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Publicado originalmente pelo editor de Novo Milênio no caderno Informática do jornal A Tribuna de Santos, em 9/2/1999.
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 01/07/00 14:07:43
BUG DO MILÊNIO
Por quê não há recall em informática? 

Prática na indústria automobilística é normal, quando uma falha é constatada

Carlos Pimentel Mendes
Editor

O que você faria se descobrisse que seu possante carro último tipo possui breque de bicicleta no lugar do freio? E que no contrato de compra há uma cláusula em que o fabricante diz que tal breque nem sempre vai funcionar e, se isso ele falhar, o problema é seu? A situação é parecida com a que enfrentamos na área de computação. Quem leu Informática no dia 2 sabe que as grandes empresas de hardware e de software têm conhecimento da falha conhecida como Bug do Milênio há mais de duas décadas e nada fizeram para resolvê-lo, preferindo aumentar seus lucros com a venda de produtos defeituosos. Você deve estar se sentindo como o infeliz motorista do tal carrão...

Quando um defeito de fabricação é descoberto depois que o veículo começou a ser vendido, já é comum as montadoras fazerem o recall, a rechamada dos compradores para uma revisão e troca gratuita do componente defeituoso. Não é bondade das indústrias, nem manifestação de um espírito de civilidade, ética e respeito ao consumidor, que aliás deveria ser a norma no meio empresarial. É que elas sabem as conseqüências: cada comprador de seus carros, ao descobrir o defeito, sabe que pode acionar a montadora na Justiça, reclamando não só o prejuízo como também um reparo financeiro pelas conseqüências da falha - no caso de acidentes motivados por ela.

Além do quê, toda a imagem pública da empresa, cuidadosamente construída com toneladas de propaganda, vai literalmente para o brejo. Se a própria empresa não for junto, soterrada por milhares de processos e ações judiciais, sanções governamentais etc.

Contratos de informática estão usando este jogo de palavras para transferir o problema ao usuário
Falha intencional – No caso dos automóveis, admite-se que a falha era desconhecida quando do lançamento do produto, não tendo se manifestado nos testes que as empresas são obrigadas a realizar antes de colocá-lo no mercado. Mas, em relação ao Bug do Milênio, o problema é muito mais grave, pois a falha já era denunciada há duas décadas, há anos vem sendo cada vez mais dado o alerta nas publicações especializadas e pelos meios de comunicação em geral. Não há como uma multinacional do setor alegar desconhecimento.

E a melhor prova de que essas empresas sabem o que estão fazendo é encontrada na cláusula que vêm embutindo nos contratos, onde discretamente informam que o produto (computador ou software) não é totalmente compatível com o Bug do Milênio. Só há poucos meses duas delas começaram a produzir equipamentos com o chamado Relógio de Tempo Real (Real Time Clock - RTC) corrigido, pois até então elas preferiam embolsar como lucro o custo de apenas US$ 0,20 por computador representado pelo uso do processador correto. No caso do software, as versões 98 - perdão, 1998 - ainda não foram depuradas e também apresentam falhas.

É evidente a caracterização dessas falhas como defeito de fabricação, sendo o hardware ou software passível de troca pela versão corrigida e tendo o consumidor o direito ao reparo financeiro dos prejuízos causados. Que não são poucos: horas de trabalho perdidas para localizar e corrigir os defeitos, uso de consultorias especializadas, trabalho perdido ou prejudicado por essa falha, reorganização das atividades, lucros cessantes, prejuízo moral e financeiro decorrente de danos a terceiros e falhas na atividade empresarial causadas pelo Bug etc. etc. etc.

Da mesma forma como um freio de carro defeituoso pode causar tragédias, também um computador sob o efeito do Bug do Milênio pode derrubar um avião, fechar um aeroporto, prejudicar uma cirurgia, trazer graves problemas ao abastecimento de uma região ou de um país inteiro. Afora transtornos como as possíveis falhas nos processamentos financeiros - a história de um dia de juros virar um século de cobranças.

Momento – Empresas bilionárias de informática continuam escondendo o problema do público, com a conivência de autoridades governamentais, pois sabem que, na hora em que a avalanche de processos começar, ninguém segura mais, e não terão capital suficiente para reembolsar os prejuízos.

Sabem até que, devido a tais negligências (qualificáveis facilmente como criminosas, uma vez provado que tinham conhecimento do problema e meios para solucioná-lo antes que causasse danos), são passíveis de ações para interdição de suas atividades. Da mesma forma que um laboratório farmacêutico pode ser fechado, se permite (intencionalmente ou não) que pílulas de farinha sejam vendidas como anticoncepcionais.

Calar interessa a certos governos, porque a falência desses gigantes da informática implica em grande abalo nas economias nacionais, sentido primeiro nas bolsas de valores, ao começar a baixa da cotação das suas ações. Por isso, não se espere que as autoridades tomem a iniciativa, a não ser sob forte pressão do eleitorado. E, mesmo assim, é extremamente improvável que os governos forcem as companhias a ressarcir os prejuízos.

Portanto, cabe aos usuários de informática se organizarem e pleitearem essa compensação (o primeiro processo no Brasil pelo Bug do Milênio já foi ajuizado). É hora de os consumidores de informática entenderem que cada Bug é um defeito de fabricação, e cabe ao produtor agir de forma ética, oferecendo reparo imediato e gratuito do problema, criando também na área de informática o procedimento de recall, em vez de juntar todas as correções de falhas num pacote de atualização - e ainda lucrar vendendo essa atualização ao consumidor.

Ou o dono do carro com breque de bicicleta aceitaria jogar o breque no lixo e comprar os freios à parte, dentro de um programa de atualização do veículo montado pela fábrica, seis meses depois? E mais, um ano após a compra do carro, adquirir novos freios para atualizar a versão anterior?

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