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BAIXADA SANTISTA - LIVROS - Docas de Santos
Capítulo 40

Clique aqui para ir ao índicePublicada em 1936 pela Typographia do Jornal do Commercio - Rodrigues & C., do Rio de Janeiro - mesma cidade onde tinha sede a então poderosa Companhia Docas de Santos (CDS), que construiu o porto de Santos e empresta seu nome ao título, esta obra de Helio Lobo, em 700 páginas, tem como título Docas de Santos - Suas Origens, Lutas e Realizações.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos/SP, pertenceu ao jornalista Francisco Azevedo (criador da coluna Porto & Mar do jornal santista A Tribuna), e foi cedido a Novo Milênio para digitalização, em maio de 2010, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, sendo em seguida transferido para o acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 300 a 306:

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Docas de Santos

Suas origens, lutas e realizações

Helio Lobo

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TERCEIRA PARTE (1906-1910)

Capítulo XL

Embargado o acórdão

Embargou a empresa o acórdão. Desprezados esses embargos, opôs outros, de declaração, também sem resultado [124].

Na sustentação dos embarques, esteve J. X. Carvalho de Mendonça na altura dos trabalhos anteriores, citando, também com abundância, autores nacionais e estrangeiros, decisões de tribunais nossos e de fora. Ficar alheia ao julgamento toda e qualquer matéria que não fosse a da exibição.

Propriedade sui generis, a da Companhia não era menos propriedade, sem nada de comum com o Governo, pois, pelo próprio Supremo Tribunal Federal, em decisão de 1895, relator José Hygino, se declarou que o concessionário "é proprietário das obras, embora essa propriedade seja limitada, atenta às restrições que resultam do uso público a que se destinam e também resolúvel, porquanto a propriedade é devolvida ao Estado, findo o prazo do privilégio". Adiante:

A embargada não entrou com um real sequer para o fundo social da Companhia Docas de Santos, não é acionista, não tem direito à cota de lucros e nem suporta prejuízos.

A embargante nada tem a partilhar com a embargada.

Acionista fosse a embargada, não teria direito á exibição integral dos livros senão em casos especiais.

O venerando acórdão afirma sem razão que o patrimônio da embargante a ela não pertence, olvida-se, entretanto, de nomear o titular deste patrimônio que, até o presente momento, a embargante acredita ser exclusivamente seu, sob a proteção do artigo 72, § 17 da Constituição Federal.

Eram inaplicáveis, segundo o advogado da Companhia, os autores americanos, porque havia no Brasil textos nacionais e porque, textos por textos, aos do relator poderia opor, e opôs, outros. Além disso, o direito de desapropriação, o usufruto dos terrenos e a isenção de impostos não constituíam favores concedidos à empresa, como pretendia o acórdão, mas condições sob as quais ela aceitou a concessão. Não tendo o contrato desta cogitado do custeio da obra e achando-se tudo fiscalizado pelo fiscal do Governo e a Alfândega, a intervenção era insólita. Mas em vão. O acórdão sobre os embargos foi assinado, além do presidente Pindahiba de Mattos, pelos ministros Canuto Saraiva (relator), H. do Espirito Santo, André Cavalcanti e Guimarães Natal. Dizia assim (14 de novembro de 1908):

A preliminar da embargada de não serem admissíveis os embargos por se tratar de ação de exibição de livros, meio preparatório para outra ação que será ou não proposta conforme o que na primeira for apurado, não procede, porque a lei n. 938, de 29 de dezembro de 1902, artigo 3º, admite embargos de nulidade de sentença e processo, bem como infringentes do julgado às sentenças finais do Supremo Tribunal Federal, sendo sem dúvida sentença final na ação de exibição de livros o acórdão de fls. 548, podendo, assim, ser embargado.

As duas preliminares da embargante – nulidade do processo por não ser aplicável ao processo comercial e a continência ou conexão de causas – já foram consideradas e juridicamente rejeitadas pelo acórdão embargado.

