BERTIOGA
Os últimos momentos de tranqüilidade
Texto: Lane Valiengo
Fotos: Walter Mello
Uma saída para o mar. Era só o que faltava para os
moradores de Mogi das Cruzes, que agora, com a abertura da estrada ligando o município às praias de Bertioga, prometem transformar cada fim de
semana em uma autêntica invasão. E, ao mesmo tempo em que abre mercado para a prestação de serviços dos mais variados tipos, a estrada representa um
alerta: se o uso das praias não for imediatamente disciplinado e se não for implantada, com urgência, uma infra-estrutura adequada, o distrito será
transformado em palco de tragédias.
A grande maioria dos visitantes nunca tinha visto o mar de perto ("só conhecia pela
televisão", comentava extasiada uma garota) e por isso mesmo as regras mais elementares de segurança eram praticamente ignoradas. Afogamentos
provocados por excesso de bebida ou alimentação, crianças perdidas e riscos de atropelamentos foram os principais problemas enfrentados pelos
salva-vidas que trabalharam em Bertioga neste fim de semana. Embora até o começo da tarde de ontem não tenha ocorrido nenhuma morte, os 50 homens
que cuidaram dos invasores no sábado, e mais 16 ontem, sabem que, daqui para frente, todo cuidado será pouco.
Afinal, a invasão está apenas começando, e a tendência é de que, a cada dia
ensolarado, o número de turistas será maior. Na temporada, então, espera-se um verdadeiro caos. E cabe um aviso: quem está acostumado com a
tranqüilidade, a paisagem e a água limpa de Bertioga, é bom esquecer esta imagem. Depois da invasão iniciada esta semana, Bertioga nunca mais será a
mesma.
Por enquanto, as crianças ainda brincam despreocupadas
na beira do mar, mas prevê-se que
em pouco tempo essa maravilhosa tranqüilidade estará irremediavelmente comprometida
Lazer e confusão - No sábado, a Prefeitura de Mogi das Cruzes fretou cerca de
cem ônibus, e transportou a população gratuitamente, em busca das praias. "Parecia que a cidade inteira tinha mudado para Bertioga", comentava um
policial militar, assustado com o número de pessoas que estavam nas praias, literalmente lotadas.
Ontem, os ônibus eram poucos - vinte, aproximadamente -, mas o número de veículos que
descia a Serra era simplesmente impressionante: aproximadamente 30 por minuto. Tudo tem explicação: além da oportunidade de contato com a praia, das
possibilidades de um tipo de lazer até então desconhecido, há a facilidade de tráfego - em média, 40 minutos de Mogi até a praia de São Lourenço.
Com duas vantagens capitais: não é preciso pagar nenhum pedágio ou utilizar as balsas.
E, tanto no sábado como ontem, o que se via eram carros lotados, peruas com até 20
pessoas, legiões de motociclistas e muito mais. Ou seja: a partir desta data, Bertioga pode ser considerada como o novo paraíso da classe operária.
Mas não são apenas os moradores de Mogi que descobriram o mapa das praias: veículos de
Guarulhos, Suzano, Mauá, Arujá, São José dos Campos, Ribeirão Pires, São Bernardo, Santo André e outros municípios também aproveitaram o primeiro
fim de semana da nova estrada.
"Parecia a festa de Iemanjá em Praia Grande", foi a observação de um salva-vidas,
enquanto mostrava-se preocupado com os afogamentos (foram seis, no sábado, nenhum com vítima). Para evitar que algum acidente mais sério ocorresse,
os bombeiros obrigaram todas as pessoas que tentavam chegar até a Selada (espécie de ilha formada por rochas, junto ao "cantão" da Praia de São
Lourenço) a desistir da aventura. "Nas pedras, ninguém", resolveram. E assim foi feito.
Uma explicação necessária: exatamente na Selada ocorre o maior número de afogamentos.
Há dez dias, três moças e um rapaz morreram naquele lugar.
Invasão completa - Precavidos, os novos usuários das praias muniram-se de todos
os equipamentos, utensílios e produtos necessários a uma boa estadia, incluindo barracas de camping, sacos de dormir, rádios, vitrolas,
pequenos colchões, um apreciável estoque de bebidas alcoólicas, fogareiros, lamparinas, alimentos de todos os tipos, bolas de futebol, varas de
pescar, cadeiras de alumínio, esteiras, bronzeadores, chapéus de palha, pranchas de isopor, gatos, cães e periquitos.
