BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM -
Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...
Em maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia
publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e
prefácio de Baptista Pereira.
O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas
páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 185 a 190:
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Lendas e Tradições
de Uma Velha Cidade do Brasil
Francisco Martins dos Santos |
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[19] O "pai dos ratos"
Quem não conhecia, na Santos de 1880, "seo" Maneco Munguata? Além de
ser de uma velha estirpe santista, ele era um homem predestinado, cheio de curiosas extravagâncias, de uma bondade que tocava o absurdo, figura humanizada do amor ao próximo, da caridade, e por isso todos o conheciam e estimavam.
Não contente em dividir quanto tinha e não tinha entre os que precisavam, levava os extremos do seu carinho a todos os animais, até mesmo os imundos.
Contam que já naquela época fora cogitação da Câmara instituir a 'carrocinha dos cachorros' para aliviar a cidade das maltas de cães errantes que infestavam as ruas, mas o protesto do 'seo' Munguata, aos jornais, ao presidente da Câmara e aos
políticos conservadores, impedira a consumação daquele 'crime'.
Gatos estropiados, cães cegos e paralíticos, aves doentes, lepradas, animais de toda casta, quem os tinha assim, doentes, velhos, imprestáveis, e titubeava de pena entre a eliminação e o abandono, mandava-os diretamente à casa de 'seo' Munguata,
com um recadinho, ou mandava soltá-los junto á sua porta, e o bom velho a todos recolhia, como num seio de Abraão, para a cura ou para a morte descansada e suave. Muita gente fazia isso de pilhéria, acompanhando os animais com versinhos de
debique, mas 'seo' Maneco desprezava a miséria, olhando apenas o seu novo doente.
Quando ele morreu, um cão de estimação que possuía, apaixonado com o desaparecimento do amigo e dono, não quis mais viver também e, deitando-se sobre a sua campa no Paquetá, deixou-se morrer à fome, obstinadamente, embora tentassem impedi-lo do
'suicídio', e toda a cidade ficou sabendo disso,q ue foi como uma lição do irracional à sociedade dos humanos.
Pois foi assim, nessa caridade amplíssima, que 'seo' Maneco Munguata se tornou o "pai dos ratos", os imundíssimos e detestáveis bicharocos que assombravam a cidade a cada passo com o fantasma da bubônica.
Ele pensou que todos os animais da cidade tinham sua relativa liberdade, seu maior ou menor direito de convívio com os homens, até mesmo os insetos nojentos; as moscas, os mosquitos, as baratas; transmissores de moléstias, imundos, repelentes, e
no entanto só os ratos não tinham esse direito, só eles viviam corridos, metidos na treva, escondidos nos buracos, transformados em ladrões noturnos, corridos por negros e brancos, por moços e velhos e até pelas crianças, sempre tão propensas ao
afago indistinto, ao carinho a todas as espécies... Pensando assim, foi que ele resolveu transformar os ratos de Santos numa "classe digna", provando a sua inofensividade, a sua sociabilidade, igual ou superior à de muitos outros animais,
fazendo-os ao mesmo tempo deixar a rapacidade a que os obrigava a oposição sistemática dos homens.
Tempos depois, quem passasse pela escuridão da antiga Rua dos Quartéis, a atual Xavier da Sislveira, naquele tempo em que não havia cais e as águas vinham marulhar nos lodos da velha rua, junto às raras casas daquele ponto, veria todas as noites,
ali pelas oito horas, um quadro estranho e verdadeiramente dantesco.
Dois negros chegavam, tirando aos ombros um varal de onde pendia uma grande vasilha de comida e restos de cozinha; depositavam no lajedo da calçada a carga trazida, e o 'seo' Munguata, que os seguia pouco atrás, aproximava-se, chafurdava as mãos
na lavagem sórdida, e pronunciava com sua voz cava e soturna alguns nomes, aparentemente cabalísticos:
- Timóteo! Catarina! Sizenando! Lofredo! Tó..tó..tó.
Seguia-se um segundo de impressionante silêncio e, subitamente, pouco ao longe, um guincho longo e fino, soava na treva, por detrás dos muros, como um toque de corneta liliputiana.
Era a trombeta dos murídios... o toque de reunir dos ratos santistas.
Um primeiro ratão surgia, indeciso, e, de repente, de todos os lados, de todas as tocas, de todas as calhas, de todos os canos, de todas as raízes, de todos os muros, surgiam, dezenas, centenas, talvez milhares de ratos, de todos os tamanhos,
rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas, em disputa aos melhores lugares.
Aquela vara imensa era uma família para ele, e 'seo' Munguata sorria, punha-se de cócoras, dava palmadinhas nos maiores, afagava os pequeninos, paternalmente, com pena de que o mundo não os compreendesse assim, como ele compreendia. 'Seo' Maneco
já conhecia a muitos dos murídios e por isso conversava com eles:
- Seu maganão! Você ontem não veio!... E você, Catarina? E você 'seo' Timóteo! Seus malandros... precisam vir sempre, ouviram?
Talvez o julgassem louco, mas, sem dúvida alguma era extraordinário o que ele fazia; era 'terrivelmente' humana a sua obra, e, se nos lembrarmos de que aos ratos brancos, que todavia são ratos, tratam os homens com tanta deferência, dando-lhes
até mesmo as honras de exibição em salas e teatros, concluiremos sem dúvida que a razão plena e absoluta estava com aquele homem que, por mais um pouco que durasse, talvez conseguisse a reabilitação dos ratos vagabundos, dirigindo-os e dando-lhes
uma utilidade.
Quando julgava terminado o festim de todas as noites, 'seo' Munguata batia as palmas; era o "até amanhã"... e a rataria, em massa, cuinhando, saltarelhando, desaparecia como por encanto.
Isso durou anos, não muitos, porque o estranho benfeitor de homens e de animais não foi além. O velho Munguata desapareceu com a cidade velha, levando com ele uma prática em que não teve sucessor. os ratos debandaram. Veio logo o progresso, a
expansão, veio o cais, a Saúde Pública, veio tudo o que antes não existia... só não veio um Munguata.
...E de repente, de todos os lados... surgiam dezenas, centenas, talvez milhares de
ratos... rodeando o velho, trepando-lhe pelas pernas...
Imagem publicada na página 187
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