diferente de Santos
Paraíso, logo ali
A qualidade de vida em Santos já não é a mesma. Os 36 quilômetros quadrados, por onde
se expandiu, pouca coisa - ou nada - têm a oferecer. Nem mesmo os jardins, maior orgulho da Cidade, poderão oferecer um incentivo maior ao
desenvolvimento turístico. Santos vive espremida com seus quase 450 mil habitantes numa região onde os prédios descaracterizaram totalmente a
paisagem, onde houve um crescimento desordenado, e agora não tem mais para onde ir. Restou-lhe apenas a região de Bertioga, onde o mar não é
poluído, as áreas verdes são imensas e quase intocadas.
Nessa região de 360 quilômetros quadrados existem três bacias de pequenos rios:
Itapanhaú, Itapuré e Guaratuba. Eles são formados nos esporões da Serra do Mar, espalhando suas águas ainda limpas por terras baixas, desembocando
suavemente no Atlântico. A região pode ser dividida em três partes: uma quase a nível do mar, onde está concentrado o desenvolvimento urbano e onde
vive praticamente toda a população local. Em seguida, existe a cota 100, terras 100 metros acima do nível do mar, formadas por matas e capoeiras,
com cobertura vegetal natural e reflorestamento. Mais acima está a Serra do Mar, com altitude chegando a 500 metros acima do mar. Essa região ainda
é inexplorada, representando, além de tudo, uma grande reserva florestal.
Nos levantamentos feitos por técnicos do Escritório Regional do Planejamento (Erplan),
o desenvolvimento da agricultura não será nada fácil. A região é formada por terras em geral escarpadas da serra e aglomeramentos rochosos,
indicados apenas para abrigo da flora e da fauna. As terras da baixada marítima são planas e arenosas, economicamente não agriculturáveis. Tanto que
as produções registradas no local limitam-se ao chá e ao arroz, mesmo assim a nível doméstico. Não existem plantações. O mesmo fenômeno repete-se
com a pecuária, não sendo registradas culturas de bovinos, suínos ou aves.
Mas os moradores da Praia de São Lourenço não pensam assim. Eles encaminharam projeto
ao prefeito Paulo Gomes Barbosa - nº 7.710/80 -, pedindo a abertura de uma estrada no meio de uma área de 300 alqueires, com apenas uma intenção:
plantar cacau. Conseguiram, inclusive, 100 mil sementes, que foram doadas pela Casa da Lavoura, e aguardam a liberação de um empréstimo estadual
para iniciar a nova cultura.
No documento encaminhado ao prefeito Paulo Gomes Barbosa, a Sociedade Melhoramentos
Amigos de São Lourenço afirma que, "assim, São Lourenço estaria contribuindo para o desenvolvimento de Bertioga". Nesse mesmo documento, deixam
escapar o que poderia ser definido como um início a um movimento de autonomia: "O processo em questão foi encaminhado à Prefeitura de Santos por
intermédio da Estaf Engenharia S/A, empreiteira contratada pelos proprietários das terras, para realizar os serviços, cuja construção não custará
nada aos cofres públicos".
Talvez seja até exagero classificar-se uma frase como um sintoma de um movimento
separatista. Mas a verdade é que com o desenvolvimento natural de Bertioga, o fenômeno será apenas reforçado no decorrer do tempo. Sem um
posicionamento mais efetivo da Prefeitura santista em Bertioga, dificilmente ela poderá ser mantida, e a última esperança de expansão da Cidade
estará definitivamente afastada.
Urbanização ainda não atingiu verde
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