[18] Quarteleiros e Valongueiros
De 1850 em diante, quando as construções do bairro santista do Valongo
começaram a sobrepujar as do bairro vizinho - dos Quartéis, ambos nascidos na distância do século dezesseis e ostentando a mesma prosápia -, começaram também a surgir entre as suas populações, entre o seu povo anônimo, pequenas diferenças,
despeitos, piques, teirós, a princípio sem importância, que se foram avolumando, a ponto de se transformarem, dentro de alguns meses, em grossas incompatibilidades, lutas, desordens, bordoadas.
Cerca de 1858, estavam de tal forma dificultadas as relações entre os dois bairros que, às missas de Santo Antônio, não podiam ir os do Quartel, e às da Matriz não podiam ir os do Valongo, sem risco de pauladas e coisas piores.
Uma verdadeira guerra, por fim, se declarava entre as legiões organizadas, num e noutro bairro, Arsenais de pedras, paus, bodoques, foices, enxadas, pás, picaretas e até pequenas espingardas, forneciam os "elementos" para os embates, que volta e
meia se travavam entre as duas forças, a qualquer pretexto.
Quando a polícia resolveu interferir, naquilo que os delegados julgavam coisa passageira, criançadas de marmanjos, já era tarde; as arruaças já eram coisas notáveis, que não cediam aos 'réfes' dos homens do Corpo de Urbanos e afrontavam os
guardas, que nelas se envolviam e delas saíam sempre maltratados. Só a aproximação das forças do exército tinha o dom de afugentar os brigantes, temporariamente.
Com o aumento das rivalidades e a melhora necessária dos "planos" dos Quartéis Generais em contenda, passaram as arruaças a se realizar à noite, sabendo-se que até alguns homens abastados dos dois bairros entraram a fornecer dinheiro, à socapa,
aos seus grupos representativos. A coisa desde então tornou-se diferente e lúgubre, pouco podendo a polícia contra fantasmas, contra homens que se homiziavam na sombra das ruas mais retiradas, cujos lampiões quebrados nada faziam na treva densa
daqueles lugares, cheios de terrenos vazios, como bocas escancaradas, invadidas de mato, onde os assovios, os gritos, os gemidos e os tiros perdidos aterrorizavam os mais decididos.
Houve tempo em que, a pedido da Câmara, o Governo Provincial mandara um piquete de cavalaria, com o fim especial de policiar os dois bairros e acabar de uma vez com a desordem intolerável, que já tomava foros de tradição.
A força chegara e, integral, com seu comandante à frente, marcial, pusera-se a passear durante todo o dia, pelas ruas dos dois bairros, em atitude soberana, instigando os cavalos, tilintando os espadins e tocando corneta, como a chamar a atenção
dos brigantes costumeiros para a sua imponência.
Estava certo o comandante, um primeiro tenente do exército, que tal demonstração bastaria para que nada mais houvesse. A quietude dos elementos belicosos, durante as horas claras, fez parecer ao cavalariano que a sua presença seria o fim da
"coisa"; entretanto, à noitinha, o barulho irrompeu, grosso e feio, na Rua do Sal, na da Penha, no Beco do Consulado, na São Bento e na de Caiubi, com assovios, palavrões e gritos de toda ordem, na treva mais absoluta.
Confiantes, os cavalarianos galoparam por Santo Antônio e Vergueiro, mas quando, a galope, se atiaravam pela Rua da Penha, onde mais grossa fervia a desordem, mão misteriosa apanhou-os a todos pelo peito, atirando-os ao chão, sob a saraivada de
paus e pedras dos brigantes homiziados na escuridão.
Foi mesmo um desastre para os homens da cavalaria, que, apeados, machucados e sem uma possibilidade de defesa, vendo os cavalos em fuga, nirindo e escoiceando, fugiram também, a rumo da Cadeia Nova, onde chegaram em estado lastimável, feridos,
desancados, cobertos de barro e pó, sem armas e sem cavalos.
É que, prevendo a intervenção noturna da força de cavalaria, os arruaceiros santistas haviam trançado toda a rua de fios de arame, na altura do peito dos cavaleiros, surtindo o seu ardil o êxito mais completo, por força da escuridão.
