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*Publicado originalmente pelo editor de Novo Milênio no caderno Informática do jornal A Tribuna de Santos, em 18/5/1999.
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/07/00 14:13:56
BUG DO MILÊNIO
Conseqüências jurídicas do Bug do Milênio 

Ninguém pode alegar desconhecimento: todos são obrigados a corrigir o problema

Juiz Dr. Luiz Fernando Mussolini Jr.(*)
Colaborador

Num país em que, lamentavelmente, consta que a norma fundante, anteposta à própria Constituição Federal, permeando o sistema jurídico como um todo, é a jocosamente conhecida Lei de Gerson, cuja interpretação mais pura é a de que "é preciso levar vantagem em tudo", circula o conceito de que 1998 foi o ano dos consultores em informática (a quem se atribui o diagnóstico do problema), 1999 é o ano dos programadores (que o estão corrigindo) e 2000 será o dos advogados, que moverão ações milionárias em função dos possíveis prejuízos que serão causados pelo chamado "Bug do Milênio".

Longe de assumir postura quixotesca, que se afaste de nossa realidade sócio-cultural, prefiro, entretanto, me reportar à sempre viva lição do velho mestre Alfredo Augusto Becker, que dizia:

"... A verdadeira missão do advogado, a que lhe permite contribuir para uma sociedade mais pacífica, onde as atividades produtivas melhor se desenvolvam e frutifiquem, é muito mais de orientação e prevenção, que de defesa ou ataque. A barra do tribunal deve ser para o advogado o que a sala de operações é para o médico: o último reduto dos seus esforços, não o panorama normal de suas atividades".

Partindo dessa premissa, que para mim é imperativo de ética profissional e de conduta pessoal, fixo outro pressuposto do exame das implicações jurídicas das falhas na correção dos problemas derivados do "Bug do Milênio": a exaustiva exploração pública do assunto traz a notoriedade das possíveis conseqüências envolvidas, circunstância da qual deriva que ninguém, literalmente ninguém, poderá alegar ignorância para tentar se evadir às prováveis responsabilizações.
 

"Usuários de programas são meros cessionários dos direitos de uso"

Obrigação – Em outras palavras: quem quer que se utilize do processamento de dados como meio de desenvolvimento de suas atividades-fins, hoje pode ser dito obrigado a assumir os procedimentos preventivos que se fazem necessários ao acertamento dos seus programas, quer para que possa dar cumprimento às obrigações contratuais assumidas, quer para evitar que sua omissão ou negligência venham a causar danos aos terceiros com quem se relaciona.

Esse dever não é apenas de ética empresarial mas consiste em verdadeira obrigação jurídica, que deriva de contratos a cujo adimplemento não se poderá eximir ao pretexto de problema causados pelo Bug, ou que está imposta pelas disposições do velho Código Civil Brasileiro e do novo Código de Defesa do Consumidor.

Embora Clóvis Bevilacqua e os juristas da época não pudessem nem ao menos imaginar a existência do processamento eletrônico de dados, tanto não os impediu de esculpir o enunciado do artigo 159, do Código Civil, segundo o qual:

"... Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

Dada ser pública a probabilidade da ocorrência de problemas nos softwares que não forem compatibilizados à virada do milênio, essa regra, geral e abstrata, obviamente se positivará, se concretizará sobre a infinidade de situações contida no universo de todos os usuários intermediários de informática que não tomarem, a seu tempo, as providências técnicas cabíveis e que, em função de sua omissão ou negligência, vierem a causar prejuízos aos terceiros com que transacionam, desde que se estabeleça o nexo causal entre o ônus arcado e a desídia do utente de processamento de dados.

Mesmo advogados – Ocorre-me um exemplo de minha própria atividade profissional, que certamente servirá para ilustrar as afirmações feitas.

Se um escritório de advocacia tem software de cálculos para dimensionar o valor atual dos tributos antes indevidamente recolhidos por um seu cliente, e se, em função da não readequação do programa ou mesmo de sua imperfeita correção, instruir a petição inicial de uma ação de repetição de indébito ou de compensação, com planilha que supervalorize ou infradimensione os montantes cujo ressarcimento vai ser pleiteado, parece-me curial que será responsável. em face do tomador dos serviços advocatícios, na primeira hipótese pela sucumbência que vier a arcar seu patrocinado e, na segunda, pelo ônus que advir de possível prescrição da ação em relação às parcelas que não foram objeto do pedido.

