TERCEIRA PARTE (1906-1910)Capítulo XXXIV
Fixação do capital, custo de construção
Vencedora essa preliminar, claro é que não poderiam aplicar-se sem violência à Companhia Docas de Santos as exigências do decreto
n. 6.501, de 1907.
Nem por isso deixaram tais exigências de merecer minucioso exame e opugnação. É que para o Governo constituía, como vimos, ponto pacífico a aplicação do referido decreto. Para sua promulgação, fundava-se mesmo no art. 48, n. 1 da Constituição.
Sobre esse ponto escreveu Lafayette:
Não cabia na alçada do chefe da Nação firmar tais instruções (decreto n. 6.501), visto como aquela lei não é resolução do Congresso,
inexistente na data de ser promulgada. Em matéria de competência, não é admissível interpretação extensiva ou ampliativa. Decorre a competência dos estritos termos da lei que a conferiu. Taxativamente fala a Constituição em leis ou resoluções do
Congresso republicano.
Nenhuma alusão se faz ali às antigas leis do Império, para incluí-las na atribuição de regulamentá-las, concedida ao presidente da República. E até, no artigo 83, se determina que continuem em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo
regime, que, explícita ou implicitamente, não contrariem ao novo sistema de governo e aos princípios da nova Constituição consagrados.
Ora, a lei n. 1.746, de 1869, nada contém de infenso à Constituição Federal, nem ainda aos princípios mais reconditamente nela estabelecidos, e não foi revogada, nem ab-rogada. Logo, está em pleno vigor, tal como foi promulgada, e nas mesmas
condições em que foi, então, entendida e praticada.
Portanto, é evidente que fazendo baixar o decreto n. 6.501, de 6 de junho último, exorbitou o presidente da República dos poderes que lhe são delegados, únicos que pode legalmente exercer.
Nullus est major defectus, quam defectus potestatis.
É de lembrar que se referiam as exigências do decreto n. 6.501 à fixação do capital, ao custo das obras, à redução das tarifas e, finalmente, à exibição dos
livros. Venceria, em princípio, a empresa naquelas, mas só depois de perder em juízo na última.
Sólidas eram suas razões. Como já vimos, a concorrência versou apenas sobre o prazo da concessão e o preço das taxas, tendo os concorrentes que aceitar depois
certas modificações não estipuladas nos editais, sem aumento do orçamento, que também já receberam fixado pelo Governo, no valor de 3.851:501$570; e nos contratos posteriores manteve-se esse sistema de orçamento prévio. Se devia haver medição,
cálculo do custo etc., era antes de aprovado o orçamento e não depois de mandados adicionar, por decreto e em contrato, à conta do capital existente, cada um dos orçamentos subsequentes. Dezesseis eram, como vimos, esses contratos posteriores ao
de 20 de julho de 1888, nos quais se aludiu sempre à conta de capital, aberta até à conclusão dos trabalhos.
Tanto era isso exato que, excepcionalmente, quando houve urgência reclamada pelo Governo, muitas obras complementares e dependências do cais se excluíram desse sistema, obrigando-se a Companhia a justificar o custo depois de executadas (decreto
n. 943, de 15 de julho de 1892, in fine; n. 2.562, de 2 de julho de 1897, art. 3º; n. 4.088, de 22 de julho de 1901, art. 3º; n. 6.080, de 3 de julho de 1906, cláusula III etc.) E nem procedia a arguição oficial do orçamento, como estudo
prévio a confirmar-se depois, uma vez que era prática a fixação antecipada do capital na construção de obras públicas. Argumentou Carvalho de Mendonça:
O custo ou preço das obras públicas pode ser estabelecido previamente pela importância dos respectivos orçamentos, mediante convenção
das partes, chamado custo ou preço global, fechado ou fixado à forfait.
Nesse sistema, não há medição nem avaliação das obras, não existe tabela de preços de unidade, ajustada entre a Administração e o empresário, por isso que o custo das obras é determinado previamente, a dizer, antes da construção.
O valor ou custo convencionado torna-se definitivo; nenhum dos contratantes tem o direito de exigir a verificação pela medida ou avaliação das obras.
O empresário corre o risco de perder. A convenção tem o caráter aleatório. Considerar ficção o fato de se determinar previamente o custo das obras é falar de oitiva; é desconhecer a figura jurídica que no Direito Romano já se denominava per
aversionen locatio conductio.
