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TRILHOS (72)
Uma campanha contra os bondes
Dois jornalistas de Santos, na década de 1980, promoveram o retorno do bonde, que se efetivaria com uma linha turística mantida na Praia do Embaré em 1984 e 1985. Eles assinaram uma série de matérias de página inteira sobre os bondes santistas. Como esta, publicada no jornal A Tribuna em 26 de março de 1984:

 

Os bondes duplos, fabricados pela Cia. City em 1936, eram pintados de branco e marrom e levavam 90 pessoas
Foto publicada com a matéria

Uma campanha dirigida. Contra os bondes

Texto de Áureo de Carvalho e Antônio Alberto de Aguiar

A City of Santos Improvements, que detinha a exploração do sistema de transportes na Cidade - feito pelos bondes -, além do fornecimento de luz, água e gás, vinha, desde o século passado (N.E.: século XIX), servindo com eficiência os moradores e participando ativamente do desenvolvimento da região.

A empresa inglesa, que se tornara muito útil na época da Segunda Grande Guerra, quando houve, por cerca de seis anos, falta de combustíveis para ônibus e automóveis, chegou a congelar, em 200 réis - que passaram a valer 20 centavos em 1942, com a mudança de réis para o cruzeiro - o preço da passagem nos bondes pelo espaço de 12 anos, de 1940 a 1951. Porém, com a pressão da chegada dos ônibus, por volta de 1946 - os GM-Coachs, fabricados pela General Motors, dos Estados Unidos -, a City começou a se desinteressar pelos elétricos. Naquela época, já se iniciava a campanha contra os bondes, fiéis servidores das horas difíceis.

Com o movimento para colocação de mais ônibus nas ruas, acobertado por outros interesses, a empresa começou a encurtar diversas linhas ou a simplesmente exterminá-las. Esse motivo - aliás o mesmo processo de pressão contra os elétricos, deu-se também na Capital -, aliado ao fato do término da concessão para explorar os transportes coletivos, fez com que a City decidisse ficar somente com a distribuição da água, luz e gás, passando os bondes para o Serviço Municipal de Transportes Coletivos (SMTC) em 1951.

A Cia. City usava o lava-trilhos para assentar a poeira
Foto publicada com a matéria

A mudança - "O prefeito municipal de Santos, Sócrates Aranha de Menezes, promulgou, a 22 de dezembro de 1950, a Lei nº 1.167, que autoriza o chefe do Executivo a entrar em entendimentos com a City of Santos Improvements Company Limited, com o propósito de estudar a possibilidade de aquisição do acervo daquela empresa. Estabelece ainda a Lei nº 1.167, como é do conhecimento geral, outras providências complementares, todas visando solucionar o problema dos transportes coletivos em Santos, pois, mais cedo ou mais tarde, a City deixará o serviço, de acordo, aliás, com o propósito que tem reiterado seguidamente".

Desse modo, como diz A Tribuna em 3 de janeiro de 1951, começavam os estudos para a passagem do acervo da City para o SMTC. Na ocasião, foi nomeada uma comissão para levantar os bens que passariam para o Município. Mesmo havendo seu contrato de exploração do transporte coletivo terminado em 14 de janeiro (a assinatura inicial deu-se em 14 de janeiro de 1911), a Cia. City manteve os bondes operários, nos quais a passagem custava 20 centavos a menos que nas linhas comuns. Além disso, continuou com as senhas (as pessoas, por esse sistema, pagavam uma taxa pelo ano inteiro e podiam viajar quantas vezes desejassem) e aceitando também os passes escolares, que tinham 50% de abatimento.

A decadência da Cia. City - empresa que chegou a ter 144 quilômetros de linhas espalhadas pelos diversos bairros e alcançando São Vicente pela praia e Avenida Nossa Senhora de Fátima (Linha 1) -, segundo alguns estudiosos do transporte coletivo na Cidade, começou praticamente em fins de 1939, quando, devido à deflagração da Segunda Guerra Mundial, ficou praticamente impossível a importação de peças vitais para os bondes.

A Light, que explorava os elétricos na Capital, teve problema idêntico, quando precisou desmontar diversos carros para poder usar suas peças. O mesmo ocorreu aqui e, com a desativação de diversas unidades, as linhas foram encurtadas e havia falta de bondes nos horários de rush, desencadeando assim uma série de protestos da população. A City, que chegou a manter cerca de 220 carros em circulação, devido às dificuldades impostas pela guerra, em maio de 1947 contava só com 100 unidades rodando nas ruas, e, assim mesmo, algumas em precário estado de conservação.

A empresa ficou reduzida a apenas 150 carros, sendo que, destes, 50 ou 60 estavam constantemente nas oficinas e alguns não tinham nem condições de retornar às linhas, pela falta de peças. Os jornais da época diziam que, como o contrato com a Prefeitura estava para terminar em 1951, a Cia. City não estava mais se interessando em servir bem à Cidade. Mas, não se atentava para o fato - talvez pela campanha difamatória que se ia arraigando contra os elétricos, com a vinda dos ônibus para cá -, de que nas melhores linhas dos bondes foi permitida a circulação dos ônibus.

