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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/19/01 02:20:14
Globalinguação 
Veja também o comentário: Globaliza-Cão


Mário Persona (*)
Colaborador

A língua portuguesa tem dado o que falar. E muita gente quer culpar a globalização pelo funk dançado por morenas oxigenadas. Pode ser. O primeiro tigrão foi trazido ao país por uma multinacional do petróleo. Outro veio na caixa de sucrilhos. Mas a questão é saber se a língua é um meio ou um fim. Acho que o fim da língua é ser um meio. Que dá sabor à cultura de um país. Mas quando a cultura é permeável, que culpa tem a língua por denunciar isto?
A preocupação é que a indiferença à invasão estrangeira na cultura possa nos fazer indiferentes à invasão do território. E à destruição de nossas castanheiras, tucanos e onças. Acho que é um exagero. Ainda que alguns possam querer a extinção dos tucanos, conheço muitos que são amigos da onça. 

Não é de hoje que somos alimentados com estrangeirismos. Alguns de nossos nativos costumavam comer seus inimigos para assimilar sua coragem. Nelson Pereira dos Santos imortalizou isto em seu filme "Como era gostoso o meu francês". Mas cometeu um erro histórico. Acredito que os índios gostassem mais de português. Por isso o tupi não sobreviveu nem como canal de TV. Que nunca transmitiu nada naquele idioma. 

Mas globalização não é um fenômeno local. Em San Diego fui atendido por uma garçonete latina que não entendia inglês. Enquanto eu falava, ela olhava para o chão. Talvez por inibição, ou procurando uma legenda em meus pés. Isto aconteceu num país que até hoje não possui uma língua oficial. E onde pelo menos trinta idiomas são falados por mais de mil pessoas. 

Tranmissor - Não é às custas de conversa fiada que a língua se impõe. O comércio é seu principal transmissor, já que é uma atividade comum a todos os povos. E temos sorte se as rotas comerciais de hoje têm o inglês como língua predominante. Se vivêssemos nas globalizações passadas, iríamos a falar business-to-business na língua dos babilônicos, medo-persas, gregos ou romanos. Porque foram impérios igualmente globalizantes.

A fórmula daqueles impérios era possuir um trono revestido de autoridade divina dominando sobre reis nativos. Estes podiam manter com seus idiomas, desde que assimilassem a língua do invasor para negócios e documentos oficiais. Conquistavam no papo o que não conquistavam no sopapo. Neste sentido, o império romano merece um Oscar, só pelos efeitos especiais que conseguiu imprimir na civilização ocidental.

A influência globalizante romana continuou muito depois da queda do império original. Quem tem a minha idade já viu muita missa em latim. Quando criança, eu via o padre pelas costas e não entendia nada do que falava. Para quem pegou só o resto do ensino regulamentar do francês no ginásio, aquilo era grego. O latim sumiu das missas mas continuou nos fóruns, talvez pela lentidão dos processos. Ainda tentamos manter o status quo, enviando nosso curriculum vitae para ganhar o pro labore. E se tiver problemas, posso continuar escrevendo graças a um habeas corpus.

Assim, reinos vão, e reinos vêm. Portanto, seja paciente com o inglês, cuja influência não tem um século. Mais uns duzentos anos e outra língua predominará. E não será o esperanto, ao qual falta o poder. Enquanto isso, vá usando o inglês quando for este o caminho mais curto para fazer negócios. Sem fazer desta ou de qualquer língua um fim em si mesmo. A língua é um meio a serviço do homem. Não o contrário. Línguas passam, culturas desaparecem e fronteiras são redesenhadas. Mas as pessoas permanecem e continuarão arrastando a língua na poeira de seus negócios.

Nem pense que eu esteja insinuando que o meio não seja importante. É, e muito. Quando o meio perde o seu valor, pode perder também o seu lugar na boca do povo. Aconteceu comigo em uma lanchonete em Santos. O bolinho de camarão chamava a atenção por ter um palmo de comprimento. A cabeça saía de um lado e o rabo do outro. Atraente e apetitoso. Até eu descobrir que o meio não passava de uma massa sem identidade própria. Tinham comido o que fazia a ligação entre o princípio e o fim.

(*) Mário Persona é diretor de comunicação da Widesoft, que desenvolve sistemas para facilitar a gestão da cadeia de suprimentos via Internet, editor da Widebiz Week e moderador da lista de debates Widebiz.

Globaliza-Cão 

Carlos Pimentel Mendes
diretor - MNDLP

Tinha eu uns poucos anos de idade, e meus pais me levavam à missa, dentro da tradicional formação católica apostólica romana. Dominus vobiscum, dizia o padre, e um monte de gente respondia algo que soava como um palavrão, embora completamente sem sentido para alguém que ainda mal estava aprendendo as primeiras palavras do idioma português. Porém, duvidava que alguém além do padre, naquela igreja, tivesse a mínima idéia do que estava recitando em coro, naquela hora. Quanto ao padre, talvez também tivesse esquecido o significado, repetia a ladainha como um papagaio, sem a menor entonação, dava um sono...