Também já foi detidamente apreciada e discutida no mesmo acórdão a matéria de meritis dos embargos, embora apresentada sob nova forma e ainda uma vez com grande desenvolvimento e erudição. Subsiste o princípio fundamental do acórdão embargado, pr conforme a direito – o concessionário de uma empresas de obras públicas não pode pretender direito ou favor maior que os declarados expressamente na concessão; e assim, no caso concreto, o princípio da inviolabilidade dos livros comerciais da embargante, que não foi expressamente estipulado no contrato, sofre a limitação que lhe opõe o interesse público, em cujo nome age o Estado quando contrata.

Adiante:

Aceite-se, porém, a doutrina da embargante, que o princípio de inviolabilidade dos livros comerciais é absoluto, e assim só poderia ser limitado por cláusula contratual, e outra não poderia ser a decisão embargada, desde que no contrato que firmou, entre outras, assumiu a obrigação de não perceber taxa superior a 12% sobre o capital empregado; ficando, assim, à outra parte contratante, o Governo, o direito de saber mediante prova completa, que só o exame de livros pode fornecer, se deve ou não reduzir a taxa ao máximo estipulado no contrato.

Contra isso opõe a embargante, e é seu principal argumento nos embargos, que não se pode agora saber se já percebe ela lucro superior à referida taxa, e sim somente depois de concluídas as obras, que é quando se terá a determinação do capital empregado. Esse argumento, porém, não tem procedência, porque a lei de 13 de outubro de 1869, de que não se pode afastar o contrato, não faz a redução das taxas em benefício do público, dependente da conclusão das obras, e semelhante interpretação ampliativa, fora das cláusulas expressas, não é permitida, tratando-se de um privilégio; acrescendo que a alegação de não auferir ainda a embargante os lucros referidos constitui defesa a ser examinada na ação principal, sendo inoportuna na presente ação preparatória.

E nem se diga que a doutrina do acórdão embargado se afastou de toda a jurisprudência anterior; porquanto a espécie sujeita a julgamento é nova, jamais tendo sido submetida ao conhecimento do tribunal espécie idêntica. Sendo igualmente infundada a afirmação de que a pretensão da embargada é contrária a pareceres do antigo Conselho de Estado, referentes à posição do Governo quando é ele parte contratante.; e infundada porque, em vez de pretender alterar por si só as cláusulas contratuais, veio a juízo, como faria qualquer particular, pedir aquilo que a lei e o contrato lhe reconhecem.

Pelos expostos motivos e pelos que desenvolvidamente constam do acórdão embargado, desprezam os embargos, a fim de subsistir o julgado, e condenam o embargante nas custas.

Votos vencidos foram dos ministros Manoel Espinola, Ribeiro de Almeida e Manoel Murtinho. Manoel Espínola, com quem concordou Ribeiro de Almeida, pronunciou-se assim:

Recebia os embargos para, reformando o acórdão embargado, julgar improcedente a ação de exibição de livros, de acordo com o meu voto vencido no referido acórdão.

A ação se funda no artigo 18 do Código Comercial e o motivo invocado é o da comunhão, nos termos da petição inicial. Mas se a concessão para as obras de melhoramento do porto de Santos (as Docas atuais) assenta em um contrato e é este que regula as relações jurídicas do poder concedente com os concessionários, visto se tratar de um contrato bilateral, que é a lei entre a administração e os concessionários, segundo os princípios de direito privado, que lhe são aplicáveis (acórdãos deste Tribunal de 11 de junho de 1898, 17 de maio de 1902 e 23 de janeiro de 1904), não se pode inferir do contrato, nem da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869, a eu ele se remete, a suposta comunhão da embargada nas referidas obras, uma vez que, por cláusula expressa, o uso e o gozo dessas obras é da embargante e a sua propriedade só é devolvida ao Estado, fido o prazo da concessão.

Assim eu, ao contrário do que pretende a embargada, não tendo ela a propriedade atual, ao passo que tem-na, embora resolúvel, a embargante (acórdão deste Tribunal de 14 de setembro de 1895), não existe a comunhão, pois não há nem pode haver comunhão sem uma propriedade comum.

Derivar a comunhão do direito que tem o Governo de fiscalizar as obras e do de proceder à redução das taxas que percebe a Companhia embargante, desde que os lucros desta excedam de 12%, na forma da citada lei n. 1.746, de 1869, empregando a palavra comunhão no sentido de comunhão de interesses, como fez a petição inicial para justificar a exibição requerida, é inverter o sentido óbvio da palavra, para conferir ao Governo uma faculdade que lhe é defesa nos termos restritos do artigo 18, como nos do artigo 17 do Código Comercial.

