BUG DO
MILÊNIO
Conseqüências jurídicas
do Bug do Milênio
Ninguém pode alegar
desconhecimento: todos são obrigados a corrigir o problema
Juiz Dr. Luiz Fernando Mussolini
Jr.(*)
Colaborador
Num país
em que, lamentavelmente, consta que a norma fundante, anteposta à
própria Constituição Federal, permeando o sistema
jurídico como um todo, é a jocosamente conhecida Lei de Gerson,
cuja interpretação mais pura é a de que "é
preciso levar vantagem em tudo", circula o conceito de que 1998 foi o ano
dos consultores em informática (a quem se atribui o diagnóstico
do problema), 1999 é o ano dos programadores (que o estão
corrigindo) e 2000 será o dos advogados, que moverão ações
milionárias em função dos possíveis prejuízos
que serão causados pelo chamado "Bug do Milênio".
Longe de assumir postura quixotesca,
que se afaste de nossa realidade sócio-cultural, prefiro, entretanto,
me reportar à sempre viva lição do velho mestre Alfredo
Augusto Becker, que dizia:
"... A verdadeira missão
do advogado, a que lhe permite contribuir para uma sociedade mais pacífica,
onde as atividades produtivas melhor se desenvolvam e frutifiquem, é
muito mais de orientação e prevenção, que de
defesa ou ataque. A barra do tribunal deve ser para o advogado o que a
sala de operações é para o médico: o último
reduto dos seus esforços, não o panorama normal de suas atividades".
Partindo dessa premissa, que para
mim é imperativo de ética profissional e de conduta pessoal,
fixo outro pressuposto do exame das implicações jurídicas
das falhas na correção dos problemas derivados do "Bug do
Milênio": a exaustiva exploração pública do
assunto traz a notoriedade das possíveis conseqüências
envolvidas, circunstância da qual deriva que ninguém, literalmente
ninguém, poderá alegar ignorância para tentar se evadir
às prováveis responsabilizações.
"Usuários
de programas são meros cessionários dos direitos de uso"
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Obrigação –
Em outras palavras: quem quer que se utilize do processamento de dados
como meio de desenvolvimento de suas atividades-fins, hoje pode ser dito
obrigado a assumir os procedimentos preventivos que se fazem necessários
ao acertamento dos seus programas, quer para que possa dar cumprimento
às obrigações contratuais assumidas, quer para evitar
que sua omissão ou negligência venham a causar danos aos terceiros
com quem se relaciona.
Esse dever não é apenas
de ética empresarial mas consiste em verdadeira obrigação
jurídica, que deriva de contratos a cujo adimplemento não
se poderá eximir ao pretexto de problema causados pelo Bug, ou que
está imposta pelas disposições do velho Código
Civil Brasileiro e do novo Código de Defesa do Consumidor.
Embora Clóvis Bevilacqua e
os juristas da época não pudessem nem ao menos imaginar a
existência do processamento eletrônico de dados, tanto não
os impediu de esculpir o enunciado do artigo 159, do Código Civil,
segundo o qual:
"... Aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar
o dano”.
Dada ser pública a probabilidade
da ocorrência de problemas nos softwares que não forem
compatibilizados à virada do milênio, essa regra, geral e
abstrata, obviamente se positivará, se concretizará sobre
a infinidade de situações contida no universo de todos os
usuários intermediários de informática que não
tomarem, a seu tempo, as providências técnicas cabíveis
e que, em função de sua omissão ou negligência,
vierem a causar prejuízos aos terceiros com que transacionam, desde
que se estabeleça o nexo causal entre o ônus arcado e a desídia
do utente de processamento de dados.
Mesmo advogados – Ocorre-me
um exemplo de minha própria atividade profissional, que certamente
servirá para ilustrar as afirmações feitas.
Se um escritório de advocacia
tem software de cálculos para dimensionar o valor atual dos
tributos antes indevidamente recolhidos por um seu cliente, e se, em função
da não readequação do programa ou mesmo de sua imperfeita
correção, instruir a petição inicial de uma
ação de repetição de indébito ou de
compensação, com planilha que supervalorize ou infradimensione
os montantes cujo ressarcimento vai ser pleiteado, parece-me curial que
será responsável. em face do tomador dos serviços
advocatícios, na primeira hipótese pela sucumbência
que vier a arcar seu patrocinado e, na segunda, pelo ônus que advir
de possível prescrição da ação em relação
às parcelas que não foram objeto do pedido.
Identicamente, será responsável,
também no patamar extracontratual, o fornecedor de um determinado
insumo, produto acabado ou serviço que não se acautelar quanto
aos problemas que podem acarretar os softwares aplicados na fabricação,
comercialização ou execução, pelos prejuízos
que sofrer o adquirente ou tomador dos mesmos, em virtude da interrupção
do curso de suas atividades normais.