É aliás o que se acha dito nas palavras positivas da cláusula I do contrato de concessão de 20 de julho de 1888: "…sem que por isso possam alegar dispêndio com a construção superior à importância do orçamento…"
Eis aí: perderiam os concessionários, se com as obras despendessem mais de 3.851:505$570; ganhariam, se despendessem menos. O Governo, por sua vez, não podia pedir a redução do custo ajustado se os concessionários gastassem quantia inferior à
importância do orçamento.
Tinham sido feitas, de fato, no Império, outras concessões, sob o regime da lei n. 1.746, e nelas ficou expressamente fixado o capital por
antecipação [91]. A primitiva concessão no porto de Santos (conde de Estrela-Andrade Pertence) era desse molde, preconizado, aliás, por alguns ministros da Monarquia e pelo
Conselho de Estado "como aquele que, aconselhado pela lição dos fatos, oferecia maiores garantias aos interesses públicos, tornando fácil o modus vivendi das empresas com o Governo, evitando a fiscalização constante e minuciosa,
dificílima, senão impossível, de ser bem exercida" (Consulta da Seção dos Negócios do império, 17 de outubro de 1882). Exemplos? Não faltavam, quer no Império, quer na República:
No ano de 1878, o Governo da Monarquia se empenhou pelo desenvolvimento da viação férrea e resolvendo-se a garantir os juros dos
capitais empregados nas estradas de ferro, publicou o decreto n. 6.995, de 10 de agosto de 1878, contendo as bases gerais para as respectivas concessões.
Na cláusula 1, § 1º, declarava este decreto: "O capital fixo… é determinado à vista do orçamento fundado nos planos e mais desenhos de caráter geral, documentos e requisitos necessários à execução de todos os trabalhos… etc."
O ministro da Agricultura, referendário deste decreto, o visconde de Sinimbu, no relatório daquele ano, apresentado à Assembleia Geral Legislativa, tratando das estradas de ferro, escreveu:
"Quando o inquérito havia posto em evidência a necessidade de estabelecer entre o Governo e as companhias relações certas e determinadas, que não dessem causa a constantes dúvidas e dificuldades na liquidação dos juros garantidos ou afiançados;
quando do mesmo inquérito resultava a alta conveniência de oferecer aos capitais colocação tranquila e a abrigo de contestações; quando, por outro lado, a experiência há mostrado como ilusórias têm sido as exigências regulamentares para a
determinação do máximo capital garantido ou afiançado; pareceu-me que fixar o capital à vista do orçamento, planos e desenhos, quer quanto ao leito da estrada, quer quanto às obras de arte, edifícios, linha telegráfica e material fixo e rodante,
era essencial alvitre para fomentar a organização de companhias que se proponham a construir estradas de ferro".
Com o capital fixado irredutivelmente, à vista do orçamento prévio, fizeram-se, entre outras, as concessões de estradas de ferro: Quarahim e Itaquy (dec. n.
8.312, de 19 de novembro de 1881); Bagé a Cacequi (dec. n. 8.346, de 24 de dezembro de 1881); Santa Catarina a Porto Alegre (dec. n. 8.842, de 13 de janeiro de 1883); Ramal do Timbó (dec. n. 8.925, de 7 de abril de 1883); Itararé ao Rio Grande
(dec. n. 10.432, de 9 de novembro de 1889).
No Império, certo precedente ocorrido se ajustava, mesmo, ao caso em litígio:
Entendia o Governo Imperial que, não obstante reconhecido e fixado o capital da estrada de ferro de Maceió a Imperatriz, à vista do
orçamento das obras, conforme os termos do decreto n. 6.995, de 10 de agosto de 1878 (decreto n. 7.517, de 18 de outubro de 1879), tinha ele o direito de fiscalizar as despesas que fossem efetivamente realizadas com a construção das obras e
aquisição do material rodante.
A empresa não se conformou com semelhante interpretação, sendo a dúvida afeta ao Conselho de Estado (seção dos Negócios do Império) e resolvida assim, conforme os termos do aviso de 15 de dezembro de 1882, na Coleção das Leis e Decisões: "… foi o
respectivo capital fixado… independentemente do custo efetivo das obras que depois se realizassem em virtude dos planos e desenhos aprovados, de sorte que é fixo e invariável neste sentido – que toda e qualquer redução na despesas, proveniente de
melhor e mais econômica administração, de baixa dos salários ou do preço dos materiais, do emprego de instrumentos ou processos de execução mais aperfeiçoados – só deve aproveitar à empresa, do mesmo modo que o excesso de despesa de qualquer
origem que seja e ainda realizado bona fide, nenhum direito lhe daria para a elevação do seu capital garantido, devendo, portanto, a fiscalização do Governo limitar-se ao que diz respeito à segurança e solidez das obras e à fiel execução
dos planos aprovados".
