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BAIXADA SANTISTA - LIVROS - Docas de Santos
Capítulo 18

Clique aqui para ir ao índicePublicada em 1936 pela Typographia do Jornal do Commercio - Rodrigues & C., do Rio de Janeiro - mesma cidade onde tinha sede a então poderosa Companhia Docas de Santos (CDS), que construiu o porto de Santos e empresta seu nome ao título, esta obra de Helio Lobo, em 700 páginas, tem como título Docas de Santos - Suas Origens, Lutas e Realizações.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos/SP, pertenceu ao jornalista Francisco Azevedo (criador da coluna Porto & Mar do jornal santista A Tribuna), e foi cedido a Novo Milênio para digitalização, em maio de 2010, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, sendo em seguida transferido para o acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 122 a 130:

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Docas de Santos

Suas origens, lutas e realizações

Helio Lobo

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SEGUNDA PARTE (1896-1905)

Capítulo XVIII

Armazéns gerais. Taxas municipais

Era da lei de 1869, reguladora da concessão, que as empresas de Docas poderiam obter "a faculdade de emitir títulos de garantia das mercadorias depositadas nos respectivos armazéns, conhecidos pelo nome de warrants (artigo 1º, § 5º). Regulamento especial disporia sobre isso.

Um projeto de lei autorizando a criação de armazéns gerais, em debate na Câmara Federal, continha, além de outras disposições, a que autorizava, nas alfândegas, a instituição de salas para vendas públicas de café. Para o Correio Paulistano (18 de dezembro de 1898) era o assunto prematuro, além de oferecer, na sua forma legislativa, "um duplo perigo – a ruína da lavoura pela restrição ainda maior do crédito e pela depreciação mais acentuada do café, e a instituição de um enorme monopólio… de intromissão, sem nenhuma das vantagens que o monopólio para a venda pode trazer". No Estado de São Paulo, do mesmo dia, a oposição, ao examinar o projeto na Câmara, não era menor:

Mas isto, decididamente, não pode ser. A Câmara há de reconsiderar o seu voto e, se o não reconsiderar, já que o Senado não terá tempo de corrigir o erro dos deputados, o Governo há de se opor a que a estranhíssima medida entre em execução.

Que tremendo abalo econômico não haveria em São Paulo se se suprimisse de repente o comércio de comissões! E que triste destino o dos lavradores que precisam de dinheiro (quase todos) e que teriam de sujeitar-se, sem protestar, à lei que lhes impusesse a poderosa empresa!

A Companhia de Docas poderia dispor, como verdadeira soberana absoluta, de toda a riqueza paulista. Seria uma monstruosa sanguessuga, a absorver tranquilamente, à sombra da lei, toda a seiva do Estado. Não há absurdo maior.

No porto, lamentava a Cidade de Santos, entre outras coisas, o desaparecimento do transporte por caminhões (20 de dezembro de 1898):

Não contente com o monopólio do porto, com taxas de armazenagem exageradas, construiu a Companhia armazéns para o recebimento de café, fazendo desaparecer em futuro próximo os transportes em carroças e caminhões, matando, portanto, essa indústria que tanta vida dá a Santos.

Um concorrente assim favorecido torna-se inexpugnável, transforma-se em um Estado no Estado, precisando ser combatido com veemência e patriotismo.

Mais longe, entretanto, vão as aspirações da Companhia Docas. A poderosa senhora do porto de Santos, o único do Estado de São Paulo, sonha com o monopólio do café, pretendendo assim matar o comércio de caminhões.

Votou, em consequência, a Associação Comercial de São Paulo uma representação ao senador Moraes Barros e ao deputado Bueno de Andrada (20 de dezembro de 1898) para que ambos promovessem os passos necessários de defesa. Alarmou-se também a congênere de Santos. Na sessão da Câmara Federal, de 22 do mês de dezembro, foi explicada, porém, a iniciativa:

O SR. ALCINDO GUANABARA, antes de entrar na discussão do orçamento em debate, pede permissão à Câmara, visto estar na tribuna, para explicar uma emenda que apresentou com o seu nobre colega da Comissão de Orçamento, ausente, o sr. Serzedello Corrêa, sobre a venda pública de café, e que provocou reclamações no Estado de São Paulo.