Com a notícia do desastre do piquete de cavalaria, desmoralizou-se a força enviada pelo Governo, atingida pelas chuvas e troças da cidade inteira, e cresceu o prestígio das forças populares em choque. A própria política (lliberal e conservadora)
passou a contar com arruaceiros dos dois bairros, para as eleições, dispensando-lhes para isso a proteção que podia, bem se calculando por aí a importância assumida pelas antigas divergências da gente do Valongo e dos Quartéis.
Chegara porém o ano de 1860. Os "ingleses", que haviam comprado o privilégio do Barão de Mauá para uma ferrovia de São Paulo a Santos, tentavam demolir a Igreja de Santo Antônio, para construir em seu lugar a estação da sua estrada de ferro. A
notícia de um milagre do Santo correra a cidade; Santo Antônio, pequena imagem de quatro quilos, resistira à força de trinta operários, e não saíra do lugar, do seu nicho de mais de duzentos anos.
Uma onda de revolta apossou-se de toda Santos, intensamente religiosa. Nesse dia, na parede da Matriz, apareceu um grande cartaz, escrito a letra de forma:
QUARTELEIROS!
GENTE BRAVA COMO NÓS! QUEREM DESTRUIR SANTO ANTONIO! ESTRANGEIROS AUDACIOSOS E SACRÍLEGOS PRETENDEM PISAR AS NOSSAS TRADIÇÕES E OS NOSSOS BRIOS! SANTO ANTÔNIO ACABA DE FAZER UM MILAGRE! fAÇAMOS UMA TRÉGUA EM NOSSAS DIFERENÇAS! SOMOS TODOS
SANTISTAS!q ARMADOS DAS NOSSAS ARMAS E DA NOSSA CORAGEM, MARCHEMOS CONTRA OS PROFANADORES!
EIA! OS HOMENS DO VALONGO VOS ESPERAM NA RUA DO SAL, PARA CUMPRIMENTO DO DEVER COMUM!
OS VALONGUEIROS
A pequena cidade de então parecia em pé de guerra. Dentro de meia hora, após o aparecimento do cartaz, estava formado o batalhão dos Quartéis. Duzentos,
talvez trezentos "soldados", entre meninos, rapazes e homens feitos, armados de instrumentos de toda natureza, punam-se em marcha, entre gritos, vivas e morras, a rumo do Valongo.
O encontro com a "tropa" adversária deu-se na Rua de Santo Antônio, na esquina com a do Sal, e foi comovente. Não pareciam os inimigos figadais da véspera e de tantos anos; saudavam-se em massa e abraçavam-se os chefes à vista dos "comandados",
quase enternecidos, enquanto das sacadas muitas famílias os saudavam, cobrindo-os de flores e folhas verdes. Dali seguiram, acompanhados pelo povo que se aglomerara em torno deles.
Momentos depois, uma verdadeira guerra se empenhava sobre os escombros do Convento de Santo Antônio, demolido pelos "ingleses". A "canalha" santista corria os profanadores, operários, feitores e engenheiros, violentamente, lutando para
expulsá-los da proximidade da relíquia da cidade, da igreja branca onde estava o santo milagroso.
A polícia dessa vez não aparecera, "informada" da sagrada missão dos eternos arruaceiros.
As lutas cessaram por um ano, pois tanto durou o encargo da vigilância e ronda popular à igreja tradicional. Valongueiros e Quarteleiros se revezaram durante meses inteiros, sem patrulhas alertas, impedindo uma ação imprevista dos operários a
soldo, até que o Aviso imperial de 1861 veio coroar sua ação, garantindo a existência do monumento histórico-religioso em mãos da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência.
Enganaram-se, porém, os que pensavam que findas estavam as divergências do Valongo e dos Quartéis. As rivalidades continuaram logo no dia seguinte, as desordens também, e perduraram, até que a Campanha da Abolição, que tanto precisava da Estrada
do Vergueiro, da Estação da Inglesa, do Jabaquara, como do porto, dos despachantes, dos Quartéis, e de todos os elementos populares da cidade, a todos confundiu e abrangeu, irmanando-os para o mesmo e sagrado fim, lançando o esquecimento sobre
quase trinta anos de ódios e de lutas injustificáveis.
...O encontro com a "tropa" adversária deu-se na Rua Santo Antonio... Não pareciam os
inimigos figadais da véspera e de tantos anos...
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