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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 149 a 161:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[15] O tesouro de Cavendish ou A Ilha da Ilusão

A Santos de 1590 vivia cheia de maus presságios. Sombras corsárias pairavam sobre o moral de seu povo. Drake e Fenton eram os últimos fantasmas do passado que assombravam a história da sua costa, e com muita razão viviam na lembrança da gente da terra, como símbolos da conquista e do corso. Drake, desde 1588, era o novo almirante da Inglaterra, vencedor do orgulhoso Filipe II da Espanha, com o arrasamento da "Invencível Armada"; Fenton talvez nem mais existisse, mas, sob o domínio da Castela vencida, o Brasil verde e encantado, objeto da cobiça de tantas potências, tinha suas águas inteiramente livres à sanha dos homens da Albion. Daí, os receios da gente santista.

A vilazinha americana, que tantos heróis opusera aos gigantes do corso, temia então, franqueadas suas águas à rapacidade pirata, o inesperado de uma surpresa, com todo o seu cortejo de horrores.

Apesar das possibilidades de invasão, as vilas litorâneas viviam quase desguarnecidas, sem artilharia, sem fortificações suficientes e sem homens capazes. Santos não fugia à regra e, já em dezembro daquele ano de 1590, surgiam em sua barra os terríveis galeões de Cook, lugar-tenente de Cavendish. Surgiram ali e, com a noite escura,habilidosamente, penetraram pelo porto, burlando a vigilância do mal guarnecido Forte de Santo Amaro.

Com tal manobra e apanhada a vila de surpresa, fácil foi a Cook o desembarque; uma pequena resistência junto ao Fortim da Praça, o pânico, a fuga de alguma gente, e o pirata inglês tomava posse da vila heroica, onde Braz Cubas e José Adorno, campeões de tantas jornadas passadas, viviam seus últimos anos veneráveis.

O que foi a estada de Cook em Santos, conta-nos a história. Foi um mês e muito de humilhações e vergonhas. Batidos de privações, varados de necessidades, os homens de Cavendish, inesperadamente instalados na abastança da vila indefesa, esqueceram-se do chefe que os esperava na distância dos mares, e ali permaneceram entregues ao gozo do momento, à embriaguez, ao saque, à bacanal e à sevícia, como dominadores absolutos, brindando em sarcasmo ao rei que já não podia socorrer sua desguarnecida colônia.

Um dia surgiu em Santos o almirante Cavendish. Chegava raivoso, magoado com o lugar-tenente que não suprira a Armada corsária, dos mantimentos a que fora mandado; sua raiva, entretanto, fez-se sentir mais sobre a vila brasileira que sobre aquela parte de sua gente, e aí, novos saques, novas depredações, sacrilégios e incêndios se perpetraram.

Famílias inteiras refugiavam-se nos matos e sítios vizinhos, sem tempo de carregar todos os seus haveres, e muito ouro do Jaraguá e muita prata do Peru, que existiam em boa quantidade na vila, passaram para as arcas do corsário, arrancados ás moradias e às igrejas.

Só após dois meses de ocupação lançou-se Cavendish barra a fora. Novas aventuras o seduziam e chamavam; novas vilas incluiu em seu programa rapace, e o litoral das Capitanias brasileiras sofreu sua visita inesperada. Brasileiros e portugueses, tamoios e mais indígenas da costa, auxiliados pela pouca força estacionada nos vários pontos, fizeram a resistência da terra nova aos ataques ingleses.

A resistência foi além dos cálculos de Cavendish, e o grande corsário, irritado, chefiava em pessoa as investidas contra as vilas visadas; mas, nessa lida, um imprevisto surpreendeu-o: a febre, a febre da terra, com seus acessos e tremores, assaltou-o implacável.

Sobre esse mal, outro mal pronunciou-se nele; uma flecha envenenada ferira-o num braço e punha-lhe em xeque a vida, enchendo-lhe o corpo de chagas. Quebrava-se então a violência impune do corsário. Cavendish sentia-se abalado, alquebrado de forças, assaltado pela primeira vez pelos pavores da morte.

Rumou novamente para Santos. Obrigaria o Hospital da Misericórdia a tratá-lo daqueles males; mas, em Santos, então, a resistência já estava organizada. Santo Amaro, guarnecida e artilhada, estava alerta, e as forças da vila, reunidas e armadas, aumentadas com outras forças descidas de Piratininga, prepararam ao inglês uma recepção de fogo. Os primeiros homens do pirata que pisaram a praia da barra foram dominados, vencidos, e suas cabeças ensanguentadas foram enfeitar as pontas dos mastros, fincados nos baluartes da vila. As baterias do forte novo ribombaram lá no alto do morro, e Cavendish recuou, furioso, manobrando para Oeste.