A conclusão era ad rem:
A Seção dos Negócios do Império do Conselho de Estado, na referida consulta, fazendo a apologia do sistema de taxar previamente o custo
das obras a cargo das empresas concessionárias à vista dos orçamentos dessas obras, sistema aconselhado pela lição dos fatos, acentuava em palavras de ouro: "Daí resulta que o Governo não tem que intervir assim na parte técnica, como no movimento
econômico da empresa, limitada a sua competência à fiscalização da segurança e solidez das obras e a fiel execução dos planos aprovados"…
Com o sistema do capital indeterminado, sujeito às eventualidades da construção, não só torna-se mais difícil a formação das empresas,
como também o modus vivendi destas com o Governo, pela necessidade de uma fiscalização muito mais constante e minuciosa do que a que exige o capital fixo.
Não admirava, pois, que à vista disso, o próprio governo Affonso Penna, contrariando a empresa de Santos, houvesse seguido noutras o sistema
imperial, para fixação prévia do capital das estradas de ferro [92].
Nas empresas de portos, só isso não prevaleceria quando houvesse estipulação em contrário: Manaus, em que o capital efetivamente empregado seria determinado
anualmente; Bahia, Pará e Rio Grande do Sul, nos quais a fixação do capital, anual ou semestralmente, estava dependente da soma despendida; Vitória, em que o capital empregado se fixaria à vista da tabela de preços aprovada pelo Governo.
Era concorde a opinião dos juristas consultados.
O visconde de Ouro Preto:
Absolutamente é inadmissível, e nem se compreende, que uma empresa da ordem da de que se trata, incumbida de serviços de tamanha monta,
possa ver, de tempos em tempos, mais uma vez em questão o que já foi examinado, discutido e resolvido, nos termos do ajuste feito. Não poderia caminhar com firmeza e segurança se estivesse sujeita a voltar sobre seus passos quanto à fixação do
capital, para cujo levantamento foi autorizada e assumiu compromissos.
As obras contratadas formam um bloco, que não pode ser fracionado em trechos, ou seções, marcando-se para cada qual um certo capital.
Costa Barradas:
Não tendo a companhia concessionária contratado as referidas obras por medida ou trechos separados, cada um com capital distinto, mas em
globo, na sua totalidade, e para no fim delas auferir a remuneração dos seus capitais, empregados nelas, não se pode reconhecer no Governo o arbítrio de dividir a seu talante as obras em seções para atribuir a cada uma dessas partes o respectivo
capital despendido.
Isto somente seria admissível, se se tratasse de uma empreitada com que as aludidas instruções confundem a concessão.
Tratando-se, porém, desta, isto é, de um contrato, em que a parte, que se incumbiu do serviço, adianta do seu bolso as despesas na expectativa de uma fortuna, e quiçá aleatória remuneração, não se compreende essa exigência de uma nova avaliação
para fixar o custo de cada seção, quando o contrato foi da totalidade das obras, como um só corpo.
Raul Fernandes:
Os contratos não dividem as obras em seções devidamente caracterizadas, a que se possam assinalar capitais independentes.
Ao contrário, tendo primitivamente contratado a construção de um cais compreendido entre o extremo da ponte velha da Estrada de Ferro Ingleza e a Rua Braz Cubas (contrato de 20 de julho de 1888), a Companhia, estando as obras em execução, ajustou
o prolongamento do mesmo cais, autorizada pelos decretos ns. 10.277, de 30 de julho de 1889; 966, de 7 de novembro de 1890, e 942, de 15 de julho de 1892. A concessão é uma só; um só é o prazo para a Companhia usufruir as obras.
Para dividir agora o cais em seções com capitais independentes, o Governo agiria arbitrariamente.
Não importa que o plano da obra fosse sucessivamente alargado em contratos aditivos: em todos eles o Governo autorizou a companhia a levar o custo das obras acrescidas "à conta do capital" ou a "adicioná-lo ao capital"; donde se infere que não se
trata de capitais independentes, justapostos, mas, ao contrário, de parcelas somadas e confundidas num capital único.