O japonês passou a ser a segunda língua, os poucos estabelecimentos comerciais foram
tomados de assalto - produzindo sorrisos significativos nos proprietários -, e a pressa de chegar era tanta que os carros terminavam a descida da
Serra em velocidade até certo ponto exagerada, as motos ameaçavam a toda hora atropelar as despreocupadas mocinhas que se deliciavam com seu
primeiro bronzeado natural e, principalmente, as crianças.
Exatamente as crianças tornaram-se uma preocupação para os médicos e enfermeiras que
trabalhavam no posto improvisado pela Prefeitura de Santos na Praia de São Lourenço. No sábado, o número de crianças perdidas foi superior a cem.
O alcoolismo também mereceu atenções extraordinárias: como não havia espaço suficiente
no posto para atender e manter ali todos os que exageraram no consumo de bebidas ("Como esse pessoal toma vinho!", comentava uma enfermeira), muitos
pacientes foram deixados dormindo na areia mesmo. E os responsáveis pelo atendimento contavam algumas histórias curiosas, como a de um rapaz que foi
retirado da água meio desfalecido, tomou uma dose de coramina e ficou descansando. Depois de alguns minutos, resolveu levantar-se, dizendo que iria
voltar para o mar. E voltou mesmo, sem que ninguém pudesse impedir.
Logo depois, era levado de volta ao posto: novamente, havia se afogado.
Como os alcoolizados ameaçavam transformar-se em grande e esmagadora maioria, a
solução encontrada foi, no mínimo, original: passaram a ser recebidos por um forte jato de água, saído de uma mangueira, capaz de acordar qualquer
um.
Para evitar problemas ainda maiores, foram instalados alguns sanitários - claro,
improvisados - na praia, próximo ao posto médico, assim como alguns chuveiros (a Sabesp enviou para Bertioga dois carros-pipa). E os salva-vidas
desdobravam-se, alertando os mais afoitos, tentando evitar os atropelamentos e espalhando faixas e placas com alertas: "Água no umbigo, sinal de
perigo", "Não exagere na bebida", "Cuidado com as correntezas".
Negócios promissores - Cláudio Velasco, gerente do Restaurante Rancho da Zezé e
Duarte, localizado praticamente dentro da Praia de São Lourenço, mostrava-se particularmente feliz, tanto pelo movimento registrado no
estabelecimento, como que pela tranqüilidade existente. "Não aconteceu nada que desabonasse o pessoal. Eles são tranqüilos, estão de parabéns, não
houve confusão nem nada". E observava que, apesar do movimento intenso, é preciso um pouco de cautela, pois os novos usuários das praias de Bertioga
são, essencialmente, humildes trabalhadores, sem grandes recursos financeiros.
Velasco conta que no sábado a maioria dos visitantes foi embora por volta das 21
horas, calculando em aproximadamente 50 mil pessoas o número de turistas. Ontem, havia um pouco menos, talvez 40 mil. E a tendência, agora, é um
fluxo cada vez mais intenso.
Uma certeza: centenas de novos estabelecimentos comerciais deverão surgir em Bertioga,
pois os visitantes logo estarão exigindo melhores condições. Mas ainda virão outras coisas, e será preciso estar preparado para todas elas: a
sujeira, a falta de segurança, as quedas nas pedras, os acidentes etc. Mas, o receio dos policiais é de que, com uma concentração de pessoas deste
nível, em breve estarão visitando Bertioga os "ratos de praia", ladrões especializados em aproveitar os momentos de distração dos banhistas.
"Cada fim de semana agora será uma verdadeira guerra", dizia ontem outro comerciante.
E com razão, pois até para comprar cigarros era preciso fazer fila.
Carros em plena praia atestam as atuais condições
precárias
Uma noite na praia - Muitos chegaram no sábado e ficaram até ontem à tarde,
acampando na praia, que ficou repleta de barracas, desde as mais sofisticadas e bem aparelhadas, até as improvisadas, uma lona presa entre dois
carros. Para a maioria, foi uma aventura inesquecível.
Walfrido Soares, de Mauá, foi um deste heróis. Junto com toda a família e mais alguns
amigos - cerca de dez pessoas, em duas barracas -, enfrentou a noite com bravura, apesar de queixar-se do frio da madrugada: "Tivemos até que fazer
umas fogueirinhas para esquentar um pouco", comentava, não disfarçando a satisfação.