Argui-se que a medida tem por fim entregar o comércio do café à Companhia Docas de Santos. Nada mais injusto. O propósito da emenda é exclusivamente favorecer o produtor do café de modo a libertá-lo da situação em que se acha, coagido a dar a sua mercadoria até na própria porta da fazenda aos agentes dos exportadores.

Conferindo ao Governo autorizações para estes armazéns públicos, colocando o produtor em comunicação imediata com o comprador, não houve benefício nenhum especial dado à Companhia Docas de Santos, porque ela está no gozo de emissões de warrants, já pelas leis de 1869 e 1886, já pelo próprio decreto de sua concessão.

Se fosse possível à Companhia monopolizar o comércio do café produzido naquele Estado para exportação, ela já o teria feito e se não o fez ainda é naturalmente porque não lhe convém, porque não temos organização bancária capaz de resistir a esta situação.

Esta situação não se modifica pela sua emenda, que se compõe de duas partes, uma relativa à venda pública e outra sobre a emissão de warrants. Esta segunda parte foi suprimida porque o orador verificou posteriormente que o ex-ministro da Fazenda, o sr. Bernardino de Campos, tinha regulamentado a matéria.

O motivo que o levou a patrocinar a emenda a que se refere foi, sobretudo, facilitar o concurso por parte do Estado para que os interessados diretamente na questão do café se liguem, e como a sua organização atual é insustentável, procurem meios de sair dela, isto é, afastar quanto possível o intermediário.

O próprio chefe da Nação, em telegrama à Associação Comercial de Santos, explicaria que não merecia o caso o escarcéu levantado [62]. Por seu lado, uma comunicação da empresa (Jornal do Commercio, 22 de dezembro de 1898) reduzia a questão, no que lhe dizia respeito, aos seus verdadeiros termos:

O direito de emitir warrants foi concedido pela lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869, ao que não se opõe, antes confirma, a emenda do sr. Serzedello. Em virtude dessa lei e dos contratos celebrados com o Governo, a Companhia Docas de Santos tem o direito de emitir warrants. Ainda este direito foi confirmado pelo decreto n. 2.502, de 24 de abril de 1897.

Essa faculdade não é exclusiva da Companhia Docas de Santos; compete também às Alfândegas, docas em geral e a muitos outros estabelecimentos declarados no citado decreto.

Deste assunto não trata a emenda do sr. Serzedello.

Sobreleva notar que as vendas públicas por atacado, objeto da emenda do sr. Serzedello, são voluntárias e não de café determinadamente, mas em geral, de mercadorias de importação e exportação, que serão especificadas em tabela que acompanhará o ato de cada autorização.

Em vista do que, não há pretexto sequer para ver na emenda do sr. Serzedello arriscados os altos interesses do Estado, ou ainda dos particulares. Não sendo lei o projeto do orçamento, em que está inserta a emenda do sr. Serzedello, a Companhia Docas de Santos não cogitou ainda da prática da sala de vendas públicas por atacado.

A verdade era que a criação dos warrants só podia ter o assentimento da praça de Santos, quando não do Estado em geral. Mas a maneira de regulamentá-los, bem como certos interesses em jogo, pediam tempo. Ministro da Fazenda, baixou Bernardino de Campos, em 1897, um decreto precedido de longa exposição explicativa [63], mas havia ficado sem efeito.

A própria Companhia, com o intuito de preparar a opinião para essa reforma, fizera publicar alguns estudos, acompanhados de uma extensa exposição de punho de J. X. Carvalho de Mendonça [64].