Do teor abaixo foi o voto de Manoel Murtinho:

Conquanto reconheça à embargada o direito de exigir a exibição integral dos livros comerciais da embargante, por haver entre elas comunhão de interesses, resultantes da cláusula contratual pela qual foi garantida à Companhia Docas de Santos, para remuneração dos capitais empregados na empresa, a percepção dos lucros líquidos até 12%, pertencendo o excedente ao público, em cujo favor se faria, dada aquela diferença para mais, a redução geral das taxas estabelecidas, o que constitui um dos casos previstos no artigo 18 do Código Comercial, todavia entendo ser atualmente inadmissível a exibição requerida.

Alegou-se, como fundamento da ação preparatória promovida pela União, a necessidade que tem o Governo Federal, no intuito de fiscalizar a execução do contrato celebrado com a referida Companhia, de examinar a escrituração geral desta, não só para apurar o custo efetivo das obras executadas, como também para verificar se o dividendo já ultrapassou a indicada porcentagem, a fim de ter lugar a redução geral das taxas.

Para o primeiro objetivo não se faz mister a compulsória dos livros, visto como, nos termos do contrato de concessão e de acordo com a inteligência que inalteravelmente lhe têm as partes contratantes, do que fornece testemunho uma numerosa série de atos oficiais, o custo das obras é exatamente o preço constante dos orçamentos aprovados.

Adiante:

Quanto ao segundo desideratum, é ainda prematuro o pretendido exame de livros, porque falta base estável para uma efetiva redução de taxas. |Esta, como ficou dito, depende de exceder o dividendo da Companhia a 12%. Ora, essa porcentagem é a relação entre o capital e o lucro líquido, de modo que a estabilidade de seu nível superior pressupõe, antes de tudo, a fixidez do primeiro dos termos.

Mas, o capital da empresa é o resultado da soma dos orçamentos das obras efetuadas, e como as obras concedidas se acham em andamento, devendo elas, segundo o ajustado, estar terminadas em novembro de 1914, há tendência do capital para aumentar.

Daqui resulta que, dado mesmo que, no momento atual, o lucro líquido exceda a 12% verificando-se a condição para a redução das taxas, é possível que logo depois, crescendo o capital, se altere essa porcentagem, descendo ela abaixo de 12% e prejudicando assim a Companhia, que tem direito àquele máximo nos termos expressos no seu contrato, que de tal sorte seria violado.

É claro, portanto, que só depois de integrado o capital, e devendo ser ascendente a tendência dos lucros líquidos, atento o progressivo desenvolvimento do comércio a que serve a Companhia, ter-se-á uma base estável para sobre ela se estabelecer a redução das taxas.

Não há, pois, no presente, motivo que justifique a exibição dos livros requerida, a qual, como medida de suma gravidade, somente deve ser autorizada quando sua necessidade se imponha.

De acordo com o exposto, votei pelo recebimento dos embargos para, reformando-se o acórdão embargado, e com ele a sentença de primeira instância, ser julgada improcedente a ação de exibição de livros.

É da notícia oficial da sessão (73ª, de 14 de novembro de 1908) que depois da exposição do ministro Manoel Espinola e da defesa do advogado da Companhia, teve a palavra o representante da União:

O SR. PRESIDENTE – Tem a palavra o sr. ministro procurador geral da República.

O SR. PROCURADOR GERAL, MINISTRO OLIVEIRA RIBEIRO – diz que o Governo está empenhado nesta questão não por ser contra as Docas de Santos, mas por ser uma questão nacional, porque é preciso regularizar a situação dos empresários das obras de melhoramentos de portos, serviços que se tendem a desenvolver e que o Governo precisa e tem o direito de fiscalizar.

As Docas de Santos não pertencem ao sr. Gaffrée, mas foram feitas para a exportação do café brasileiro.

O contribuinte não pode trabalhar para encher as burras dos argentários da poderosa empresa, eles que têm palácios em quase todas as avenidas desta capital. O Governo não quer praticar violência, mas exercer uma função que todos os publicistas lhe reconhecem.

