[15] O tesouro de Cavendish ou A Ilha da Ilusão
A Santos de 1590 vivia cheia de maus presságios. Sombras corsárias
pairavam sobre o moral de seu povo. Drake e Fenton eram os últimos fantasmas do passado que assombravam a história da sua costa, e com muita razão viviam na lembrança da gente da terra, como símbolos da conquista e do corso. Drake, desde 1588,
era o novo almirante da Inglaterra, vencedor do orgulhoso Filipe II da Espanha, com o arrasamento da "Invencível Armada"; Fenton talvez nem mais existisse, mas, sob o domínio da Castela vencida, o Brasil verde e encantado, objeto da cobiça de
tantas potências, tinha suas águas inteiramente livres à sanha dos homens da Albion. Daí, os receios da gente santista.
A vilazinha americana, que tantos heróis opusera aos gigantes do corso, temia então, franqueadas suas águas à rapacidade pirata, o inesperado de uma surpresa, com todo o seu cortejo de horrores.
Apesar das possibilidades de invasão, as vilas litorâneas viviam quase desguarnecidas, sem artilharia, sem fortificações suficientes e sem homens capazes. Santos não fugia à regra e, já em dezembro daquele ano de 1590, surgiam em sua barra os
terríveis galeões de Cook, lugar-tenente de Cavendish. Surgiram ali e, com a noite escura,habilidosamente, penetraram pelo porto, burlando a vigilância do mal guarnecido Forte de Santo Amaro.
Com tal manobra e apanhada a vila de surpresa, fácil foi a Cook o desembarque; uma pequena resistência junto ao Fortim da Praça, o pânico, a fuga de alguma gente, e o pirata inglês tomava posse da vila heroica, onde Braz Cubas e José Adorno,
campeões de tantas jornadas passadas, viviam seus últimos anos veneráveis.
O que foi a estada de Cook em Santos, conta-nos a história. Foi um mês e muito de humilhações e vergonhas. Batidos de privações, varados de necessidades, os homens de Cavendish, inesperadamente instalados na abastança da vila indefesa,
esqueceram-se do chefe que os esperava na distância dos mares, e ali permaneceram entregues ao gozo do momento, à embriaguez, ao saque, à bacanal e à sevícia, como dominadores absolutos, brindando em sarcasmo ao rei que já não podia socorrer sua
desguarnecida colônia.
Um dia surgiu em Santos o almirante Cavendish. Chegava raivoso, magoado com o lugar-tenente que não suprira a Armada corsária, dos mantimentos a que fora mandado; sua raiva, entretanto, fez-se sentir mais sobre a vila brasileira que sobre aquela
parte de sua gente, e aí, novos saques, novas depredações, sacrilégios e incêndios se perpetraram.
Famílias inteiras refugiavam-se nos matos e sítios vizinhos, sem tempo de carregar todos os seus haveres, e muito ouro do Jaraguá e muita prata do Peru, que existiam em boa quantidade na vila, passaram para as arcas do corsário, arrancados ás
moradias e às igrejas.
Só após dois meses de ocupação lançou-se Cavendish barra a fora. Novas aventuras o seduziam e chamavam; novas vilas incluiu em seu programa rapace, e o litoral das Capitanias brasileiras sofreu sua visita inesperada. Brasileiros e portugueses,
tamoios e mais indígenas da costa, auxiliados pela pouca força estacionada nos vários pontos, fizeram a resistência da terra nova aos ataques ingleses.
A resistência foi além dos cálculos de Cavendish, e o grande corsário, irritado, chefiava em pessoa as investidas contra as vilas visadas; mas, nessa lida, um imprevisto surpreendeu-o: a febre, a febre da terra, com seus acessos e tremores,
assaltou-o implacável.
Sobre esse mal, outro mal pronunciou-se nele; uma flecha envenenada ferira-o num braço e punha-lhe em xeque a vida, enchendo-lhe o corpo de chagas. Quebrava-se então a violência impune do corsário. Cavendish sentia-se abalado, alquebrado de
forças, assaltado pela primeira vez pelos pavores da morte.
Rumou novamente para Santos. Obrigaria o Hospital da Misericórdia a tratá-lo daqueles males; mas, em Santos, então, a resistência já estava organizada. Santo Amaro, guarnecida e artilhada, estava alerta, e as forças da vila, reunidas e armadas,
aumentadas com outras forças descidas de Piratininga, prepararam ao inglês uma recepção de fogo. Os primeiros homens do pirata que pisaram a praia da barra foram dominados, vencidos, e suas cabeças ensanguentadas foram enfeitar as pontas dos
mastros, fincados nos baluartes da vila. As baterias do forte novo ribombaram lá no alto do morro, e Cavendish recuou, furioso, manobrando para Oeste.