Posteriormente, o decreto legislativo n. 1.102, de 21 de novembro de 1903, regulou o estabelecimento de empresas de armazéns gerais, de modo que, baseada nele, a de Santos ofereceu um projeto de regulamento (12 de fevereiro de 1904) que só nove meses depois (12 de novembro de 1904) o Governo Federal acolheu, com modificações (decreto n. 5.355).

Tais modificações eram, porém, inaceitáveis pela empresa, que sobre elas não fora ouvida. E só três anos mais tarde (17 de setembro de 1907, decreto n. 6.644) foi o assunto definitivamente regulado.

Em duas exposições, que fez ao Governo Federal, alinhou a Companhia as razões fundamentais de suas divergências. Os depósitos de café em Santos, no valor já então de cerca de 50.000 contos, precisavam movimentar-se. Mas as providências do decreto n. 5.355 redundavam, segundo a Companhia, em maiores tropeços, além de outros ao comércio em geral.

Esse decreto, além de reduzir os armazéns das companhias a armazéns alfandegados, proibia a emissão de títulos sobre mercadorias de importação; subordinava até a polícia e economia dos armazéns gerais, destinados à guarda de mercadorias não sujeitas ao imposto aduaneiro, à fiscalização da Alfândega, coisa que nem aos particulares se permitia; desprezava os interesses do Tesouro, ao prorrogar o prazo de 4 para 8 dias; tornava ilíquidos os títulos de depósito e warrants sobre mercadorias importadas, quando a virtude deles estava justamente na sua liquidez e certeza etc.

Julgou a empresa, em consequência, e com pesar o disse, que essa situação era incompatível com suas leis e contratos, prejudicando "todas as vantagens que o decreto legislativo n. 1.102 teve em mira ao permitir e fomentar a emissão e negociação dos conhecimentos de depósito e warrants sobre mercadorias de importação"
[65]. Lê-se na primeira representação (11 de novembro de 1904):

Na organização do regulamento interno, que a Companhia Docas de Santos teve a honra de submeter à aprovação do Governo, esforçou-se ela, como lhe cumpria, em acautelar e garantir o mais possível os interesses da Fazenda Nacional; melhor não poderia satisfazer esses interesses do que adaptando o serviço em execução no porto de Santos ao regime do decreto legislativo n. 1.102, de 1903.

Nem seria justificável que, pelo simples fato de emitir sobre mercadorias de importação os títulos de que fala este decreto legislativo, arquitetasse ela um outro serviço independente, oneroso e regulado por disposições diversas das que a experiência de um decênio tem aconselhado. Outro não foi o pensamento do decreto legislativo n. 1.102, bem claro nas primeiras linhas do seu artigo 4º.

A inconsistência das modificações constantes do decreto n. 5.355 deu à diretoria da Companhia Docas de Santos a certeza da correção do seu proceder e a mais plena convicção de eu ela soube amparar com alto apuro os interesses da Fazenda Nacional, conciliando-os, entretanto, dentro do terreno legal, com os do comércio, em cujo benefício foram instituídos os armazéns gerais.

A segunda representação assim concluía (15 de setembro de 1905):

Diz a lei n. 1.102 que a Fazenda Nacional é privilegiada pelos direitos ou impostos que lhe forem devidos (artigo 26); que este crédito será declarado exatamente nos títulos, sob pena de perda de preferência.

Para garantir a Fazenda deu o regulamento a responsabilidade ao conferente.

As alterações do decreto n. 5.355 querem que, além dessa responsabilidade, exista a do dono ou cessionário das mercadorias.

Ora, a vantagem dos títulos é a sua liquidez e certeza; o portador de boa fé precisa saber ao certo e definitivamente quanto tem de pagar ao fisco. Se este imposto estiver sujeito à variação por ocasião de sair a mercadoria, bem se compreende, os títulos tornar-se-ão sem valor por causa das surpresas de última hora, filhas da inépcia ou má fé dos conferentes.

Outro ponto, os leilões não podem ser os mesmos das Alfândegas, suscetíveis de um processo longo. O aviso das mercadorias abandonadas deve ser dado pela Companhia Docas, marcando o prazo de quatro dias para a retirada, findos os quais a mercadoria será vendida por corretor ou leiloeiro (lei . 1.102, artigo 10, § 1º).

