Memórias e
curiosidades da Santos do início do século XX são o tema do articulista Francisco De Marchi, que publicou esta matéria no jornal A Tribuna em
26 de agosto de 1985:
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Mapa das linhas de bondes de Santos e S. Vicente, em
inglês, de meados do século XX
O progresso também viajou de bonde
Francisco De Marchi
No fim do século pregresso
(N.E.: século XIX), tílburis de duas rodas, ou carruagens de tipos diversos, de
quatro rodas e tiradas por fogosos cavalos, equivaliam-se aos táxis de hoje na realização de corridas. Mas eram os bondes de burros, de
módica tarifa, os prediletos dos populares.
Como história independente, no coração da cidade, em meio a trotes e cavalgadas, estalejar de
chicotes e o musical toque-toque dos cascos das alimárias sobre o pavimento das ruas, ganhava evidência o resfolegar da "Maria Fumaça", locomotiva
que fazia a ligação Santos-São Vicente, saindo da estação localizada na esquina da Rua das Flores (Amador Bueno) e Itororó. E a gostosura das cenas
de despedidas na referida estação, partidas daqueles que iam assistir ao "bota-fora" dos familiares, que viajavam para... São Vicente!
O transporte sempre foi elemento de relevo na projeção de ciclos econômicos brilhantes. Na
história do café e na da civilização paulista encontramos a prova: onde chegava a ferrovia, instalava-se o progresso, nasciam cidades da noite para
o dia. Acacianamente, também podemos repetir que onde chegavam os trilhos do bonde (mesmo os de burros) explodiam como cogumelos hortas e chalés!
Até os estertores do século passado (N.E.: século XIX),
a área construída na cidade comprimia-se ao longo do porto, até as bandas do Paquetá, na direção Centro-Praia, esgotava-se no Bairro de Vila Matias.
Os bairros do Macuco, Vila Belmiro, Marapé, e outros sequer estavam em gestação. Na barra - orla da praia - nada fazia presumir longínquos
estouros no valor dos terrenos fronteiros ao mar.
Tangary, um velho e lúcido topógrafo, que certa vez entrevistamos neste mesmo jornal,
afirmou-nos que no início deste século (N.E.: século XX) o metro quadrado de terreno, não
longe das praias, podia ser oferecido à venda por $200 (duzentos réis), mas ninguém aparecia para topar o negócio.
Matias Costa, porém, que em 1888 adquirira terras no Pasto das Vigárias, teve um estalo,
acreditou no futuro e assentou os trilhos de bondes tocados a muares, na hoje Avenida Ana Costa; a linha terminava junto a botequim instalado por
Antônio Luiz Gonzaga (no local correspondente à atual Rua Marcílio Dias e próximo do setor em que funcionou a anterior sede do
Clube XV); do nome do proprietário do botequim se originaria depois a denominação do bairro (Gonzaga).
Logo no início do presente século teríamos os primeiros bondes elétricos (1909). Com eles, o
progresso viajaria para todos os pontos da Ilha de São Vicente. Entretanto, como "tudo na vida é passageiro" ("menos o condutor e o
motorneiro" - acrescentavam os trocadilhistas), seria o bonde, um dia, considerado transporte obsoleto e retirado da circulação.
Muito barulhentos - afirmavam. Tanto assim? Nossos atuais ônibus, de vida curta, precocemente
cansados, não são mais rumorosos quando forçam a partida e multiplicam as acelerações?
Os bondes - duravam eternamente! - eram morosos, apregoavam os amantes de figurinos estrangeiros,
esquecidos que vivíamos época em que os passageiros de automóveis sentiam calafrios, quando o motorista corria a 50 quilômetros horários!
Faltava-lhes maneabilidade, congestionavam o tráfego?