O Governo brasileiro não pode ser caixeiro dos srs. Gaffrée & Companhia.

A ambição da Companhia não tem limites; está tirando o capital da renda, está ganhando muito, já monopolizou tudo, e agora quer monopolizar o ensacamento do café; quer também absorver a sacaria; quer além do produto o invólucro, o conteúdo, o continente.

A Companhia Docas de Santos é o pior trust que se tem verificado no Brasil.

Adiante:

A União quer o exame para ver os livros, para fiscalizar o contrato. O Governo faz questão, precisa deste exame. Se o Tribunal negar ao Governo o direito de exigir a exibição dos livros das Docas de Santos, colocará o país na situação de não mais poder fiscalizar os contratos feitos com empresas estrangeiras, que tanto têm abusado.

É melhor entregar-se o país e as suas rendas a todos os estrangeiros audaciosos e felizes que tiverem contrato de exploração com o Governo.

Como se avaliar o capital empregado, a receita e os lucros, sem o exame de livros?

É uma coisa indispensável este exame. E a necessidade dele não só é o direito que aconselha, é a moral que exige.

Se a Companhia afortunada não quer prestar contas dos seus atos e se o Tribunal concordar com ela, verá que mais nenhuma empresa tomará a sério a fiscalização a que está sujeita por parte do Governo.

É muito enérgico, embora saiba que lhe falte competência; como juiz, nada teme. No tribunal é uma pessoa, lá fora é outra. Pouco se lhe dá o juízo que dele façam; cumpre o seu dever. Está forte por isso. O Governo precisa ver os livros da empresa das Docas, e diz, com a mão na consciência, se fosse juiz na causa, votaria sem hesitar pela confirmação da sentença.

O relator do acórdão embargado respondeu às razões da defesa, acentuando que não estava em causa senão a exibição dos livros. As outras questões sobre capital, revisão de taxa etc., seriam examinadas se o Governo propusesse a respectiva ação:

O SR. AMARO CAVALCANTI diz que foi o relator ad hoc do acórdão embargado, onde desenvolveu uma teoria pessoal, da qual não se podia afastar, por ser conhecida.

O acórdão embargado salva um princípio, firma uma doutrina que precisa ser estabelecida. Não é para a embargante que ele a estabelece, mas para todas as empresas concessionárias de obras e serviços públicos.

Para satisfazer ao sr. ministro Manoel Murtinho e em consideração ao ilustre advogado da embargante, a quem considera jurisconsulto, toma parte no debate. Os embargos não contêm nada de novo; repetem matéria já apreciada e julgada.

A embargante, na discussão oral, referiu-se aos contratos de outras empresas, nos quais o Governo dispensou a exibição de livros.

Na verdade, o ato do Governo merece reparo, não é justificável, mas com isso o Tribunal nada tem. Desde que o Governo não contratou com a embargante a isenção dos seus livros do exame, desde que agora faz esse pedido, não lhe pode ser negado.

Admira os empresários das Docas de Santos e pessoalmente lhes daria tudo, mas, como juiz, não pode votar a contento deles, sentindo que o ilustre advogado da embargante fizesse tão duras alusões ao Tribunal.

O Tribunal não julgou contra a lei, pois a lei a invocar é a de 1869, esta faz parte do contrato, e este autoriza o exame dos livros implicitamente, porque dá ao Governo o direito de reduzir as tarifas.

O sr. ministro Manoel Murtinho não tem razão, porque do que se trata aqui é de ver simplesmente se o Governo pode ou não examinar os livros.

Precisa desde já fazer uma declaração para a qual solicita a atenção do Tribunal. Não diz que a Companhia Docas não tenha o seu capital em parte fixado; não afirma que o Governo tenha o direito de reduzir taxas agora, antes de fixado todo o capital.

Em ocasião oportuna, se o Governo propuser ação, examinará essas questões.

