Globalinguação
Mário Persona (*)
Colaborador
A língua
portuguesa tem dado o que falar. E muita gente quer culpar a globalização
pelo funk dançado por morenas oxigenadas. Pode ser. O primeiro tigrão
foi trazido ao país por uma multinacional do petróleo. Outro
veio na caixa de sucrilhos. Mas a questão é saber se a língua
é um meio ou um fim. Acho que o fim da língua é ser
um meio. Que dá sabor à cultura de um país. Mas quando
a cultura é permeável, que culpa tem a língua por
denunciar isto?
A preocupação é
que a indiferença à invasão estrangeira na cultura
possa nos fazer indiferentes à invasão do território.
E à destruição de nossas castanheiras, tucanos e onças.
Acho que é um exagero. Ainda que alguns possam querer a extinção
dos tucanos, conheço muitos que são amigos da onça.
Não é de hoje que somos
alimentados com estrangeirismos. Alguns de nossos nativos costumavam comer
seus inimigos para assimilar sua coragem. Nelson Pereira dos Santos imortalizou
isto em seu filme "Como era gostoso o meu francês". Mas cometeu um
erro histórico. Acredito que os índios gostassem mais de
português. Por isso o tupi não sobreviveu nem como canal de
TV. Que nunca transmitiu nada naquele idioma.
Mas globalização não
é um fenômeno local. Em San Diego fui atendido por uma garçonete
latina que não entendia inglês. Enquanto eu falava, ela olhava
para o chão. Talvez por inibição, ou procurando uma
legenda em meus pés. Isto aconteceu num país que até
hoje não possui uma língua oficial. E onde pelo menos trinta
idiomas são falados por mais de mil pessoas.
Tranmissor - Não é
às custas de conversa fiada que a língua se impõe.
O comércio é seu principal transmissor, já que é
uma atividade comum a todos os povos. E temos sorte se as rotas comerciais
de hoje têm o inglês como língua predominante. Se vivêssemos
nas globalizações passadas, iríamos a falar business-to-business
na língua dos babilônicos, medo-persas, gregos ou romanos.
Porque foram impérios igualmente globalizantes.
A fórmula daqueles impérios
era possuir um trono revestido de autoridade divina dominando sobre reis
nativos. Estes podiam manter com seus idiomas, desde que assimilassem a
língua do invasor para negócios e documentos oficiais. Conquistavam
no papo o que não conquistavam no sopapo. Neste sentido, o império
romano merece um Oscar, só pelos efeitos especiais que conseguiu
imprimir na civilização ocidental.
A influência globalizante romana
continuou muito depois da queda do império original. Quem tem a
minha idade já viu muita missa em latim. Quando criança,
eu via o padre pelas costas e não entendia nada do que falava. Para
quem pegou só o resto do ensino regulamentar do francês no
ginásio, aquilo era grego. O latim sumiu das missas mas continuou
nos fóruns, talvez pela lentidão dos processos. Ainda tentamos
manter o status quo, enviando nosso curriculum vitae para
ganhar o pro labore. E se tiver problemas, posso continuar escrevendo
graças a um habeas corpus.
Assim, reinos vão, e reinos
vêm. Portanto, seja paciente com o inglês, cuja influência
não tem um século. Mais uns duzentos anos e outra língua
predominará. E não será o esperanto, ao qual falta
o poder. Enquanto isso, vá usando o inglês quando for este
o caminho mais curto para fazer negócios. Sem fazer desta ou de
qualquer língua um fim em si mesmo. A língua é um
meio a serviço do homem. Não o contrário. Línguas
passam, culturas desaparecem e fronteiras são redesenhadas. Mas
as pessoas permanecem e continuarão arrastando a língua na
poeira de seus negócios.
Nem pense que eu esteja insinuando
que o meio não seja importante. É, e muito. Quando o meio
perde o seu valor, pode perder também o seu lugar na boca do povo.
Aconteceu comigo em uma lanchonete em Santos. O bolinho de camarão
chamava a atenção por ter um palmo de comprimento. A cabeça
saía de um lado e o rabo do outro. Atraente e apetitoso. Até
eu descobrir que o meio não passava de uma massa sem identidade
própria. Tinham comido o que fazia a ligação entre
o princípio e o fim.
(*)
Mário
Persona é diretor de comunicação da Widesoft,
que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos
via Internet, editor da Widebiz
Week e moderador da lista de debates
Widebiz.
Globaliza-Cão
Carlos Pimentel Mendes
diretor - MNDLP
Tinha
eu uns poucos anos de idade, e meus pais me levavam à missa, dentro
da tradicional formação católica apostólica
romana. Dominus vobiscum, dizia o padre, e um monte de gente respondia
algo que soava como um palavrão, embora completamente sem sentido
para alguém que ainda mal estava aprendendo as primeiras palavras
do idioma português. Porém, duvidava que alguém além
do padre, naquela igreja, tivesse a mínima idéia do que estava
recitando em coro, naquela hora. Quanto ao padre, talvez também
tivesse esquecido o significado, repetia a ladainha como um papagaio, sem
a menor entonação, dava um sono...