Então, por que não partirmos, na ocasião e decididamente, para a adoção do ônibus elétrico,
econômico - sem dúvida um bonde disfarçado, calçando rodas de borracha - capaz, pelo uso de acumuladores próprios, de maior independência nas
evoluções? Não chegamos a importar um monte deles, da Itália? Excelentes, silenciosos, não poluentes; entretanto, nossos administradores,
comprando-os esqueceram-se de que não haviam instalado rede elétrica própria e os veículos, por anos, ficaram encostados, apodrecendo no
Jabaquara...
Bonde da linha 19 em 1950, na região
santista do Mercado, entre caminhões de frutas e verduras
Foto do Museu Itinerante do Bonde de Santos
Retornemos aos bondes elétricos, referindo duas estirpes distintas: a
vinculada às linhas "X" e "Y" (veículos chamados de expressos) e a que abarcava os carros das linhas 6 e 18, estes servindo, respectivamente,
Vila Matias e Mercado, cantados como campeões da lerdeza!
Os expressos detinham-se em pouquíssimos pontos; ótima opção para aqueles que,
residindo em lugares distantes, dispunham de reduzido tempo para o almoço. Não dispondo de sirenas nem de buzinas para se anunciarem no tráfego,
faziam-se percebíveis pelo estardalhaço provocado pelo motorneiro, ao pisar vigorosamente o pedal que acionava um estridente jogo de campainhas.
Já os bondes 6 e 18, verdadeiros cágados elétricos, arrastavam-se sonolentos sobre os
trilhos. Ocorria, com freqüência, que à hora da partida o motorneiro lobrigasse, a 100 metros ou mais, um cavalheiro correndo para embarcar, ou uma
lavadeira sepulta sobre trouxas de roupa, alimentando o mesmo propósito; não hesitava, descansava o braço sobre a manivela do motor e aguardava, com
fleuma, a chegada do passageiro, apeando-se até para ajudar a aliviar-lhe a carga transportada...
Condutores - esclarecemos - não dirigiam os bondes, tarefa exclusivamente do
motorneiro. O condutor apenas soava um apito ou premia o botão de uma campainha, duas ou três vezes, para assegurar ao motorneiro que tudo estava em
ordem e que o bonde podia movimentar-se. Cabia-lhe efetuar a cobrança das passagens, e, eventualmente, advertir os pingentes (passageiros que
viajavam de pé, na parte externa e nos estribos), da perigosa proximidade de autos estacionados junto à linha, com o clássico berro:
- Olhe à direita!
Dizem que alguns palermas não entendiam o aviso, ruminando tratar-se de uma ordem
para que pusessem a cabeça mais para fora, e protestavam:
- Não olhem não! - É xaveco (patifaria) do condutor!
E quanto à tranqüilidade na viagem? Nas horas críticas - de almoço ou de entrada em
serviço - os bondes ficavam lotados e viajávamos, uma vez ou outra, de pé, entalados entre os bancos da frente e os passageiros sentados. Mas as
freadas do veículo, que corria docemente sobre os trilhos, não nos molestavam tanto como ocorre nos atuais ônibus, não raro dirigidos por motoristas
barbeiros, que fazem as mudanças de marcha bruscamente, com mau uso da embreagem, nós, que de pé nos acotovelamos nos corredores, somos
arremessados uns contra outros, centrifugados, ficando a pique de perder os botões da roupa nos embates contra essas bolsas descomunais,
atulhadas de objetos indefiníveis e portadas por algumas senhoras...
Saudades dos bancos de madeira, de encosto, confortáveis, que nas viagens longas -
sem trancos nem solavancos - convidavam-nos à leitura de livros e revistas; doces recordações dos vendedores de jornais, acrobáticos dançarinos dos
estribos, que nos ofereciam entre brados os periódicos do dia e a "última edição!" Ternas lembranças daquele bravo - o condutor - deslizando pelos
estribos coalhados de pingentes, mal conseguindo agarrar-se aos balaústres do bonde em movimento, prendendo entre os dedos da mão livre
espalmada, uma porção de cédulas. E sem resmungos, trocava, na cobrança de míseras passagens de $200, notas, graúdas, que o obrigavam, dependurado,
sempre perigosamente equilibrado, a catar moedinhas nos bolsos do colete!