As emendas do decreto n. 5.355 revogam a lei; mandam que a Companhia avise ao inspetor, que este expeça aviso ao depositante, marcando oito dias, sob pena de ser vendida em leilão.

Não se compreendeu, então, que o interesse da Companhia era por uma solução urgente e adequada; levou-se mesmo sua atitude à conta de oposição. Foi o caso de Candido Rodrigues, declarando, aliás, no Senado de São Paulo, não ter conhecimento aprofundado do assunto, deu a entender que, devido ao capricho ou à má vontade da Companhia Docas de Santos, aconselhada pelo seu advogado, o Estado não gozava até então do benefício dos armazéns gerais com a faculdade de emissão de títulos de conhecimento de depósito e warrants.

Fundamentou, então, o mesmo senador, um projeto
[66], autorizando o Governo a garantir os juros de 6% ao capital necessário à construção, dentro de 2 anos, dos referidos armazéns (13 de agosto de 1906).

Combateu essa suposição, em vários artigos do Estado de São Paulo (5 e 6 de setembro de 1906) J. X. Carvalho de Mendonça, citando os esforços da empresa desde anos atrás:

Nem se diga que a Companhia farejava lucros. Era mister que a instituição estivesse em seu auge, que tivéssemos bolsas que alimentassem os depósitos em extraordinária escala, para se esperar, não direi alguns grandes lucros, mas lucros que remunerassem o capital. A prova do que afirmo está no projeto do ilustre senador Candido Rodrigues. S. ex. acha que é indispensável a intervenção do Estado, garantindo juros de 6% aos capitais empregados nas empresas de armazéns gerais.

À questão dos warrants se ligava a dos impostos e do aumento de armazéns, a operar-se, também, veremos adiante, não sem resistência. Que a empresa estava isenta de impostos municipais, como se achava dos estaduais e federais, não havia dúvida para o Ministério da Viação, o qual oficiou, nesse sentido, ao Governo do Estado (6 de março de 1903).

Havia também lei estadual, proibindo imposto municipal sobre concessões federais. "As obras e serviços contratados com a Companhia docas de Santos - disse aquele Aviso - são obras e serviços federais, isentos, portanto, de toda sorte de impostos, sejam federais, sejam estaduais ou municipais. Os armazéns mandados construir no litoral daquele porto são do domínio da União e, como tal, inalienáveis".

Motivara a decisão a contribuição votada pela Câmara Municipal de Santos a princípio sobre os prédios e armazéns e, depois, sobre os negociantes que deles se servissem para depósito de suas mercadorias. Já nos Avisos ns. 746, de 9 de agosto de 1893; 272, de 1º de dezembro de 1899; e 143, de 6 de julho de 1901, insistira o Governo Federal no seu ponto de vista. Reclamou a Companhia contra a Câmara Municipal (outubro de 1906), posição que renovou em junho e agosto de 1907:

Os bens e serviços federais não podem ser taxados pelos Estados e, com maior razão, pelas Municipalidades. É o preceito do artigo 10 da Constituição Federal. Na conformidade deste preceito, a lei federal n. 1.145, de 31 de dezembro de 1903, declarou que todas as empresas de docas gozam de isenção de quaisquer impostos, inclusive estaduais e municipais.

Já se vê que não se trata de um favor exclusivamente à suplicante, mas de uma medida de caráter geral, garantida pela Constituição Federal e definida em lei expressa, além de consignada em contrato solene celebrado entre a suplicante e o Governo Federal (Contratos de 14 de novembro de 1902 e 29 de janeiro de 1904).

De igual favor gozam as estradas de ferro (Avisos do ministro da Industria, de 31 de junho de 1901 e 28 de março de 1906) e as companhias de navegação nos portos da República, gozando favores da União, como o Lloyd Brasileiro, a Companhia Cruzeiro do Sul, a Empresa Esperança Marítima e a Companhia Navegação São João da barra e Campos (de. N. 6.164, de 9 de outubro de 1906, cláusula XV).