São Vicente sofreu então as raivas do pirata. Antes que a gente de Santos pudesse socorrê-la, a pequena vila vizinha viu-se invadida de embarcações pejadas de brutamontes armados; viu-se saqueada, depredada e incendiada em grande parte.

Após o feito, indigno da glória de um almirante, os galeões de Cavendish, como grandes aves de rapina, saíram barra a fora, deixando atrás desolações e sustos.

Partia a Armada corsária. Estava ao largo da Bertioga. Cavendish piorava, o corpo aberto em feridas pungentes; suas dores eram terríveis, acompanhadas de estertores e convulsões, que ele afogava em urros, blasfêmias e brutalidades. Delirava o grande corsário, perturbado pelas intermitências da febre, pelo latejamento das chagas, e seus homens sofriam o aumento brutal da sua tirania. Sentia-se tombar o gigante.

Pela primeira vez, ele pensou nos tesouros que acumulava no bojo da nau capitânia. Sentindo o horror da aproximação dos seus últimos dias, longe da pátria, longe dos ingleses, longe de um lar que tivera outrora, e que entrevia na distância da recordação através da primeira fraqueza que lhe invadia os pensamentos, perto apenas daquelas feras que ansiavam claramente por aquele momento, para o substituírem e para se apossarem das riquezas acumuladas em suas áreas; naquele terrível estado de espírito, Cavendish sentiu a vontade de pôr todo o seu tesouro a salvo, para ele mesmo, se vencesse o transe, se vivesse, e para ninguém, se sucumbisse aos males que o atormentavam.

Na altura em que se achava, ao largo da ilha de Santo Amaro, o pirata deitou um olhar para a terra e viu as linhas suaves, tranquilas, da Moela, a ilhota santista, deserta, insuspeita. Mandou descer para um batel as arcas dos despojos daqueles últimos anos, o tesouro que acumulara em saques e abordagens. Desceu também, com alguns homens desarmados, e, ordenando a Cook que se conservasse naquele ponto, seguiu para longe, disfarçando o itinerário nas sinuosidades da costa. Por fim, contornou a ilhota escolhida, fora das vistas dos seus galeões distantes. E o chão da Moela abriu-se num certo ponto, para receber o tesouro do pirata.

Finda a cerimônia, Cavendish, friamente como sempre, a golpes de sua adaga de combate, pôs-se a abater os homens que levara, eliminando as únicas testemunhas do fato consumado; abateu o primeiro, o segundo, o terceiro, mas, o último, levado pelo terror, pôs-se a correr encosta abaixo, e lançou-se à água num mergulho profundo. O corsário teve um acesso; a febre assaltou-o entre os assomos da raiva; pôs-se a tremer, impossibilitado de um movimento, os olhos injetados e quase fora das órbitas, vendo o homem a afastar-se cada vez mais, nadando precipitadamente, até atingir Santo Amaro e internar-se nas matas da vizinhança.

***

Quinze anos decorreram sobre os fatos de 1590. S. Paulo de Piratininga embalava, então, a meninice da era dos bandeirantes. Integrado em sua vida, um cidadão inglês, ferreiro e fundidor, dos únicos de toda a Capitania, gozava de inteira paz e boas amizades. De sua utilidade à vida colonial advinham-lhe as boas relações que mantinha ali e as grandes possibilidades de fortuna que sorriam para a sua vida. Estava em Piratininga havia mais de quatorze anos. Ao chegar, confessara-se católico e contara uma história a seu jeito, que fora aceita pela utilidade que logo lhe adivinharam para a vida agrícola do planalto. casara havia dez anos, com mulher da terra, filha de portugueses; uma d. Úrsula, e era feliz, ajudado por ela em seu mister e em outras coisas domésticas.

Esse inglês não era outro senão o homem de Cavendish, escapo à sua adaga assassina. Pela proteção de John Withall, outro inglês de Santos, ligado à gente mais poderosa da vila litorânea, conseguira escapar às indagações da praxe e a uma fatal investigação em sua entrada na vila santista, e agora ali estava, instalado em sua nova vida, como outro homem.

Taylor, era esse o seu nome, ignorava até então a morte de Cavendish, ocorrida ainda na costa brasileira,d ias depois dos fatos da Moela, e conservava por isso, em seu íntimo, o indisfarçável terror do famoso corsário. Se fora morar no planalto, fora apenas inspirado pelo medo,para escapar à sanha vingadora do antigo chefe, que supunha capaz de voltar a Santos e invadi-la novamente, só para apanhá-lo.