A mesma satisfação que sentiam outras milhares de pessoas. As crianças davam gritos e
grunhidos de alegria e prazer, os mais jovens preocupavam-se logo em correr para a água, enquanto os mais velhos mostravam-se, a princípio,
assustados com tanta novidade e tanto movimento.
Alguns outros, como os membros de uma caravana vinda do Jardim Primavera, na periferia
de São Paulo, realmente não sabiam o que fazer. Cada um pagou Cr$ 500,00 pelo transporte, cada um encarregou-se de trazer o próprio almoço,
incluindo a inevitável geladeira de isopor, para garantir a cerveja gelada. Mas nenhum sabia exatamente o que fazer assim que chegaram. Foram
descendo lentamente do ônibus, ficaram por perto, em grupos, sem se afastar muito, olhando para todos os lados, até com certo constrangimento. Mas
após meia hora, já estavam todos senhores da situação: o ambiente já estava reconhecido, e todos perceberam que também tinham direito ao supremo
momento de um domingo na praia.
Primeiro acidente - Antes mesmo de ser inaugurada, a Estrada Mogi-Bertioga
registrou o seu primeiro acidente, se é que assim pode ser chamado: enquanto uma multidão esperava pela presença das autoridades para a solenidade
de abertura, um ciclista descia tranqüilamente a Serra. Mas perdeu os freios, não conseguiu parar e acabou atropelando três pessoas. Claro, sem
grandes danos.
O segundo acidente ocorreu na sexta-feira, um dia após a inauguração oficial: um Fiat
desgovernou-se na descida da serra e foi de encontro a um barranco. O terceiro, ontem: um Volks capotou na Praia de São Lourenço. Em ambos, apenas
escoriações nos ocupantes dos veículos.
Mas todos sabem que, em breve, o número de acidentes será bem maior, quase
insuportável. Assim como existe a nítida certeza de que muita gente ainda irá morrer em Bertioga, o novo paraíso da classe operária.
Um pouco de disciplina,
ou então, o caos total
Descuido fatal: a Estrada Mogi-Bertioga foi inaugurada na quinta-feira, oferecendo a perspectiva de lazer
nas praias para uma grande população. Mas o Distrito não possui qualquer tipo de infra-estrutura para suportar a invasão, que deverá ser
intensificada cada vez mais.
Os problemas começam exatamente onde termina a rodovia: as placas existentes
não informam nada; ao contrário, acabam confundindo os motoristas. Logo no início da estradinha de terra que liga a Mogi-Bertioga à Praia de São
Lourenço, funcionou neste fim de semana um posto volante do DER, e o local transformou-se em parque de estacionamento para visitantes indecisos.
A maioria parava, para perguntar a melhor maneira de se chegar às praias, qual a distância, quanto tempo para atingir o centro de Bertioga etc.
Para resolver a situação, bastaria uma placa, naquele local, com uma única
palavra: "Praias", e não o tímido e escondido aviso existente na ligação de terra. Além disso, São Lourenço, Indaiá e Enseada são nomes
desconhecidos para a maior parte dos motoristas.
Depois, quando finalmente pensa que os problemas acabaram, o turista percebe
que tudo tem o seu lado triste. Se a praia está ali mesmo, à sua disposição, se a água não é poluída e existe espaço de sobra, alguns sérios
obstáculos o esperam: não há água potável suficiente (antes, comentava-se que a bica existente no canto de São Lourenço logo estará
completamente seca), não há sanitários adequados e em número suficiente, o policiamento é pequeno, o posto médico é improvisado (e nem ao menos
sabe-se se, nos próximos fins de semana, estará no mesmo local. Ontem, funcionários explicavam que ele será desmontado hoje mesmo) e,
principalmente, os veículos disputam os espaços com os banhistas.
Chegar ao mar, dessa forma, torna-se uma aventura que requer muita cautela e
sorte, pois do contrário, inevitavelmente, acaba-se ficando debaixo das rodas de um ônibus, uma motocicleta, um carro qualquer.
Transfiguração - Como os estabelecimentos comerciais deverão instalar-se
com certa urgência, diante da demanda existente, Bertioga corre o risco de ser transfigurada antes do que se esperava. Para alguns, está
nascendo uma nova Praia Grande, mas sem as mínimas condições para receber os turistas. Já que preservar o Distrito torna-se praticamente
impossível - além de ser uma idéia até certo ponto elitista -, cabe agora oferecer um mínimo obrigatório aos visitantes.
Do contrário, em pouco tempo estará criado um monstro incontrolável, a devorar
levas e levas de turistas. |
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