E Clovis Bevilacqua:
O sistema adotado para a construção das obras do porto de Santos, conforme o contrato firmado em 20 de julho de 1888 e não alterado nos
contratos posteriormente celebrados, não cogita da medição, descrição e avaliação para fixar-se o capital. Aprovados os planos e orçamentos pelo Governo, as obras se executam sob a fiscalização de um delegado do mesmo Governo.
Particularmente quanto à fixação do capital, vê-se do primeiro contrato de 1888 que resulta do orçamento aprovado, desde que sejam realizadas as obras. Assim diz a primeira cláusula, segunda parte: "As referidas obras serão executadas de acordo
com os estudos aludidos apresentados ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em data de 10 de julho e 9 de outubro de 1886, com as seguintes modificações que os concessionários se obrigam a efetuar, sem que para isso
possam alegar dispêndio com a construção superior à importância do orçamento constante dos mesmos estudos".
Eis aí: fixado o capital no orçamento, aprovado este pelo Governo e realizadas as obras, pouco importa que tenham custado mais. Não será atendida a reclamação nesse sentido. Porquê? Por que dos estudos que foram feitos se concluiu que o capital
era suficiente e os empresários aceitaram essa fixação de preço, como cláusula do seu contrato.
Mas, se as obras custarem menos? Será vantagem da empresa, como seria seu o prejuízo se custassem mais. O que o Governo deve exigir é que as obras se executem segundo o plano estabelecido; e para que o contrato seja fielmente cumprido, nesta
parte, foi estabelecida a fiscalização.
Ampliando seu parecer:
Nos contratos posteriores, a orientação é a mesma.
Contrato de 16 de abril de 1892: "entre si acordaram nos termos do decreto n. 789, de 8 do corrente mês e ano, na aprovação dos planos e orçamentos para as obras necessárias, na importância de… devendo a consequente importância ser levada à conta
do capital de que trata o decreto n. 9.979, de 12 de julho de 1888" (decreto de concessão das obras de melhoramento do porto de Santos a José Pinto de Oliveira e outros, que a cederam à Companhia Docas de Santos).
Contrato de 12 de maio de 1892: "aprova… os referidos planos e orçamentos, na importância de … que será adicionada ao capital da mencionada empresa de obras de melhoramentos do porto de Santos".
E, semelhantemente, os contratos que se foram celebrando, à medida que se ia desenvolvendo o plano das obras, desde 20 de julho de 1888 até 30 de outubro de 1902, segundo os extratos que acompanham a consulta a que respondo. Neste último contrato
se lê: "declarou o mesmo sr. ministro que na conformidade do decreto n. 4.603, de 20 do corrente mês, resolvia aprovar os orçamentos de obras novas, de reconstrução e consolidação, cuja importância deverá ser incluída no capital da Companhia
Docas de Santos". E mais: "O custo das obras indicadas até a importância total de… será incluído na conta de capital da Companhia, à medida que forem sendo concluídas".
De fato, se havia concessão, era uma só, em suas várias ampliações; se o capital tinha sido aprovado pelas duas partes contratantes e constante até então da
soma de 95.508:732$845, era claro que a Companhia não devia abrir à inspeção suas contas de custo que a revisão das tarifas e consequente abaixamento das taxas só se exigiriam quando terminadas as obras e que, por último, seus livros e mais
documentos ficavam livres de exame oficial.
Ela havia declarado ao Governo que "terminadas as obras, fixado o seu capital inteiro, apresentaria ao Governo, nas épocas contratuais, a demonstração de seus lucros líquidos"; e o faria, ministrando-lhe então "os meios exatos e insuspeitos para
a verificação desses lucros".
Quando mais não houvesse, a aprovação de seus contratos, aprovada invariavelmente pela União, durante já 29 anos, constituía argumento decisivo em seu favor.
A esse respeito, houve confusão entre capital social e da construção, no espírito público. Seria possível que a consciência da magistratura tampouco os distinguisse? Continuou Carvalho de Mendonça:
O capital com que se constituiu a sociedade anônima Companhia Docas de Santos é coisa diversa do capital reconhecido pelo Governo para
os efeitos da concessão.
Esses dois capitais podem ser do mesmo valor; não há inconveniente em que um seja maior ou menor do que o outro.