Parece à suplicante que, depois de leis e decisões tão claras e de tantas reclamações que tem dirigido, esse ponto já devia estar reconhecido pela Municipalidade de Santos, tanto mais quanto o ministro da Indústria e Viação já se dirigiu a essa corporação, explicando o direito da companhia que, executando obras federais, está isenta de impostos municipais.

Na imprensa local, foi geral a resistência [67]. Recai o imposto no comerciante, não nos próprios nacionais, escreveu o Diario de Santos (10 de março de 1903), rebatendo, em editoriais sucessivos, a doutrina da isenção. Escreveu a Tribuna (10 de março de 1903):

Qualquer um podia estar persuadido de que a Companhia Docas era uma empresa particular, rodeada de favores excepcionais, é certo, mas enfim particular, sujeita a dispositivos legais e à fiscalização do Governo Federal. Pois estava barrado. A verdade é essa que aí está no Aviso: a Companhia é uma dependência da União, ou, melhor, representa aqui o Governo da União. Nessas condições, nem ela está sujeita às leis do Estado, nem às leis e às autoridades do Município.

Havia explicado a empresa, ainda uma vez, sua posição (Relatório da diretoria, 1908):

Se fosse facultado às Câmaras Municipais poderem tributar as obras e serviços que a União mandasse executar nos respectivos portos, de acordo com a Constituição e leis federais, ficariam esses serviços à mercê de tais corporações, que teriam o poder de criar uma muralha da China, em cada um deles, vedando a entrada ou saída de mercadorias de importação ou exportação. Em Santos está feita a demonstração de quanto lucra o fisco e avantaja-se o comércio e a navegação com as obras e serviços que a nossa Companhia ali executa.

Sempre entendemos que, tendo tomado por contrato a obrigação de executar, em Santos, as obras de melhoramentos do porto, que compreendem o cais e edifícios aparelhados para a boa execução de todo o serviço aduaneiro, prestado aos navios e mercadorias de importação e exportação, devíamos nos preparar para dar-lhes plena e conveniente execução. Nesse sentido, tudo temos envidado, não olhando a sacrifício para bem servir a União e ao comércio.

A construção dos novos armazéns não levantou menor grita. É que a do cais acabava, aos poucos, com pequenas indústrias e profissões. Em Aviso de 18 de abril de 1901, autorizou o ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas a Companhia, entre outras coisas, a substituir o calçamento dos armazéns por outro de concreto e madeira, de modo a se receber o café já ensacado para embarque; a construir mais um armazém no aterro já pronto e outros novos fora dessa faixa, ao longo do cais, para o café que tivesse que ser ali manipulado e ensacado.

Contra tais medidas representou longamente a Câmara Municipal (18 de abril de 1901) com argumentos curiosos, vistos hoje, mas então de imediata repercussão: a diminuição das rendas municipais pelo desaparecimento do imposto sobre as carroças; e do predial, pela supressão dos armazéns de café, então existentes, com capacidade para mais de três milhões de sacas; a miséria em que cairiam cerca de 4.000 pessoas vivendo do transporte e de outras indústrias subsidiárias.

As concessões sobre novos armazéns e isenções de impostos significavam a morte do município de Santos: "Impossível, doravante – dizia a Câmara -, o desdobramento do seu progresso; impossível a regularidade de sua administração; impossível o serviço de sua dívida; certa, certíssima, sua decadência". Nos seus trechos principais rezava assim o documento:

Existem em Santos armazéns com capacidade para a guarda e manipulação de mais de três milhões de sacas de café. Esses armazéns representam grande capital empregado pelos seus proprietários e apreciável soma de impostos cobrados pela municipalidade; neles, é, de há muitos anos, e com uma regularidade proveitosa ao comércio e à lavoura, manipulado e ensacado o café produzido pela zona paulista.

