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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 169 a 175:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[17] O Quebra-Lampiões

Desde setembro de 1872 que a "Cia. Água, Gás, Luz e Bondes" dera a Santos aqueles bondinhos lerdos, sonolentos, que saíam do Itororó e se iam, à força de dois pobres burros, Rua da Independência (depois Otaviana e hoje Conselheiro Nébias) acima, até a estaçãozinha do Boqueirão, fronteira à chácara dos Carneiro Bastos.

Sofrível ou não, o seu serviço ia sendo digerido pelo povo, como "grandes melhoramentos" para quem, pouco antes, só tinha os sessenta lampiões de azeite de 1830, "que se apagavam nas noites de luar" por economia; os pés que Deus lhe dera para caminhar; e as disputadas águas das "Duas Pedras", "Itororó", "São Jerônimo", "São Bento" e dos chafarizes, tiradas a unha, pelos negros, para matar a sede e "refrigerar" o corpo.

E assim fora até 1884. nesse ano, diminuíra tanto a água nos chafarizes públicos que o povo, quase todo, em procissão, via-se obrigado ao serviço da colheita do precioso líquido nas fontes muito mais distantes, em esperas prolongadas e irritantes, aguardando cada qual sua vez. Nem mesmo as famílias ricas, que dispunham de torneiras em casa, mercê dos primeiros encanamentos "ingleses", dispunham da água que pagavam a bom dinheiro, em câmbio inglês.

Tornara-se raríssimo, então, o poder ter uma moringa cheia em casa, já não se falando em bilhas e latões, para outros misteres, e a higiene do corpo andava atrasadinha... tanto como a própria água nos canos da Companhia.

A princípio, julgara o povo que o fato fosse consequência de alguma seca nos mananciais ou mesmo alguma anormalidade passageira, de ordem técnica. Depois, com o prolongamento da coisa, começaram os protestos, uma vez que a Companhia não vinha a público dar uma satisfação aos contribuintes e ao "Zé povinho".

O "Diário de Santos", em seus artigos de redação, bradava contra a anomalia; os particulares punham "a pedidos" no mesmo jornal e em outros, reclamando contra o descaso da Cia., e os populares, por fim, rugiam em magotes numerosos, pelas esquinas e praças, protestando contra os homens da Câmara que haviam assinado o contrato apresentado pelo gerente da Cia. - um sr. H. Heyland -, inglês que, o quanto tinha de magro, tinha de grande em prol das finanças da empresa sob sua direção.

O tal sr. Heyland fazia-se surdo ante os clamores da população sedenta e cheia de calor, sem explicar-se ao menos, como uma satisfação. A Câmara, por sua vez, que aceitara o contrato modificando o modo de abastecer a população, anteriormente combinado, punha-se na moita, mas o povo parecia não estar mais disposto a sujeitar-se ao pinga-pinga maronhento das torneiras, e ao mutismo líquido... dos chafarizes.

Reuniram-se os conspiradores de todos os bairros, e havia-os bons em Santos naquela época; os mesmos que já andavam às voltas com a campanha dos escravos, às turras com a polícia e os escravocratas.

Miguel Ferreira e Henrique Brugmann, entretanto, tomando mais a peito o caso, resolveram logo convocar um "meeting" de protesto e o convocaram para a noite de 23 de dezembro daquele ano, na Praça dos Andradas. Veriam ali, às barbas da polícia, o meio melhor para liquidar a questão.

Miguel Ferreira falou às massas, instigou, convidou o povo a tomar uma desforra contra tal atitude dos "ingleses". Henrique Brugmann pilheriou, lembrando ao povo, como bom teuto-brasileiro que era, que ninguém mais usasse água, passando a consumir "cerveja de bomba" para bebida e banho...

O povo ria e imprecava ao mesmo tempo, inspirado nos arrebatamentos de Ferreira e nas pilhérias de Brugmann, e nada pôde ser resolvido ali.

Marcou-se novo "meeting" no antigo Largo da Misericórdia.

No Largo da Coroação, a coisa mudou de figura. Novos e inflamados oradores discursaram. Constantino de Mesquita foi o último que falou, irritado, violento, endemoninhado, preconizando uma demonstração de força, o empastelamento da Companhia, para demonstrar aos "ingleses" que com o povo santista não se brincava...

Na esquina de baixo, onde hoje está o novo Paço Municipal, havia um estabelecimento de secos e molhados do "Zé Botinha", um estimado comerciante português, e à porta dele lá estava uma carrada de lenha miúda, tarolinhos roliços de cambuí, formando um monte na sarjeta, à espera de recolhimento na manhã seguinte.

Ao meio dos discursos, porém, quando mais inflamado estava o respeitável "auditório", uma voz qualquer, no meio do povo, gritou:

- Quebra,a.a.a.a!

Outra voz mais distante secundou:

- Viva o Zé Botinha!

Era o mesmo que dizer: - Viva a lenha do Zé Botinha! E, num abrir e fechar de olhos, aquelas centenas de tarolinhos pesados despareceram na multidão. Foi como um rastilho. Não ficou um lampião por quebrar, ali na praça, na Rua do General Câmara, no Largo do Rosário, no Beco do Consulado, na Rua Direita, na Praça da Matriz, no Largo dos Andradas, na Rua do Rosário, na das Flores,na cidade inteira. Só escaparam os lampiões da Santa Casa da misericórdia. E a onda de gente, sempre aos gritos de "quebra!", continuava a rolar pelas ruas, crescendo, crescendo cada vez mais, como uma procissão diabólica.

A força da polícia se recolhera toda ao quartel, por ordem do delegado, para evitar mal maior...

Passava um bondinho da Barra.

- Quebra! - gritaram todos, e o bondinho foi atacado, desatrelado, arrastado para o cais da Alfândega e atirado ao mar. Outro bonde foi atacado, mais outro e outros mais, todos que puderam ser encontrados o povo quebrou, atirando a carcaça desmantelada ao estuário - à praia, como diziam -; até os trilhos arrancaram, e nos chafarizes não ficou uma torneira para lembrança...

Depois de concluída a destruição da cidade, o povo dirigiu-se para o Boqueirão, para a casa de Heyland, a fim de lhe dar uma ensinadela. Heyland, porém, avisado do estouro, e vendo que na "Índia brasileira" a coisa não era brincadeira, já se tinha passado de armas e bagagens, com mulher e filhos, para a Fortaleza da Barra Grande...

Conta a tradição que a mulher de Heyland, apesar de protestante, sabedora do que ocorria, fez uma promessa ao Senhor dos Passos, obrigando-se, caso não acontecesse nada ao marido, a iluminar com arcos de luz as ruas principais de Santos, por onde passasse todos os anos a sua procissão tradicional.

***

Nunca mais houve falta de água em Santos e, enquanto Mr. Heyland esteve à testa da Companhia, embora contra a sua vontade, a promessa de sua mulher foi cumprida, passando o Senhor dos Passos a ter arcos de gás na Rua do General Câmara, na Rua e no Largo do Rosário, à passagem de suas famosas procissões.

Depois disso, quantas cidades no Brasil já não precisaram também de um "quebra-lampiões"?...

...Foi como um rastilho. Não ficou um lampião por quebrar...

Imagem publicada na página 173