A Companhia Docas de Santos, por exemplo, tem de capital social 60.000 contos de réis. O capital da empresa do porto de Santos, até à data da propositura da presente causa, andava por mais de 94.000 contos. E isso se explica naturalmente. A
autora emitiu um empréstimo por obrigações no valor igual ao seu capital. Eis donde lhe vieram os recursos para a construção das obras.
O capital da empresa, capital de construção, no fim do prazo contratual, deve estar reproduzido por meio de cotas deduzidas dos lucros. Para esse fim, a Companhia está obrigada a formar um fundo de amortização (lei n. 1.746, artigo 1º, § 4º).
Compreende-se bem que, revertendo as obras para o Governo no fim daquele prazo, o capital da empresa não estará mais representado pelas obras, porém, pelo fundo de amortização que garantirá aos acionistas o ativo da Companhia.
O capital social da autora, capital comercial digamos assim, mantém-se íntegro, completo até o fim do ermo designado nos Estatutos, sendo proibida amortização dele, porque é a garantia dos credores da sociedade (decreto n. 434, de 1891, artigo
40, 2ª alínea, verb. "sem ofensa do capital").
O capital de construção representa o valor das obras contratadas. O capital social da autora representa o valor em bens, coisas ou direitos com que entraram os sócios.
O capital de construção é indivisível; os seus resultados são os lucros da exploração das obras. Estes lucros, quando excederem de 12%, obrigam a redução das tarifas. O capital social da autora é dividido em ações. Estas ações dão direito a um
dividendo que não tem limite.
Quanto aos dividendos:
A crassa ignorância de certos indivíduos, atacados da mania de maldizer da autora, têm procurado também confundir os lucros líquidos da
empresa das obras de melhoramento do porto de Santos com os dividendos da sociedade anônima Companhia Docas de Santos.
Para os efeitos do contrato de concessão,não se atende aos dividendos que a sociedade anônima possa distribuir aos seus acionistas, mas, exclusivamente, aos lucros líquidos da empresa concessionária.
A Companhia docas de Santos podia ter a seu cargo a construção e exploração industrial de dois ou mais portos. Cada um destes constituiria objeto de empresa distinta, regulada pelos respectivos atos de concessão. Os capitais de construção dessas
empresas, os lucros líquidos de cada uma, não se confundiriam com o capital social da Companhia Docas de Santos, nem com os dividendos que esta distribuísse.
No caso do custo da construção, tanto menos justa era a posição da União, quanto, só podendo ele aplicar-se às empresas com garantia de juros, o próprio Governo
abria exceção ao decreto n. 6.501. Caso recente o provava:
Trinta e cinco dias depois de publicado o decreto n. 6.501, de 6 de julho de 1907, o Governo favoreceu com vantagens excepcionais a
concessionária das obras de melhoramento do porto da Vitória, concedendo-lhe pelo decreto n. 6.559, de 11 de julho do mesmo ano, a garantia de juros e de renda.
Não obstante, excetuou esta concessionária da disciplina do decreto n. 6.501, de 6 de julho. Assim é que, no decreto n. 6.559, manteve, entre outras, as seguintes cláusulas do decreto anterior n. 5.951, de 28 de março de 1906, em manifesta
oposição às instruções do decreto n. 6.501:
1ª – A concessionária não será obrigada a exibir os seus livros comerciais; apresentará, apenas, quando forem exigidos pelo fiscal, os balancetes e mais documentos concernentes a receita e despesa (cláusula XXXI do decreto n. 5.951).
2ª – A concessionária não está obrigada a reduzir as taxas senão quando os lucros líquidos da empresa forem superiores a 12% e somente depois de concluídas todas as obras (cláusula XXI do decreto n. 5.951, citado).
Nas estradas de ferro era a regra:
O decreto n. 7.959, de 29 de dezembro de 1880, aprovando as cláusulas reguladoras das concessões de estradas de ferro, sem garantia de
juros, não obrigou as empresas à prestação de contas anuais, nem deu ao Governo o direito de intervir em sua vida econômica, não obstante ter imposto a redução das tarifas logo que os dividendos excedessem de 12%.
O decreto n. 6.787, de 19 de dezembro de 1907, que aprovou o regulamento para o serviço de fiscalização das estradas de ferro federais, no art. 8º, ns. XI e XIII, não admite aquela intervenção nas estradas de ferro que não gozam favores
pecuniários da União.