Fiscais controlavam a féria dos elétricos, em dados pontos, carimbando a lista
deixada pelo condutor em lugar visível. Todavia, acontecia que enquanto o condutor fazia a penosa cobrança no estribo do lado direito, espertalhões
que se encontravam nos estribos, de outro lado, punham-se ao fresco sem pagar a passagem. E o cobrador somente deixou de assumir o prejuízo quando
apareceram os primeiros bondes fechados, cognominados de camarões...
Praticamente duas classes de passageiros! Os que viajavam no carro motor e pagavam
$200 e os que se aboletavam nos reboques, em que a tarifa era apenas de $100 (um tostão). O reboque, em teoria, destinava-se aos operários, mas nós,
de colarinho e gravata, apanhávamo-lo de assalto. Os reboques maiores procediam da antiga frota da "Maria Fumaça", os de menor porte eram, sem mais
nem menos, as velhas gôndolas, outrora puxadas por burros.
Assistimos, quando garotos, ao assentamento dos trilhos dos bondes elétricos, na
Avenida Bernardino de Campos, ponteada de chalés e hortas. Dois trajetos: Curto e Longo Percurso. O primeiro findava-se à altura da
Rua Carvalho de Mendonça, onde havia um abrigo, com bancos. O movimento de veículos já era apreciável, e mais nos dias de jogo de futebol. Nos anos
de 1927 e seguintes, íamos de bonde ao campo do Santos Futebol Clube (Santos Foot-Ball Club), dotado de arquibancadas de madeira e cercado de folhas
de zinco. Paralelamente aos trilhos do bonde corriam automóveis, vindos do Planalto, trazendo aficionados do futebol para incentivar seus clubes do
coração. Xingamentos estouravam entre os torcedores do Santos - que entupiam o elétrico e se amontoavam também sobre o teto deste - e os que
procediam da Capital, principalmente do Palestra (hoje Palmeiras):
- Peixeiros! Peixeiros!
- Macarrone! Carcamanos!
Deliciosa troca de gentilezas! Até que, passados muitos anos, Modesto Roma, o
político Roma, resolveu inteligentemente absorver o insulto, aureolando-o! O Santos passou, de maneira oficial, a adotar o símbolo do peixe e mesmo
o da baleia (baleia não é peixe e sim cetáceo). O insulto se transformaria em consagração, tornou-se universal difusão do valor do clube de Vila
Belmiro. O peixe!... Tinha sido o símbolo identificador dos cristãos, dos mártires sacrificados na arena do Coliseu romano! E pescadores humildes -
peixeiros também - foram apóstolos de Jesus, Rei dos Reis!
Ao findar esta história de burros e cavalos, de bondes e ônibus que transfiguravam a
vida desta cidade e serviram ao progresso, a nossa homenagem aos motorneiros e condutores dos bondes dos velhos tempos - em boa parte lusitanos,
corteses, serviçais, orgulhosos portadores de distintivos com números estampados - 5, 10, 15, 20 e mais - afetivas condecorações da empresa,
designativos de seus bons e leais serviços prestados à gloriosa Cia. City! Impecavelmente fardados, com os botões de metal das túnicas, reluzentes,
graças a esfregaços com Kaol; alguns de longos bigodes, luzidios, engomados, com as pontas atrevidamente reviradas, "à-la-Kaiser", fizeram o coração
de muita donzela, que a hora certa aguardava a passagem de determinado elétrico, bater descompassadamente, maravilhada com a postura marcial
dessas criaturas, sempre de mãos dadas com elementos do povo e conscientes de seus deveres profissionais!
Bondes com reboque, na Praça Mauá
Foto da coleção do pesquisador norte-americano Allen Morrison
Na próxima parada,
um apito vai soar... |