De outro lado, o Código
de Defesa do Consumidor, de 1990, estatui, no caput de seu artigo
18, tratando da "Responsabilidade por Vício do Produto e do Serviço",
que
"... Os fornecedores de produtos
de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente
pelos vícios de qualidade ou de quantidade que os tornem impróprios
ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim
como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações
constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária,
respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo
o consumidor exigir a substituição das partes viciadas..."
Enquanto o artigo 23 do mesmo Código
diz que "... A ignorância do fornecedor sobre os vícios
de qualidade por inadequação dos produtos e serviços
não exime de responsabilidade...".
Importância – Até
mesmo
a um leigo, salta facilmente aos olhos que uma indústria de cervejas
e de refrigerantes será objetivamente responsável, em face
dos seus milhões de consumidores, na hipótese de que, por
inadequação ou correção imperfeita dos programas
afetos ao seu processo industrial, vier a envasar bebidas com quantidades
menores do que as anunciadas nos vasilhames respectivos.
Igualmente, uma indústria
de laticínios que, em decorrência dos mesmos fatores, comercializar
produtos impróprios para o consumo, por estarem com seus prazos
de validade vencidos.
As figurações são
óbvias, singelas mesmo, mas servem para dar dimensão aos
problemas que poderão ocorrer, no plano legal, do descumprimento
de contratos e da omissão ou da simples negligência dos agentes
econômicos diante da obrigação jurídica de que
são sujeitos passivos em corrigir, em tempo, os programas que possam
atingir o fluxo regular de suas relações comerciais ou afetar
quaisquer características dos seus produtos ou serviços.
Se essas são as conseqüências
da não correção ou da correção inadequada
dos possíveis problemas, cumpre cogitar do modus de sua prevenção.
É suficientemente claro que
todos os utentes de programas passíveis de sofrer o impacto do Bug,
não só podem, mas estão verdadeiramente obrigados
a promover, em tempo oportuno, a sua adequação técnica,
fazendo-o junto aos fornecedores dos softwares, ou internamente
com sua própria estrutura de pessoal e, preferencialmente, buscando
a certificação, por terceiros especializados, de ter assumido
as condutas compatíveis com as responsabilidades que lhes são
inerentes.
É evidente que tais procedimentos
envolvem custos que poderão atingir montantes expressivos; todavia,
é certo que as atitudes corretivas vão servir não
apenas para o regular desenvolvimento dos negócios, mas, também,
como escudo acautelador no plano jurídico.
Cessionários – Os agentes/utentes
que conseguirem junto aos fornecedores dos programas – dos quais, frise-se,
são meros cessionários dos direitos de uso – a execução
das correções e que, concomitantemente, obtiverem de terceiros
experts
a chancela formal sobre a adequação procedida, poderão
denunciá-los à lide, fornecedor e certificador, em possíveis
ações de execução de contratos ou naquelas
fundadas na responsabilidade objetiva (CDC), para que, participando eles
do feito, fique assim legitimada a ação regressiva contra
os mesmos; na hipótese de ação baseada em responsabilidade
civil (CCB), igualmente far-se-á a denunciação à
lide, para que, demonstrada a inexistência de culpa do agente, o
fornecedor do programa (proprietário e cedente dos direitos de uso)
e o certificador do ajuste, respondam diretamente pelos efeitos de eventual
decisão condenatória.
É patente que, a par dos gastos
envolvidos, tais medidas não eliminam as contingências que
se situam no campo das imprevisibilidades; sem embargo, não é
menos verdadeiro que servirão não só para minimizar
tais riscos, como especialmente para possibilitar a continuidade plena
das operações, que é a própria razão
de ser das empresas.
Prevenir, portanto, com a seriedade
que o assunto demanda, é a única postura adequada; proceder
ao ajuste é obrigação inarredável, quer interpelando
os fornecedores dos programas a cumpri-la, quer procedendo internamente,
sempre procurando a certificação externa da assunção
das cautelas cabíveis, não só para precatar responsabilidades
latentes, como para garantir o fluxo normal das atividades.
O que nós esperamos - nós,
os operadores do direito dotados de um mínimo de consciência
social - é que os agentes envolvidos tenham o bom senso de assim
proceder, o que evitará os prejuízos evitáveis, afastará
as contingências afastáveis e, sobretudo, servirá como
barreira para as iniciativas menos escrupulosas de todos os que queiram
se locupletar em função do imponderável, impulsos
esses que certamente afogariam o já aflito e assoberbado Poder Judiciário.
O criador não deve ser vergado
pela criatura.
(*) O Dr. Luiz
Fernando Mussolini Júnior é juiz presidente da Oitava Câmara
do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT); sócio-diretor
de Pizzeta, Boeira & Mussolini Advocacia Empresarial na capital paulista
e vice-diretor da Faculdade de Ciências Econômicas de São
Paulo-Álvares Penteado.
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