Temos ainda as decisões seguintes, elucidando bem o ponto:
1º - O aviso n. 35, de 10 de maio de 1887, no qual o ministro da Agricultura e Obras Públicas (conselheiro Antonio Prado) disse ao enviado extraordinário e ministro plenipotenciário do Brasil em Londres: "O direito que tem o Governo de fiscalizar
as despesas do custeio e de providenciar para que estas se realizem com a maior economia, é consequência necessária do próprio regime da garantia de juros do Estado… e em virtude do qual em certas condições o Governo obrigou-se a completar
determinada renda líquida e em outras adquiriu direito à partilha do que exceder os limites ajustados, tendo, portanto, em todos os casos, valiosos interesses dependentes da importância que se despender como custeio das estradas e que
absolutamente não poderiam ficar à discrição das companhias… Enquanto elas permanecerem sob o regime da garantia de juros, deverão subordina-se às condições de dependência e de fiscalização que decorrem do mesmo regime".
2º - O fato de o Governo mandar cessar as tomadas de contas da receita e despesa das estradas de ferro:
a) Depois de terminados os prazos para a garantia de juros, como se vê do aviso n. 731, de 23 de novembro de 1904, relativo à Companhia Mogiana:
"Faz cessar as tomadas de contas por ter terminado em 30 de julho de 1904 o prazo de 20 anos fixado pelo decreto n. 8.888, de 17 de
fevereiro de 1883, para o gozo da concessão de garantia de juros às linhas do Rio Grande e Caldas".
b) Depois da desistência da garantia de juros pelas estradas de ferro:
Temos o exemplo na São Paulo Railway Company Limited, em cuja concessão figura, também, a cláusula seguinte: "Quando os dividendos da Companhia tiverem sido maiores de 12%, em dois anos consecutivos, terá o Governo o direito de exigir dela
redução tal nas tarifas, que faça entrar os referidos dividendos dentro do máximo de 12%.
Com relação às empresas de porto:
As empresas concessionárias de obras de melhoramento de portos que não gozam garantia de renda ou de juros estão isentas da intervenção
do Governo na sua parte econômica.
Demonstra-se com o seguinte:
O decreto n. 1.109, de 29 de novembro de 1890, do Governo Provisório, conseguintemente com força de lei, foi o primeiro ato que tratou da fiscalização daquelas empresas.
E como a esse tempo somente existia a empresa das obras do porto de Santos, pode-se dizer que foi um ato especial a essa concessionária.
Nesse decreto não se dispôs coisa alguma sobre a intervenção do Governo na parte econômica da concessionária. Não se falou de prestação de contas, não houve a mínima referência á comissão de exame de livros ou de escrituração.
Sob o regime deste decreto-lei permaneceu a Companhia Docas de Santos por oito anos.
Durante esse tempo, foram celebrados os mais importantes contratos da empresa, aditivos ao de 1888.
Desde o início da construção exercera o cargo de fiscal o engenheiro Saboia, que projetara e orçara as obras primitivas, que preparara o edital de concorrência e as bases do contrato de concessão de 1888.
Nem o Governo, nem este fiscal, nem os seus substitutos jamais exigiram a prestação das contas de custeio das obras e da receita e despesa do tráfego, jamais pretenderam intervir na vida econômica da concessionária.
Que prova mais evidente, mais completa, pode a autora apresentar sobre a natureza do seu contrato?
Ainda:
No ano de 1898, foi publicado o decreto n. 2.917, de 21 de junho, aprovando o regulamento para os serviços de construção e melhoramento
de portos, rios e canais, e aí se acentuou que a intervenção do Governo na administração e economia das empresas concessionárias era especial às dotadas com garantia de juros ou subvenção.
Eis a disposição do artigo 24, § 8º, do decreto n. 2.917:
"Aos engenheiros fiscais compete informar-se e acompanhar a gestão das ditas companhias ou empresas em tudo que interessar à respectiva garantia de juros ou subvenção.
A comissão de tomada de contas, que este decreto instituiu, deve verificar "a receita e despesa das companhias ou empresas para pagamento de juros garantidos ou alteração das taxas a cobrar para remuneração e amortização do capital efetivamente
empregado nas obras" (Art. 24, § 6º).
Está evidente: o decreto não obrigou as empresas sem garantida de juros a prestar anualmente contas documentadas, da sua receita e despesa, como agora exige o Governo.