"Julgou-se pelo arbítrio e não com a lei", escreveu J. X. Carvalho de Mendonça. Como na ocasião do primeiro acórdão, não faltariam flores nem calhaus. Não fazia a Companhia em meio deles seu caminho? Assim a Tribuna do Rio de Janeiro (17 de novembro de 1908):

Quer-se agora fazer crer que o ministro da Viação se empenhou junto aos juízes para obter o voto contrário às alegações das Docas. O povo não se deixa iludir por esse clamor, a que a amizade pelos diretores das Docas dá proporções ruidosas, como se ele visasse reprimir a consumação de um atentado ao Direito… O Governo é, nesta questão, o defensor do contribuinte. O que ele deseja é resguardar o dinheiro do lavrador, do industrial, do comerciante, da cupidez dos exploradores das Docas.

Do outro lado, a Imprensa (15 de novembro de 1908):

Consumou-se ontem, no Supremo Tribunal Federal, a negação de justiça pleiteada pelo Governo contra a Companhia das Docas de Santos: por cinco votos contra os três dos srs. Ministros Espinola, Manoel Murtinho e Ribeiro de Almeida, foram desprezados os embargos opostos por essa Companhia ao acórdão que confirmou o despacho que decretou a devassa nos seus livros, a requerimento da União Federal, como ação preparatória para a redução das taxas, por integralidade do capital.

Não valeram os argumentos e as razões expostas pelo dr. Carvalho de Mendonça, não só com grande saber jurídico, mas com uma lucidez e uma força dialética que levariam a convicção a todos os espíritos; não valeu a demonstração palpável, por ele feita, da incongruência do acórdão, do absurdo da doutrina, da violência do ato: era preciso que o capricho do Governo encontrasse amparo, contra a lei e a justiça, no mais alto tribunal da República, instituído para garantia dos direitos do cidadão, e a negação de justiça consumou-se.

Quem assistiu a esta sessão do tribunal e viu e ouviu o honrado sr. procurador da República pleiteando o interesse do Governo, não em nome do direito e da lei, mas alegando motivos e razões, aliás falsas e de todo estranhas à questão, deve ter tido bem nítida a impressão dolorosa e lancinante de que a justiça é uma palavra meramente convencional.

E a Gazeta de Noticias:

O Governo obteve a sentença que quis obter… O sr. Oliveira Ribeiro, procurador geral da República, entendeu que essa função do Ministério Público não se podia afastar da linha geral das promotorias inferiores: a linguagem, falaciosa e violenta, foi perfeitamente oca de tudo quanto pudesse ter o vislumbre sequer da mais remota ponderação, e não saiu das invectivas pessoais que não são comuns mesmo na intransigência de adversários e que são pelo menos exóticas no ambiente de serenidade que deve revestir as deliberações de um tribunal. Isto, porém, é uma questão de compostura própria, com a qual nada temos que ver; basta que com ela esteja satisfeito o ilustre sr. procurador geral da República.

Apenas temos o direito de remeter o público para o resumo das suas orações; a leitura dessas peças vale muito mais, por si só, do que tudo quanto sobre elas se pudesse dizer.

Não foram só os negócios das Docas que mereceram os doestos do sr. procurador; s. excia. vibrou de indignação diante da fortuna particular dos diretores que citou nominalmente; e chegou a emprestar-lhes intuitos e transações com as quais nada têm, empréstimo que, se pode ter origem em paixões a que todos nós estamos sujeitos, torna-se, pelo menos, uma inqualificável leviandade partida de quem exerce elevadíssima função na judicatura do país e fala envolvido legalmente na irresponsabilidade de uma toga.

A esse tempo, arrazoava J. X. Carvalho de Mendonça na causa proposta pela empresa contra a União, para anulação do decreto n. 6.501, ação que corria seus termos. Perdidas no Supremo Tribunal Federal suas alegações sobre a exibição de livros, acerba lhe ficou a pena. Assim começou suas razões finais:

A petição iniciada e a réplica e os quarenta e dois documentos, que as fundamentam, põem em tanto relevo o direito da autora, a Companhia Docas de Santos, injuriosamente sofismado e perturbado pelo capricho de uns e pela ignorância e protervia de outros, que bem poderíamos entregar a presente causa ao julgamento sereno e imparcial do Poder Judiciário sem mais alegações.

O empenho do governo do presidente Penna em satisfazer alguns políticos de São Paulo, que tentavam esmagar, por todos os meios, a autora, que tem o grande crime de viver próspera e por isso se tornou alvo da maledicência e da inveja, celebrizou este processo.