São Vicente sofreu então as raivas do pirata. Antes que a gente de Santos pudesse socorrê-la, a pequena vila vizinha viu-se invadida de embarcações pejadas de brutamontes armados; viu-se saqueada, depredada e incendiada em grande parte.
Após o feito, indigno da glória de um almirante, os galeões de Cavendish, como grandes aves de rapina, saíram barra a fora, deixando atrás desolações e sustos.
Partia a Armada corsária. Estava ao largo da Bertioga. Cavendish piorava, o corpo aberto em feridas pungentes; suas dores eram terríveis, acompanhadas de estertores e convulsões, que ele afogava em urros, blasfêmias e brutalidades. Delirava o
grande corsário, perturbado pelas intermitências da febre, pelo latejamento das chagas, e seus homens sofriam o aumento brutal da sua tirania. Sentia-se tombar o gigante.
Pela primeira vez, ele pensou nos tesouros que acumulava no bojo da nau capitânia. Sentindo o horror da aproximação dos seus últimos dias, longe da pátria, longe dos ingleses, longe de um lar que tivera outrora, e que entrevia na distância da
recordação através da primeira fraqueza que lhe invadia os pensamentos, perto apenas daquelas feras que ansiavam claramente por aquele momento, para o substituírem e para se apossarem das riquezas acumuladas em suas áreas; naquele terrível estado
de espírito, Cavendish sentiu a vontade de pôr todo o seu tesouro a salvo, para ele mesmo, se vencesse o transe, se vivesse, e para ninguém, se sucumbisse aos males que o atormentavam.
Na altura em que se achava, ao largo da ilha de Santo Amaro, o pirata deitou um olhar para a terra e viu as linhas suaves, tranquilas, da Moela, a ilhota santista, deserta, insuspeita. Mandou descer para um batel as arcas dos despojos daqueles
últimos anos, o tesouro que acumulara em saques e abordagens. Desceu também, com alguns homens desarmados, e, ordenando a Cook que se conservasse naquele ponto, seguiu para longe, disfarçando o itinerário nas sinuosidades da costa. Por fim,
contornou a ilhota escolhida, fora das vistas dos seus galeões distantes. E o chão da Moela abriu-se num certo ponto, para receber o tesouro do pirata.
Finda a cerimônia, Cavendish, friamente como sempre, a golpes de sua adaga de combate, pôs-se a abater os homens que levara, eliminando as únicas testemunhas do fato consumado; abateu o primeiro, o segundo, o terceiro, mas, o último, levado pelo
terror, pôs-se a correr encosta abaixo, e lançou-se à água num mergulho profundo. O corsário teve um acesso; a febre assaltou-o entre os assomos da raiva; pôs-se a tremer, impossibilitado de um movimento, os olhos injetados e quase fora das
órbitas, vendo o homem a afastar-se cada vez mais, nadando precipitadamente, até atingir Santo Amaro e internar-se nas matas da vizinhança.
***
Quinze anos decorreram sobre os fatos de 1590. S. Paulo de Piratininga embalava, então, a meninice da era dos bandeirantes. Integrado em sua vida, um cidadão
inglês, ferreiro e fundidor, dos únicos de toda a Capitania, gozava de inteira paz e boas amizades. De sua utilidade à vida colonial advinham-lhe as boas relações que mantinha ali e as grandes possibilidades de fortuna que sorriam para a sua
vida. Estava em Piratininga havia mais de quatorze anos. Ao chegar, confessara-se católico e contara uma história a seu jeito, que fora aceita pela utilidade que logo lhe adivinharam para a vida agrícola do planalto. casara havia dez anos, com
mulher da terra, filha de portugueses; uma d. Úrsula, e era feliz, ajudado por ela em seu mister e em outras coisas domésticas.
Esse inglês não era outro senão o homem de Cavendish, escapo à sua adaga assassina. Pela proteção de John Withall, outro inglês de Santos, ligado à gente mais poderosa da vila litorânea, conseguira escapar às indagações da praxe e a uma fatal
investigação em sua entrada na vila santista, e agora ali estava, instalado em sua nova vida, como outro homem.
Taylor, era esse o seu nome, ignorava até então a morte de Cavendish, ocorrida ainda na costa brasileira,d ias depois dos fatos da Moela, e conservava por isso, em seu íntimo, o indisfarçável terror do famoso corsário. Se fora morar no planalto,
fora apenas inspirado pelo medo,para escapar à sanha vingadora do antigo chefe, que supunha capaz de voltar a Santos e invadi-la novamente, só para apanhá-lo.