Desse modo, o desestímulo pela manutenção do serviço de bondes foi aumentando entre os dirigentes da Cia. City. Conta um político que, por volta de 1948, o Partido Comunista chegou a fazer passeata no centro da Cidade pela manutenção dos bondes, porque a pressão da empresa que explorava os ônibus era grande, tendo ainda a seu favor as deficiências da City oriundas do período de guerra. Os manifestantes queriam também que a empresa inglesa passasse para o Município os demais serviços que explorava, ou seja, água, luz e gás.

Os bondes-socorro tinham preferência sobre os demais
Foto publicada com a matéria

Da City para o SMTC - Os entendimentos para a transferência dos bondes começaram na época em que Sócrates Aranha de Menezes, em janeiro de 1951, era prefeito, mas só foram concluídos na gestão do novo chefe do Executivo, Joaquim Alcaide Valls, que assumiu a direção do Município em 27 de março do mesmo ano. Porém, o fato só se concretizou em 19 de dezembro, ainda de 1951, com a criação do Serviço Municipal de Transportes Coletivos (SMTC).

O novo prefeito declarou que a empresa recebeu 130 elétricos da Cia. City, mas que somente 90 deles funcionavam. O serviço seguiu sendo feito precariamente, pela falta de materiais de reposição e também pela pressão da empresa de ônibus pertencente a Manuel Diegues, que havia trazido muitas unidades para Santos.

Certa ocasião, em 1954, Diegues entupiu o centro da Cidade com 22 coletivos, sob a alegação de que podia oferecer o meio de transporte que a população exigia. O prefeito da época, Antônio Feliciano, diante da pressão do empresário, que teimava em não retirar seus carros da rua enquanto não lhe fosse concedido novo contrato de exploração de novas linhas - em cima do traçado dos bondes - acabou cedendo e assinando o documento.

Daí por diante, as forças ocultas foram pressionando, e os ônibus começaram a absorver os passageiros das linhas dos bondes. De ano a ano, o SMTC ficava com menos elétricos e crescia a campanha derrotista. Os anos passaram e, na gestão do então prefeito Sílvio Fernandes Lopes - que governou a cidade de abril de 1964 a abril de 1969 -, foi decretada praticamente a extinção dos bondes.

Não se sabe por que motivo, algumas linhas foram extintas e maior número de coletivos passava a rodar pelas ruas. Na época, as reuniões de bastidores na Prefeitura e no SMTC giravam em torno da desativação dos elétricos, talvez porque o combustível fosse muito barato e o dólar quase se equiparasse com a nossa moeda, pois valia Cr$ 1,20 em fins de abril de 1964 e Cr$ 1,85 em fins do mesmo ano.

Nesse ano, o superintendente do SMTC era o general Aldévio Barbosa de Lemos, o qual dirigiu a autarquia até meados de 1974. Na presidência da Mercedes-Benz do Brasil estava o general Macedo Soares. Então, a necessidade da colocação de ônibus nos transportes coletivos das cidades brasileiras agigantou-se. A multinacional financiou suas unidades a perder de vista e, iludidos psicologicamente com a troca dos elétricos pelos veículos a diesel, as cidades cederam aos insistentes pedidos e terminaram com os bondes, inclusive Santos.

Os elétricos abertos para carga serviam a várias empresas
Foto publicada com a matéria

Na região - Em nossa cidade, os dirigentes não tiveram a sutileza de prever os conflitos que se avizinhavam no Oriente Médio, por volta de 1971, e tampouco pensaram no povo, que, com a extinção dos bondes, passou a respirar mais óxido de nitrogênio, originário da combustão do diesel, e dióxido de carbono, expelido pelos veículos a gasolina.

De 1964 a 1971, a única preocupação dos prefeitos - Sílvio Fernandes Lopes e depois, o general Bandeira Brasil - era colocar mais ônibus nas ruas e acabar, de uma vez por todas, com o inútil bonde (para eles, é claro), que só sabia atravancar as ruas e deixava nervosos os burgueses que passavam com seus vistosos veículos pelas vias da Cidade.

Atrás da queda dos bondes, atuavam as multinacionais, que ofereciam banquetes de conscientização da necessidade do uso do ônibus. O planejamento para derrubar os elétricos era total. Até os balancetes do SMTC eram forjados com dados fictícios e distorcidos, os quais davam os bondes como sendo os responsáveis pelos prejuízos da autarquia. O circo estava armado e o palhaço era o povo.

"Pesquisando e meditando sobre o problema do déficit, para o qual contratei um grupo de técnicos, verificou-se que o déficit provinha realmente do sistema de bondes, que absorvia o superávit dos outros sistemas. Cheguei, então, à conclusão de que ou o SMTC acabava com os bondes, ou os bondes acabavam com o SMTC", dizia o general Bandeira Brasil a um repórter de A Tribuna no dia 28 de fevereiro de 1971, quando os elétricos que restavam, o 17 e o 42, circularam pela última vez pelas ruas de Santos.