Identicamente, será responsável, também no patamar extracontratual, o fornecedor de um determinado insumo, produto acabado ou serviço que não se acautelar quanto aos problemas que podem acarretar os softwares aplicados na fabricação, comercialização ou execução, pelos prejuízos que sofrer o adquirente ou tomador dos mesmos, em virtude da interrupção do curso de suas atividades normais.

De outro lado, o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, estatui, no caput de seu artigo 18, tratando da "Responsabilidade por Vício do Produto e do Serviço", que
"... Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou de quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas..."

Enquanto o artigo 23 do mesmo Código diz que "... A ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não exime de responsabilidade...".

Importância – Até mesmo a um leigo, salta facilmente aos olhos que uma indústria de cervejas e de refrigerantes será objetivamente responsável, em face dos seus milhões de consumidores, na hipótese de que, por inadequação ou correção imperfeita dos programas afetos ao seu processo industrial, vier a envasar bebidas com quantidades menores do que as anunciadas nos vasilhames respectivos.
Igualmente, uma indústria de laticínios que, em decorrência dos mesmos fatores, comercializar produtos impróprios para o consumo, por estarem com seus prazos de validade vencidos.

As figurações são óbvias, singelas mesmo, mas servem para dar dimensão aos problemas que poderão ocorrer, no plano legal, do descumprimento de contratos e da omissão ou da simples negligência dos agentes econômicos diante da obrigação jurídica de que são sujeitos passivos em corrigir, em tempo, os programas que possam atingir o fluxo regular de suas relações comerciais ou afetar quaisquer características dos seus produtos ou serviços.

Se essas são as conseqüências da não correção ou da correção inadequada dos possíveis problemas, cumpre cogitar do modus de sua prevenção.

É suficientemente claro que todos os utentes de programas passíveis de sofrer o impacto do Bug, não só podem, mas estão verdadeiramente obrigados a promover, em tempo oportuno, a sua adequação técnica, fazendo-o junto aos fornecedores dos softwares, ou internamente com sua própria estrutura de pessoal e, preferencialmente, buscando a certificação, por terceiros especializados, de ter assumido as condutas compatíveis com as responsabilidades que lhes são inerentes.

É evidente que tais procedimentos envolvem custos que poderão atingir montantes expressivos; todavia, é certo que as atitudes corretivas vão servir não apenas para o regular desenvolvimento dos negócios, mas, também, como escudo acautelador no plano jurídico.

Cessionários – Os agentes/utentes que conseguirem junto aos fornecedores dos programas – dos quais, frise-se, são meros cessionários dos direitos de uso – a execução das correções e que, concomitantemente, obtiverem de terceiros experts a chancela formal sobre a adequação procedida, poderão denunciá-los à lide, fornecedor e certificador, em possíveis ações de execução de contratos ou naquelas fundadas na responsabilidade objetiva (CDC), para que, participando eles do feito, fique assim legitimada a ação regressiva contra os mesmos; na hipótese de ação baseada em responsabilidade civil (CCB), igualmente far-se-á a denunciação à lide, para que, demonstrada a inexistência de culpa do agente, o fornecedor do programa (proprietário e cedente dos direitos de uso) e o certificador do ajuste, respondam diretamente pelos efeitos de eventual decisão condenatória.

É patente que, a par dos gastos envolvidos, tais medidas não eliminam as contingências que se situam no campo das imprevisibilidades; sem embargo, não é menos verdadeiro que servirão não só para minimizar tais riscos, como especialmente para possibilitar a continuidade plena das operações, que é a própria razão de ser das empresas.

Prevenir, portanto, com a seriedade que o assunto demanda, é a única postura adequada; proceder ao ajuste é obrigação inarredável, quer interpelando os fornecedores dos programas a cumpri-la, quer procedendo internamente, sempre procurando a certificação externa da assunção das cautelas cabíveis, não só para precatar responsabilidades latentes, como para garantir o fluxo normal das atividades.

O que nós esperamos - nós, os operadores do direito dotados de um mínimo de consciência social - é que os agentes envolvidos tenham o bom senso de assim proceder, o que evitará os prejuízos evitáveis, afastará as contingências afastáveis e, sobretudo, servirá como barreira para as iniciativas menos escrupulosas de todos os que queiram se locupletar em função do imponderável, impulsos esses que certamente afogariam o já aflito e assoberbado Poder Judiciário.
O criador não deve ser vergado pela criatura.

(*) O Dr. Luiz Fernando Mussolini Júnior é juiz presidente da Oitava Câmara do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT); sócio-diretor de Pizzeta, Boeira & Mussolini Advocacia Empresarial na capital paulista e vice-diretor da Faculdade de Ciências Econômicas de São Paulo-Álvares Penteado.

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