Taylor fizera um roteiro do ponto exato em que ajudara a enterrar o tesouro, e guardava-o e quase completo segredo. Quase completo, porque uma pessoa, ainda que vagamente, sabia da existência dele, e era sua mulher, d. Úrsula, em quem confiava de
cérebro e coração. Um dia ele se valeria de tal roteiro. Quando tivesse a certeza de que Cavendish estava morto, voltaria à ilha santista, e se lá estivesse o tesouro, levaria consigo a fortuna imensa, para tornar-se o grande potentado, o Creso
de Piratininga, a nova pátria sua e dos filhos que ainda contava ter.
Sutil, insidiosa, uma força, porém, velava sobre o passado de Taylor e em torno ao segredo que envolvia a sua vinda ao Brasil - era a Companhia de Jesus.
Padres e familiares do Santo Ofício, disfarçadamente, insinuados pelo Provincial da ordem, faziam-se amigos de Taylor para sondá-lo e à mulher, tentando desvendar o passado do inglês e o segredo que os jesuítas sentiam existir dentro dele.
D. Úrsula era muito católica, seu confessor era jesuíta; uma nova orientação foi, ao que parece, adotada.
Certo dia, o roteiro desapareceu. Taylor só dois dias depois deu por isso, levado pelas estranhas atitudes de sua mulher, por seu agastamento, por seus sustos noturnos.
O inglês ficou desesperado; sentiu-se despojado de todos os sonhos de quinze anos, sentiu-se descoberto em sua origem e apanhado nas malhas terríveis do Santo Ofício, e aquilo era, antes de mais nada, o desmoronamento do seu lar de Piratininga.
Mas o antigo pirata enfrentou a situação, resolveu-se a tudo e, reunindo alguns homens de confiança, lançou-se com eles para Santos.
Sobre o litoral o tempo ameaçava; formava-se o temporal no Sudoeste. A intranquilidade do dia inverniço era evidente. Taylor seguiu assim mesmo, embarcado com sua gente numa catraia grande, de aluguel. O inglês ansiava, sofria intensamente, em
sua ambição e em seu afeto, vendo fugir de si as duas coisas que mais prezava no mundo.
Dobravam a ponta da Capetuba; o temporal aproximava-se a galope, por cima do pontal de Itaipu.
Vinha chegando uma embarcação de fora, tocada pelo vento; vinha longe, dobrando a Piraquara, e mal se distinguiam seus tripulantes no agitado do maroiço.
As duas embarcações seguiam em sentido oposto. Taylor teve um sobressalto; pôs-se de pé na catraia, observando a gente que se aproximava:
- São eles! São os jesuítas! (Gritava mentalmente).
Eram realmente jesuítas que vinham de fora da barra; já se divisavam bem. Taylor continuava à espreita. Acabava de ver os caixotes, empilhados ao centro da embarcação.
- O tesouro! Olhem! É o tesouro!
Eram as caixas que ajudara a enterrar. Vinham todas ali, na posse dos homens da Companhia. Os homens da catraia se entreolhavam, não sabiam do que se tratava e julgavam-no ensandecido. Taylor desesperava. Um verdadeiro delírio apossava-se dele,
diante dos companheiros que o acalmavam.
Naquele momento, a natureza pronunciou-se. Trovões fortíssimos rolaram pelo espaço; uma lufada enorme passou para cima da terra, em avalanche, e houve o choque dos elementos, chuvas, vagas e ventos, confundidos na mesma fúria.
Próximo ao barco de Taylor a costa se refrangia, abrindo uma enseada acolhedora, junto à ilha das Palmas. Remaram com força para ela, e a maré levantada mas favorável atirou-os violentamente para dentro da pequena abra.
Instantes depois, do alto da penedia, o inglês encharcado e cada vez mais fustigado pela chuva acompanhava, com olhos aflitos, a marcha desesperada da embarcação jesuítica a subir e a descer, a guinar como joguete à toa no tumulto das vagas, e,
diante de seus olhos, sem que nada pudesse fazer para salvar aquilo que constituíra, durante quinze anos, o seu delírio de grandeza, deu-se, espetacular, o naufrágio dos padres, arrastando para o abismo homens e tesouro. Era o fim.
***
Novamente homiziado nas casas de John Withal, o antigo inglês da vila de Santos, dias depois Taylor, sempre sob sua proteção, embarcava para a Inglaterra, como
tripulante de uma escuna francesa. Deixava para sempre seu calmo lar americano, deixava a esposa brasileira e todas as suas esperanças de reabilitação social, envoltas na lembrança das aventuras corsárias de 1590.
Singrava seu novo barco a barra santista, e lá ficava, sob seus olhares tristes, para trás, para longe da escuna francesa, o perfil da Moela, a ilha da ilusão, e sobre ela, grande, novelesca, a visão sombria de Cavendish.
...E o chão da Moela abriu-se num certo ponto, para receber o tesouro do pirata...
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