Nos últimos tempos desse Governo, porém, já a hostilidade oficial abrandara, vencida pela reflexão e pela verdade, e, atualmente, estaria terminado o pleito se a morte do malogrado presidente não tivesse interrompido a conclusão do acordo, a que a autora fora convidada, e no qual eram reconhecidos todos os direitos, reclamados na ação, que se desdobra nestes autos.

Já não precisava porém fazer correr mais linha, para concluir que não era caso de comunhão e que havia entre o Governo e a empresa contrato impossível de se alterar por simples capricho de uma das partes. Tanto esse contrato era a base do regime da Companhia, que, conforme vimos, deixou de lado, em mais de um ponto, a referida lei de 1869.

A intervenção se justificava tanto menos contra a mesma Companhia, quanto o Governo Federal estendia a outras, por força do referido decreto n. 6.501, tratamento mais ameno.

Juridicamente a posição das Docas de Santos era, pois, inatacável. Podia-se dizer o mesmo da sua situação pública? Ligados ao contrato primitivo, os posteriores o ampliaram tanto, alongando também de tal maneira a realização das obras no tempo, que parecia impossível se viesse à redução das taxas e outras medidas somente depois de tudo acabado.

De 860, passou o cais para cerca de cinco mil metros; de obras avaliadas em quatro mil contos, mais ou menos, já se estava em quase noventa e cinco mil contos; e de um prazo de três passou-se, por prorrogações sucessivas, a mais de vinte anos. Errou assim o Governo Federal no tempo, fazendo as prorrogações sem um entendimento expresso sobre situações novas que se iam criando e antes tacitamente reconhecendo a prolongação primitiva da concessão.

Errou São Paulo, por seu lado, deixando-se impressionar pelas campanhas menos justas que vinha sofrendo a Companhia, sobretudo nas suas taxas, campanhas que, alheias ao aspecto jurídico da questão, desfechavam dessa maneira diante do mais alto tribunal do país.

Era defesa da empresa, que pleiteou o regime desses vinte anos, em que vivia, porque arcava com dificuldades enormes, levantando capitais seus numa obra colossal, para a qual não concorria a União sequer com garantia de juros; e só a integridade dessa obra, no tempo, lhe assegurava o crédito, os recursos, a fé necessária. E não lhe faltava razão.

Fracionada a construção, permitido o capricho oficial no seu levantamento, não seriam maiores os tropeços? Entre a ofensiva do Governo Federal e a resistência da Companhia, prevaleceria, afinal, um meio termo: nem interferência indébita daquele; nem recusa da última em demonstrar, mesmo fora da letra do seu contrato, quer os lucros até então auferidos, os quais não eram os propalados, quer as despesas feitas: Santos seria o porto de construção mais barata no Brasil.

Tudo na vida tem sua explicação com o tempo. Uma coisa podia, ainda uma vez, afirmar-se: é que, não cedendo um palmo no que considerava sua prerrogativa jurídica, a empresa estava pronta a transigir desde que lhe falassem sem paixão. Livros, papéis confidenciais, tudo mostraria ao delegado do Governo Federal, quando se promovesse o acordo.

Curioso é notar que, acusada de não querer revelar suas contas até 1909, a Companhia não veria, depois dessa data, nenhuma delas recusada nas prestações anuais a que estaria obrigada desde então; e as despesas seriam maiores que as anteriores.

Neste ponto, ainda, não é demais repetir que a história da Companhia Docas de Santos constitui um testemunho singular de tenacidade, a serviço de uma grande obra nacional, mercê favores e mau grado tropeços. Falou-se que aqueles eram grandes, mas esqueceu-se que muito maiores foram estes. Além disso, os favores foram ocasionais, não passando de condição de realização da obra no tempo; ao passo que os tropeços sempre existiram e só por uma direção segura podiam vencer-se.

Imagem: reprodução parcial da página 300


[124] Sobre os embargos, ver: Supremo Tribunal Federal, Agravo n. 1.073, Embargos ao Accórdão e Embargos de Declaração. Exhibição judicial dos Livros da Companhia Docas de Santos, cit.