Taylor fizera um roteiro do ponto exato em que ajudara a enterrar o tesouro, e guardava-o e quase completo segredo. Quase completo, porque uma pessoa, ainda que vagamente, sabia da existência dele, e era sua mulher, d. Úrsula, em quem confiava de cérebro e coração. Um dia ele se valeria de tal roteiro. Quando tivesse a certeza de que Cavendish estava morto, voltaria à ilha santista, e se lá estivesse o tesouro, levaria consigo a fortuna imensa, para tornar-se o grande potentado, o Creso de Piratininga, a nova pátria sua e dos filhos que ainda contava ter.

Sutil, insidiosa, uma força, porém, velava sobre o passado de Taylor e em torno ao segredo que envolvia a sua vinda ao Brasil - era a Companhia de Jesus.

Padres e familiares do Santo Ofício, disfarçadamente, insinuados pelo Provincial da ordem, faziam-se amigos de Taylor para sondá-lo e à mulher, tentando desvendar o passado do inglês e o segredo que os jesuítas sentiam existir dentro dele.

D. Úrsula era muito católica, seu confessor era jesuíta; uma nova orientação foi, ao que parece, adotada.

Certo dia, o roteiro desapareceu. Taylor só dois dias depois deu por isso, levado pelas estranhas atitudes de sua mulher, por seu agastamento, por seus sustos noturnos.

O inglês ficou desesperado; sentiu-se despojado de todos os sonhos de quinze anos, sentiu-se descoberto em sua origem e apanhado nas malhas terríveis do Santo Ofício, e aquilo era, antes de mais nada, o desmoronamento do seu lar de Piratininga. Mas o antigo pirata enfrentou a situação, resolveu-se a tudo e, reunindo alguns homens de confiança, lançou-se com eles para Santos.

Sobre o litoral o tempo ameaçava; formava-se o temporal no Sudoeste. A intranquilidade do dia inverniço era evidente. Taylor seguiu assim mesmo, embarcado com sua gente numa catraia grande, de aluguel. O inglês ansiava, sofria intensamente, em sua ambição e em seu afeto, vendo fugir de si as duas coisas que mais prezava no mundo.

Dobravam a ponta da Capetuba; o temporal aproximava-se a galope, por cima do pontal de Itaipu.

Vinha chegando uma embarcação de fora, tocada pelo vento; vinha longe, dobrando a Piraquara, e mal se distinguiam seus tripulantes no agitado do maroiço.

As duas embarcações seguiam em sentido oposto. Taylor teve um sobressalto; pôs-se de pé na catraia, observando a gente que se aproximava:

- São eles! São os jesuítas! (Gritava mentalmente).

Eram realmente jesuítas que vinham de fora da barra; já se divisavam bem. Taylor continuava à espreita. Acabava de ver os caixotes, empilhados ao centro da embarcação.

- O tesouro! Olhem! É o tesouro!

Eram as caixas que ajudara a enterrar. Vinham todas ali, na posse dos homens da Companhia. Os homens da catraia se entreolhavam, não sabiam do que se tratava e julgavam-no ensandecido. Taylor desesperava. Um verdadeiro delírio apossava-se dele, diante dos companheiros que o acalmavam.

Naquele momento, a natureza pronunciou-se. Trovões fortíssimos rolaram pelo espaço; uma lufada enorme passou para cima da terra, em avalanche, e houve o choque dos elementos, chuvas, vagas e ventos, confundidos na mesma fúria.

Próximo ao barco de Taylor a costa se refrangia, abrindo uma enseada acolhedora, junto à ilha das Palmas. Remaram com força para ela, e a maré levantada mas favorável atirou-os violentamente para dentro da pequena abra.

Instantes depois, do alto da penedia, o inglês encharcado e cada vez mais fustigado pela chuva acompanhava, com olhos aflitos, a marcha desesperada da embarcação jesuítica a subir e a descer, a guinar como joguete à toa no tumulto das vagas, e, diante de seus olhos, sem que nada pudesse fazer para salvar aquilo que constituíra, durante quinze anos, o seu delírio de grandeza, deu-se, espetacular, o naufrágio dos padres, arrastando para o abismo homens e tesouro. Era o fim.

***

Novamente homiziado nas casas de John Withal, o antigo inglês da vila de Santos, dias depois Taylor, sempre sob sua proteção, embarcava para a Inglaterra, como tripulante de uma escuna francesa. Deixava para sempre seu calmo lar americano, deixava a esposa brasileira e todas as suas esperanças de reabilitação social, envoltas na lembrança das aventuras corsárias de 1590.

Singrava seu novo barco a barra santista, e lá ficava, sob seus olhares tristes, para trás, para longe da escuna francesa, o perfil da Moela, a ilha da ilusão, e sobre ela, grande, novelesca, a visão sombria de Cavendish.

...E o chão da Moela abriu-se num certo ponto, para receber o tesouro do pirata...

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