A autorização à Companhia Docas de Santos para, já na faixa do cais e já fora dela, construir novos armazéns onde possa, a despeito da abundância dos existentes, manipular e ensacar todo o café que pode descer da zona produtora, excede a todos os limites do protecionismo individual, decreta o prejuízo da propriedade que, confiadamente, empregava seus capitais em edificações valorizadas, restringe enormemente os rendimentos da Câmara, arrisca iniludivelmente a permanência da ordem pública.

No quarto parágrafo, porém, da aludida concessão, como que a justiça e a inviabilidade se intrigam. Traz ele a criação do monopólio comercial de importação e exportação; organiza a desorganização do Município de Santos; escraviza a lavoura a um só comissariado; condena a Câmara a calotear os seus credores; entrega a uma empresa particular, colocada em condições prestigiadíssimas, dois terços do café consumido no mundo inteiro. Não é só isso: condena à miséria, quando não à fome e ao motim, um mundo de milhares de trabalhadores.

Foi o período em que o Diario de Santos interrompeu seu apoio até então invariável ao cais, para fazer objeções que o tempo desautorizaria. "O futuro desenha-nos a cidade de Santos substituída pela Companhia Docas, da qual será uma feitoria", escreveu num dos artigos de uma série, na qual se lamentou a extensão do cais, em desperdício extraordinário, a morte das festas venezianas que ali se celebravam, pois a cidade ficaria até sem praias, com acesso vedado ao porto (9 de julho de 1904):

A empresa começou apoderando-se de todo o litoral do porto e pouco a pouco, sem necessidade de próximo prolongamento, foi se estendendo até os Outeirinhos.

A cidade ficou sem acesso livre até ao porto e, quem lá quiser ir, tem de ser hóspede da Companhia, que lhe mandará abrir os seus pesados portões de ferro.

Nas noites de diversões, em que as sociedades de sport náutico realizam festas venezianas, ou nos dias de corridas e apostas, o nosso povo lá tem de ir ao Paquetá, para contemplar os encantadores barcos que se deslizam céleres sobre a superfície plácida das águas.

E procura-se o Paquetá por enquanto, porque o Paquetá também pertence à Companhia, que por ali prolonga as suas obras, as quais concluídas, terá o seu litoral isolado da cidade pelos armazéns e pelas grades.

A cidade não tem servidão propriamente sua para o porto: este tornou-se propriedade da Companhia e esta, armada de excepcionais privilégios, avança resolutamente, plantando-se definitivamente no solo que quer.

Saiu ainda a campo, no mesmo Diario de Santos, J. X. Carvalho de Mendonça, refutando assim a representação, como os argumentos, da imprensa local. Vale a pena consignar suas palavras de sabedoria (13 de julho de 1901):

A representação revive a velha e vencida questão das máquinas. Se a marcha da civilização se interrompesse todas as vezes que se desse um atrito entre as rodas do progresso e os muros das oficinas, ou o braço do trabalhador, que seria daquela? A humanidade ficaria eternamente no seu ponto de partida.

O velho Montaigne dizia, com muito espírito: "Ao arquiteto apraz sempre a ruína dos edifícios; os oficiais de justiça gostam de processo e querelas; a honra, até de que se cercam os ministros da religião, deriva da nossa morte e dos nosso vícios; não há médico que folgue com a saúde de seus próprios amigos e vizinhos etc."

É justa, confesso, a grita dos carroceiros, dos proprietários de cocheiras, animais e capinzais, e donos de armazém. Para estes interessados, Santos nunca devia ter o seu porto melhorado, as suas docas aparelhadas. Que prazer não experimentariam eles se, por um dos fenômenos naturais, desaparecessem as docas?

O que me parece fora de razão, peço venia para dizer, é que o sr. intendente escrevesse aquela representação com olhos de míope, quando devia procurar ver ao longe e descobrir o inimigo em outros arraiais.