Hoje sei que aquilo era latim, a
língua que todos consideravam universal para assuntos religiosos.
Mas, a própria Igreja de Roma percebeu que os fiéis estavam
deixando de ser fiéis, procurando outras comunidades religiosas
em que Deus falasse a mesma língua que o cidadão comum. Antes
mesmo de reconhecer que a Terra se move ao redor do Sol, como dizia o chamuscado
Galileu, a Igreja aboliu o latim nas missas, em favor do idioma local.
Era preferível ser menos rei, aproximando-se do súdito, do
que ser rei de um reino sem súditos.
Anos depois, os sacerdotes do "In
God We Trust" cometem o mesmo pecado mortal que a milenar Igreja cometeu.
Consideram mais importante usar a linguagem como um código acessível
apenas aos iniciados, do que se comunicar com o mercado, na mesma língua
que as pessoas comuns. Os sacerdotes da globalização falam
aos fiéis numa língua que os fiéis não entendem,
e o efeito é o mesmo: os fiéis deixam de ser fiéis,
vão procurar um Deus que entendam.
Não é figura de linguagem,
não. Faça o teste: entre num mercado (que a plebe chama de
shopping
esquecendo o center, e a elite chama de mall enrolando a
língua para não ficar mal) e pergunte o que significa "shopping"
e "mall". Ante a óbvia resposta denotativa da ignorância
desse significado, tente mais uma vez: aponte para qualquer direção
(sempre haverá uma placa dessas!) e pergunte o que é "sale"
ou "off". Se tiver a sorte de topar com um espanhol, pelo menos
o significado de "sale" será revelado: "Saia! Fora!" - é
o que tal palavra significa para a comunidade hispânica. Um francês
também terá compreensão bem peculiar do que significa
"sale": simplesmente, lixo! É o que tais lojas vendem? Aproveite
e confira nos dicionários de tradução o que significa
"off". Fiz isso: vai de produto estragado a dono maluco/ausente,
não aparece nessas obras o significado de "desconto"...
Oscilando entre a repetição
do papagaio e a imitação do macaco, a elite brasileira vai
virando motivo de piada mundo afora, ao mesmo tempo em que dá tiros
nos próprios pés: como 99% dos brasileiros não entendem
inglês, e boa parte dos estrangeiros visitantes é de origem
hispânica, a placa "sale" da loja mostra em letras garrafais a estultície
do dono, que mais venderia se não expulsasse os hispânicos
e tentasse atrair os compradores brasileiros com um bom aviso de desconto
nos preços. Ou será que um estadunidense - único destinatário
de toda a comunicação visual da loja - vai se abalar de Nova
York para comprar roupa comum numa lojinha de subúrbio no interior
brasileiro? Globalização, sei.
Enquanto certo país sem idioma
oficial cria leis em pelo menos metade de seus estados para defender o
idioma inglês, os novos sacerdotes rasgam todos os livros sagrados
de Administração e Comércio, onde o primeiro mandamento
era a empresa se adaptar às necessidades do cliente, deixando-o
satisfeito e fiel à marca. Para os adeptos da globalização,
os clientes é que precisam se adaptar às empresas, usando
a linguagem das galinhas para chamar seus diretores (COO, CEO, talvez cocoricó).
Enquanto devoram seus X-queijo sem
queijo (é, isso existe!), os novos generais (general managers)
dessa cruzada contra as culturas locais deveriam refletir: será
que não estão atirando contra suas próprias tropas?
Destruindo seus próprios depósitos? Na próxima batalha
econômica, a ser travada neste novo século, as armas serão
justamente as culturas locais que ora eles destróem, a golpes de
country fest, halloween e insidiosos gerundismos. Fecham o mercado mundial
ao nosso desprezado Saci Pererê e ajudam nossos concorrentes a vender
suas abóboras recortadas com iluminação bruxuleante...
Ora, o problema é que não
dá para ignorar um idioma sem ignorar toda uma riqueza cultural,
todo um conjunto de tradições que forma a identidade de um
povo. A França é o exemplo mais conhecido de um povo que
exige o respeito ao seu idioma. Bem perto, registramos que o mesmo Banco
Itaú que nas páginas "em
português" usa termos estrangeiros, não ousou fazer o
mesmo em suas páginas em castelhano
destinadas ao público argentino (Uai! E a globalização,
sô?).
A Espanha exigiu que os teclados
de computador mantivessem o símbolo [Ñ], por não aceitar
que em nome da globalização seu país virasse Espana.
Nos teclados brasileiros, a tecla corresponde ao nosso [Ç]. Vamos
aceitar que nos imponham essa globalizaCão? Como o dono de
uma casa em Santos/SP, que avisa aos ladrões - somente no idioma
de Shakespeare - para tomarem cuidado com o cão? Warning!...
|