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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 162 a 168:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[16] Um soldado santista

As tradições contam-se por fatos e por indivíduos. A guerra do Paraguai, por exemplo, é uma das grandes tradições do Brasil, mas os feitos de seus soldados são tradições que pertencem particularmente às famílias e às cidades de onde eles saíram, não importando aí que os fatos que os glorificaram ocorressem tão longe delas e do seu termo.

Santos foi uma das grandes contribuintes da guerra de 1865. A então pequena cidade do litoral paulista mandou muita gente para os campos do Sul, entre brancos e negros, soldados, recrutas forçados e voluntários, transformando-se por muito tempo em campo de concentração subsidiário. Muitos oficiais seus filhos contavam-se entre os combatentes na guerra famosa e entre eles podemos indicar de pronto o tenente José Ricardo da Costa Aguiar, da Marinha, morto em combate, e o sargento, mais tarde marechal, Pêgo Júnior, o tenente Campos Mello, o coronel Joaquim Antônio Dias, o general Afonso Pinto de Oliveira, e o brigadeiro José Ferreira no Exército.

Este último é a tradição a que nos vamos referir. José Ferreira era tenente ao declarar-se a guerra contra o Paraguai. Morava com sua mulher numa casinha humilde da Rua do Rosário. Encarregou-o o governo do serviço de recrutamento no litoral. Bem se sabe o que era tal coisa naquele tempo; afora as naturais exceções, era o mesmo que pegar gente a laço.

José Ferreira desempenhou-se a contento e mereceu elogios por isso. Durante algum tempo foi instrutor daqueles soldados bisonhos na prática das marchas, evoluções, e na lida das armas. Por fim, partira para a frente, chefiando um daqueles corpos heterogêneos que o instinto de conservação diante do espetáculo da crueldade paraguaia, mais que qualquer outro fator, transformaria em verdadeiras legiões de heróis.

Ao cabo de três anos de guerra, José Ferreira conquistara vários galões por atos de bravura. Passo da Pátria, Tuiuti, Humaitá, cada batalha importante valia-lhe um elogio em ordem do dia e um começo de promoção, até que, ao final de 1868, já era coronel.

Ao fim desse ano verificava-se a famosa passagem de Itororó. Permanecia a coluna brasileira do general Argolo encurralada à frente do histórico desfiladeiro. Na manhã de 6 de dezembro a artilharia paraguaia devastava os batalhões do Brasil, colocada a cavaleiro da ponte e da garganta. Os técnicos ingleses, franceses e americanos ouvidos na ocasião reputavam intransponível o passo paraguaio, e assim parecia de fato. As companhias caíam quase completas "como se todos os camaradas estivessem ligados entre si por uma mesma corrente fulminante", contava um observador. "Inimigos eram tão perto de inimigos, que de lado a lado ouvia-se o rumor confuso dos comandos e dos gritos que o estrondo da ação dominava", dizia adiante o mesmo observador de guerra.

Várias cargas de infantaria e cavalaria foram tentadas pelos brasileiros, mas a todas repeliram sempre as baterias paraguaias, superiormente colocadas sobre o pequeno morro, do outro extremo.

Sabedor da ação, acorreu ao setor tornado vital para toda a campanha o marquês de Caxias, generalíssimo. Rapidamente, o notável cabo de guerra compreendeu a situação. ordenou que Osório seguisse com o 1º corpo de exército pela direita do inimigo, contornando-o, a ver se podia colhê-lo pela retaguarda, mas foi em vão; o terreno vencia qualquer plano; a cadeia imensa de alagadiços impedia o envolvimento. O nervosismo dominava comandantes e comandados. O 51º corpo de voluntários, ao mando do bravo coronel Frias Vilar, precipitou-se forçando a passagem; formou em quadrado e transpôs a ponte. Poucos escaparam à aventura heroica. A ação não podia ser parcial; só um milagre de conjunto poderia tentar o quase impossível. A derrota brasileira parecia inevitável.

Foi nesse transe, nesse momento soleníssimo, que Caxias, com o seu grande tino de guerra e sua incrível coragem, resolveu a situação. Desembainhando a espada, o general brasileiro pôs-se de pé nos estribos da montaria e gritou para os soldados:

- O vosso general vai transpor a ponte! Se sois soldados brasileiros conto convosco! (sic)

Conta o nosso observador de guerra, que é o capitão Ferreira de Araújo, do 2º Corpo do Exército da Vanguarda, que não se pode descrever precisamente o efeito daquelas palavras. Dir-se-ia que o solo, oscilado por um tremor subterrâneo, fizera estremecer e rodar a multidão dos bravos. Um viva enorme ao Brasil, ao imperador e ao general Caxias reboou como um presságio de vitória. Duas detonações paraguaias precipitaram os acontecimentos.

As primeiras tropas a embarafustar pelo desfiladeiro a marche-marche, foram as do então coronel José Ferreira, cujo cavalo, no primeiro avanço, teve as pernas cortadas a metralha.

De roldão, aquela massa formidável atirou-se a baionetas caladas contra as posições paraguaias. Pareciam legiões de doidos endemoninhados. Não houve força que resistisse ao imprevisto da operação; o efeito da loucura brasileira foi surpreendente, mas, quando os primeiros soldados do Brasil já transpunham as trincheiras inimigas, o heroico oficial de Santos entregava seu sangue à vitória; abatia-o traiçoeira machadinha paraguaia.

Momentos depois, a bandeia brasileira tremulava no alto da posição inimiga. Estava dado um dos passos definitivos para o triunfo de 1870 sobre os milhares de cadáveres nacionais entre os quais se contava o coronel Frias Vilar, o major Eduardo da Fonseca, o tenente-coronel Azevedo, o tenente-coronel Guedes, o coronel Fernando Machado, tantas outras patentes esquecidas e José Ferreira, promovido a brigadeiro depois de morto.

***

José Ferreira foi tradição em Santos durante muitos anos. Sua viúva ficara sempre sozinha, naquela casa triste da Rua do Rosário; os santistas viam nela a sombra venerável do herói desaparecido e viam na casa o santuário, o altar da tradição. Quando os defrontavam, a uma e outra, os homens bons da cidade se descobriam em respeito.

Constantino Xavier, soldado da velha guarda, anotador paciente dos vultos e das tradições da terra, foi o último a esquecer o herói e sua mulher e o último a descobrir-se talvez diante de sua casa. A República, em seu apogeu, fez esquecer tudo aquilo. Sobre a casa humilde do brigadeiro cresceu um imenso e simbólico armazém de café. O coronel Constantino sobreviveu a tudo e teve o amargor de assistir o esquecimento. Dizia isso três dias antes de morrer, numa carta que nos escreveu, há anos.

...Mas, quando os primeiros soldados do Brasil já transpunham as trincheiras inimigas, o heroico oficial de Santos entregava seu sangue à vitória...

Imagem publicada na página 167