Tranquilize-se o sr. intendente; os braços a que as Docas, no seu entender, tirarem do trabalho, não ficarão condenados irremediavelmente; ficam livres para novas ocupações, e é na multiplicação dos braços e na sua variada aplicação a muitos e novos misteres que se cifra o melhoramento e progresso da humanidade
[68].

A resposta do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas fora, aliás, conclusiva (6 de julho de 1901):

Em resposta à representação que dirigistes a este Ministério, contra as autorizações dadas ultimamente à Companhia Docas de Santos, para aumento de seus armazéns, em aviso n. 87, de 18 de abril próximo passado, cabe-me dizer-vos que não tem lugar de ser atendida, pelos seguintes motivos:

1º - Porque essas autorizações não fizeram concessão nova ou contrária ao comércio de Santos, e menos ainda, constituem a Companhia em comissária de café.

Nada há naquele ato que altere os fundamentos da concessão da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869; trata-se de facilitar o transporte no tempo e no custo, que é o principal fim daquela lei.

Os favores que, desde então, e antes do aviso de 18 de abril último, foram feitos à Companhia, não têm o caráter que a representação lhes atribui, são complementos naturais da obra em si mesma e não podem ser definidos como parte de uma série de atos para o fim de satisfazer unicamente à Companhia.

2º - Porque, como concessão federal que é, não devem as Docas de Santos pagar impostos municipais, conforme pedis no final da representação. A doutrina está firmada pelos avisos, por cópia juntos, ns. 272 e 276, de 1º e 2 de dezembro de 1899, ns. 16 e 22, de 13 de julho e 11 de setembro de 1896, os três últimos referentes à Estrada de Ferro, mas por iguais fundamentos; visto o que, e atendendo aos direitos existentes, deixo de dar provimento à representação dessa ilustre Câmara
[69].

Demolição de antigas pontes de trapiches em Paquetá (1899)

Foto: reprodução da página 122-a


[62] "Palácio da Presidência, 21 de dezembro de 1898. – À Associação Comercial de Santos – Emenda sobre vendas públicas de café não reveste caráter imperativo, sendo apenas uma autorização confiada ao critério da administração e da qual o Governo não fará uso verificada inconveniência da medida. Ela não constitui tampouco monopólio ou privilégio a empresas de qualquer natureza, podendo a concessão de armazéns ser dada a quem solicitar. Demais, não estabelece obrigatoriedade para os produtores, os quais poderão expor à venda seus gêneros pelos processos que preferirem. É, pois, um regime de ampla liberdade que não compromete interesse de classes ou indivíduos, quando mesmo fosse utilizada a autorização, o que só se dará reconhecida de modo positivo e com aquiescência das classes interessadas na utilidade da medida. Não há, portanto, motivo para apreensão. – Campos Salles".

[63] Decreto n. 2.502, de 24 de abril de 1897. As palavras finais da exposição, depois de assinalado o ocorrido noutros países, eram estas: "O valor intrínseco da coisa depositada coloca o warrant entre os títulos de primeira ordem, pois que além de só ser preferido pelos direitos da alfândega, taxas das docas, despesas de venda, armazenagem, conservação e salvamento, sobre a mercadoria dada em garantia, ainda resta ao credor, no caso de insuficiência do produto da venda da garantia real, a ação pessoal contra o primitivo devedor e os endossantes, responsáveis solidários.

"Junta a estas garantias, já de si valiosas, a da rapidez a da execução, deve-se esperar que os títulos emitidos inspirem a maior confiança aos bancos e capitalistas. As demais disposições do regulamento não carecem de justificação; explicam-se por si. Com as concessões feitas, a exemplo de outras nações, conseguiremos o elevado intuito da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869 – "o uso dos warrants no Brasil", e este primeiro resultado trará outros, de não menor importância, para o maior desenvolvimento do comércio e da produção".

[64] "Exposição sobre o estabelecimento de armazéns gerais e emissão de títulos, bilhetes de depósito e warrants". Jornal do Commercio, 10 de julho de 1901.