No caso de Santos, o Governo não tinha, pois, por disposição expressa de seu contrato, e por analogia, se não houvesse aquela, intervenção na vida econômica da
empresa, quanto à construção. A ele cabia apenas fiscalizar:
a) A execução das obras contratadas, por intermédio do engenheiro fiscal das obras hidráulicas do porto de Santos, preposto do
Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas (decreto n. 1.109, de 29 de novembro de 1890, expedido pelo Governo Provisório, com força de lei, mais tarde substituído pelo decreto n. 2.917, de 21 de junho de 1898).
b) Os serviços contratados, por intermédio do inspetor da Alfândega de Santos, funcionário do Ministério da Fazenda. (Contrato de
concessão de 20 de julho de 1888, cláusula IX: "O serviço de carga e descarga de mercadorias, uma vez encetado, ficará sujeito à fiscalização da Alfândega, que dará aos concessionários as precisas instruções de acordo com o regulamento a que o
serviço estiver subordinado").
Tão documentadas eram as razões de Carvalho de Mendonça, que difícil seria negar-lhes fundamento. A
opinião pública as acompanhou com interesse. Se em Santos se anunciava que às administrações federais paulistas, das vacas gordas, seguiria a de um mineiro instaurando as das magras [93], no Rio de Janeiro o Diario de Noticias entendeu que o decreto se aplicava integralmente à empresa [94], ao passo que, adversário antigo, O Paiz rendeu
justiça às razões de J. X. Carvalho de Mendonça [95] que, por sua vez, a Gazeta de Noticias chamou de "magistral trabalho jurídico em que a Companhia Docas de Santos
defendia os seus direitos contra a agressão que lhe foi feita pelo Governo" (12 de dezembro de 1907):
O Governo, reconhecendo-se fraquíssimo na base primitiva, procurou outra para a agressão, e foram as célebres instruções em que, a
pretexto de regulamentar lei que data de há 40 anos, visava de fato alterar obrigações e criar obrigações novas em contrato firmado pelo próprio Governo; reconhecendo-se fraquíssimo nessa base, o sr. ministro da Indústria inventa outro
expediente, muda a ação administrativa em ação comercial, e cria a estupefaciente doutrina da comunhão de bens em caso como o de que se trata, fazendo o Governo sócio de empresas particulares que não têm garantia de juros, subvenção ou benefício
pecuniário de qualquer espécie.
Imagem: reprodução parcial da página 255
[91] Ver: as concessões para as Docas D. Pedro II (decretos n. 4.492, de
23 de março de 1870, cláusula II, e n. 5.438, de 15 de outubro de 1873, cláusula II); para as obras do porto do Maranhão (decreto n. 4.541, de 20 de junho de 1870, cláusula III); para as obras do porto da Bahia (decreto n. 4.966, de 16 de
fevereiro de 1871, cláusula III).
[92] Assim o decreto n. 6.463, de 25 de abril de 1907, aprovando as cláusulas para revisão do contrato da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, uma
das quais dizia: "O capital será fixado à vista do orçamento…", e, também, o decreto n. 7.159, de 29 de outubro de 1909, pelo qual a Compagnie Française do porto do Rio Grande do Sul obteve autorização para construção de uma estrada de ferro, uma
de cujas cláusulas dizia: "O custo da linha férrea, de acordo com os planos e orçamento aprovados…"
[93] "Chegou à Companhia Docas a vez de recorrer ao Poder Judiciário para invocar direitos, ela que até agora só frequentou as antecâmaras dos ministros,
arrancando destes escandalosos favores que sempre redundaram em prejuízo do comércio e da lavoura. As administrações Campos Salles e Rodrigues Alves foram o período das vacas gordas, é justo que venham agora as vacas magras, para que ela pague
pecados velhos e novos". Tribuna (Santos), no Diario de Noticias do Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1907.
[94] "Engana-se redondamente a Tribuna quando avança que a fiscalização agora regulada não tem aplicação a empresas já organizadas e existentes antes do
referido ato, como as Docas de Santos. Esse ato não criou direito novo e muito menos feriu direitos adquiridos". Diario de Noticias, 10 de agosto de 1907.
[95] "É pois esse trabalho um novo atestado, aliás supérfluo como tal, da alta e escrupulosa probidade científica do eminente jurisconsulto e advogado". O
Paiz, 12 de dezembro de 1907.