Hoje sei que aquilo era latim, a língua que todos consideravam universal para assuntos religiosos. Mas, a própria Igreja de Roma percebeu que os fiéis estavam deixando de ser fiéis, procurando outras comunidades religiosas em que Deus falasse a mesma língua que o cidadão comum. Antes mesmo de reconhecer que a Terra se move ao redor do Sol, como dizia o chamuscado Galileu, a Igreja aboliu o latim nas missas, em favor do idioma local. Era preferível ser menos rei, aproximando-se do súdito, do que ser rei de um reino sem súditos.

Anos depois, os sacerdotes do "In God We Trust" cometem o mesmo pecado mortal que a milenar Igreja cometeu. Consideram mais importante usar a linguagem como um código acessível apenas aos iniciados, do que se comunicar com o mercado, na mesma língua que as pessoas comuns. Os sacerdotes da globalização falam aos fiéis numa língua que os fiéis não entendem, e o efeito é o mesmo: os fiéis deixam de ser fiéis, vão procurar um Deus que entendam. 

Não é figura de linguagem, não. Faça o teste: entre num mercado (que a plebe chama de shopping esquecendo o center, e a elite chama de mall enrolando a língua para não ficar mal) e pergunte o que significa "shopping" e "mall". Ante a óbvia resposta denotativa da ignorância desse significado, tente mais uma vez: aponte para qualquer direção (sempre haverá uma placa dessas!) e pergunte o que é "sale" ou "off". Se tiver a sorte de topar com um espanhol, pelo menos o significado de "sale" será revelado: "Saia! Fora!" - é o que tal palavra significa para a comunidade hispânica. Um francês também terá compreensão bem peculiar do que significa "sale": simplesmente, lixo! É o que tais lojas vendem? Aproveite e confira nos dicionários de tradução o que significa "off". Fiz isso: vai de produto estragado a dono maluco/ausente, não aparece nessas obras o significado de "desconto"...

Oscilando entre a repetição do papagaio e a imitação do macaco, a elite brasileira vai virando motivo de piada mundo afora, ao mesmo tempo em que dá tiros nos próprios pés: como 99% dos brasileiros não entendem inglês, e boa parte dos estrangeiros visitantes é de origem hispânica, a placa "sale" da loja mostra em letras garrafais a estultície do dono, que mais venderia se não expulsasse os hispânicos e tentasse atrair os compradores brasileiros com um bom aviso de desconto nos preços. Ou será que um estadunidense - único destinatário de toda a comunicação visual da loja - vai se abalar de Nova York para comprar roupa comum numa lojinha de subúrbio no interior brasileiro? Globalização, sei.

Enquanto certo país sem idioma oficial cria leis em pelo menos metade de seus estados para defender o idioma inglês, os novos sacerdotes rasgam todos os livros sagrados de Administração e Comércio, onde o primeiro mandamento era a empresa se adaptar às necessidades do cliente, deixando-o satisfeito e fiel à marca. Para os adeptos da globalização, os clientes é que precisam se adaptar às empresas, usando a linguagem das galinhas para chamar seus diretores (COO, CEO, talvez cocoricó).

Enquanto devoram seus X-queijo sem queijo (é, isso existe!), os novos generais (general managers) dessa cruzada contra as culturas locais deveriam refletir: será que não estão atirando contra suas próprias tropas? Destruindo seus próprios depósitos? Na próxima batalha econômica, a ser travada neste novo século, as armas serão justamente as culturas locais que ora eles destróem, a golpes de country fest, halloween e insidiosos gerundismos. Fecham o mercado mundial ao nosso desprezado Saci Pererê e ajudam nossos concorrentes a vender suas abóboras recortadas com iluminação bruxuleante...

Ora, o problema é que não dá para ignorar um idioma sem ignorar toda uma riqueza cultural, todo um conjunto de tradições que forma a identidade de um povo. A França é o exemplo mais conhecido de um povo que exige o respeito ao seu idioma. Bem perto, registramos que o mesmo Banco Itaú que nas páginas "em português" usa termos estrangeiros, não ousou fazer o mesmo em suas páginas em castelhano destinadas ao público argentino (Uai! E a globalização, sô?). 

A Espanha exigiu que os teclados de computador mantivessem o símbolo [Ñ], por não aceitar que em nome da globalização seu país virasse Espana. Nos teclados brasileiros, a tecla corresponde ao nosso [Ç]. Vamos aceitar que nos imponham essa globalizaCão? Como o dono de uma casa em Santos/SP, que avisa aos ladrões - somente no idioma de Shakespeare - para tomarem cuidado com o cão? Warning!...

Veja mais exemplos em: Ria... para não chorar!