[65] "Como já disse, é com pesar que ela não inicia desde já o serviço de emissão de conhecimentos de depósitos e warrants na grande praça comercial de Santos, onde é ansiosamente esperado. O que não se poderá negar é a boa vontade da Companhia em atender aos reclamos insistentes do comércio de Santos.

"Depois de publicado o decreto legislativo n. 1.102, ela, sem perda de tempo, preparou-se para desempenhar tão valioso serviço, submetendo à aprovação do Governo Federal, desde o dia 12 de fevereiro deste ano, o regulamento interno dos armazéns gerais. Infelizmente o decreto n. 5.355, de 22 de outubro findo, aprovando esse regulamento, modificou-o em pontos substanciais.

"Nessas condições é preferível não fazer aquele serviço, a desempenhá-lo deturpando com entraves e subordinação da Companhia a um regime diverso daquele em que vive atualmente à sombra das leis e de seus contratos.

"Ao espírito ilustrado de v. ex. não passarão despercebidas as considerações acima expostas, e a Companhia Docas de Santos, no intuito de vir em auxílio do comércio e agricultura do Estado de São Paulo, facilitando-lhes as vantagens e benefícios dos armazéns gerais, dirige-se de novo ao Governo solicitando a aprovação do regulamento interno submetido à sua aprovação nos termos do artigo 4º do decreto legislativo n. 1.102, de 21 de novembro de 1903, revogado o decreto n. 5.355, de 22 de outubro último". – Representação ao Ministro da Fazenda, 11 de novembro de 1904.

[66] Artigo 1º - Fica o Governo autorizado a garantir juros de 6% ao capital necessário de 4.000 contos que, dentro do prazo de 2 anos, a contar da promulgação da presente lei, for empregado na construção dos armazéns gerais, de que trata a lei federal n. 1.102, de 21 de novembro de 1903.

§ 1º - O prazo de garantia de juros não poderá exceder de 10 anos, assim como não poderá exceder de 400 contos o capital garantido a cada concessionário para a construção na mesma localidade.

§ 2º - O Governo poderá permitir a localização em qualquer ponto do interior do Estado que melhor consulte os interesses da lavoura e comércio".

[67] Na caricatura local do Santos Illustrado o ministro da Viação, Lauro Muller, prometia passar um "foguete ao intendente" que ousou apertar sua dama, as Docas.

O Diario de Santos comentou: "A Câmara Municipal deve ela centenares de contos e sistematicamente nega-se a qualquer pagamento, dizendo-se deles isenta em virtude da disposição da Carta Constitucional de 24 de fevereiro. Quem poderá lutar com uma organização desta natureza, gozando de tão excepcionais favores, superior ao Município e ao Estado, impondo nas suas funções, desapropriando à sua vontade, ordenando sem embaraços, importando livremente e sendo um Estado dentro do Estado!" – 12 de julho de 1904.

[68] A representação do Sr. Intendente. – Diario de Santos, 13 de julho de 1901.

[69] Não ficou em silêncio a imprensa: "Bem sabemos que a Companhia Docas, vivendo, como vive, sob a inspiração de Tartufo, há de provar e mostrar o contrário do que afirmamos; há de ajeitar a forma do warrant, há de preparar a taxa módica a título de depósito de mercadorias, há de obter a regulamentação dessa taxa, para imprimir todo o valor de legitimidade à negociata. Nós, porém, insistimos em demonstrar, desde já, que quaisquer que sejam os artifícios que a Docas empregue para encobrir os seus verdadeiros intuitos, o seu ponto objetivo é alugar aos comissários de Santos todos os armazéns que for construindo – e já de há muito aluga os que possui na linha e fora da linha do cais –, concentrando assim toda a produção cafeeira do Estado nos seus vastos depósitos estendidos ao longo do litoral e infligindo à cidade de Santos, por onde todo esse café transita, a mais agonizante das mortes – a morte por inanição". Tribuna (Santos), 15 de julho de 1901.