Agora, 13 anos longe do transporte simples, econômico e não-poluente, a população deve estar sentindo a falta dos bondes, principalmente pelo alto custo da passagem atual e pela atmosfera impregnada de gases venenosos.

A unidade de manutenção da rede aérea circulava sempre
Foto publicada com a matéria

Sucata de alguns bilhões

Com a extinção (ou expulsão) dos bondes em Santos, a frota, estimada em mais de 60 unidades, fora trilhos e peças em estoque, transformou-se, como num passe de mágica, em 46, conforme divulgou o Serviço Municipal de Transportes Coletivos, em junho de 1973. Segundo a autarquia, seriam vendidos 12 elétricos abertos e 34 do tipo camarão. Porém, como os valores oferecidos pelas unidades eram muito baixos, cancelou-se o negócio.

Os 24 bondes que faltavam para perfazer as 60 unidades, até hoje não se sabe o seu destino. Na época, a fúria de destruir os elétricos a machadadas, com o único objetivo de não deixar vestígios, tomou conta dos dirigentes da autarquia e outros. Segundo pessoas que chegaram a presenciar a destruição, todos os dias um elétrico era reduzido a sucata. Os inimigos dos bondes vibravam, esfregavam as mãos, porque estavam conseguindo aniquilar um veículo que os importunava e também às fábricas de ônibus.

Os tapinhas nas costas insinuavam novas negociatas na aquisição de coletivos das multinacionais, e Santos perdia, no ato dos irresponsáveis, o melhor meio de transporte que já teve. Ou seja, pelo valor atual, foram desmontados bilhões em bondes, para render poucos milhões em sucata. Um negócio da China para os donos de ferros-velhos! Somente para se ter uma idéia da barbaridade cometida pelos maus dirigentes, que não se cansaram de visitar as fábricas de ônibus, se realmente houvessem sido destruídos somente 46 carros, a sucata seria assim especificada: 5.500 quilos de alumínio; 8.700 quilos de bronze; 1.100 quilos de latão; 10.800 quilos de cobre misto; 40.000 quilos de sucata de ferro; 35.000 quilos de ferro fundido e 10.000 quilos de sucata de manganês.

Tudo isso, se vendido pelo valor atual, daria Cr$ 35 milhões e cada veículo que foi desmontado custa agora cerca de Cr$ 80 milhões; ou seja, com o dinheiro da sucata não se compra nem um bonde, atualmente. Em tese, para se adquirir 46 elétricos agora é preciso o investimento de Cr$ 3 bilhões 680 milhões. Estimando-se o total de 60 bondes (cálculo falso, porque, segundo estudiosos da época, havia muito mais), a sucata de sua destruição seria esta: 7.200 quilos de alumínio; 12.000 quilos de bronze; 1.440 quilos de latão; 14.100 quilos de cobre misto; 52.200 quilos de sucata de ferro; 45.660 quilos de ferro fundido; e 13.080 quilos de sucata de aço manganês.

O material proveniente dos 60 elétricos valeria, a custo de hoje, Cr$ 46 milhões 128 mil. Partindo-se do cálculo de que os bondes que foram desmontados valem Cr$ 4 bilhões 800 mil, vê-se que os grandes administradores da época trocaram simplesmente Cr$ 4 bilhões 800 mil por Cr$ 46 milhões 1218 mil. Um belo negócio para os aproveitadores e uma rasteira na população.

Os trilhos - Com as linhas por onde transitavam os elétricos foi cometida outra afronta. O SMTC tinha na passagem da Cia. City para seu acervo, 150 quilômetros de linhas, porém no término dos bondes havia cerca de 45 quilômetros. Se fossem reimplantados os 105 quilômetros que faltam para o total de 150, seria preciso o investimento de Cr$ 21 bilhões.

Sabe-se, por exemplo, que, dos 45 quilômetros ainda espalhados pela Cidade, pouco mais de 50% são reaproveitáveis. Se levássemos em conta os outros 50% perdidos arbitrariamente, o Município teve um prejuízo de Cr$ 4 bilhões 800 milhões, ou seja, somados aos Cr$ 21 bilhões que desapareceram, por abandono ou negócios malfeitos, o rombo nos cofres públicos atinge Cr$ 25 bilhões 800 milhões.

O que mais fere os habitantes é que, além disso, se trocou um meio de condução eficiente e sem poluição por um altamente poluído e de pouca duração. A grosso modo, somando-se o valor da destruição de 46 bondes mais o prejuízo dos trilhos, tem-se o total de Cr$ 29 bilhões 480 milhões. No caso dos 60 bondes, o Município perdeu Cr$ 30 bilhões 600 mil. É muito dinheiro para se jogar fora.


N.E.: notada a discrepância 46+24=60!, mas mantido o texto acima na forma original.

Mais um passeio pelos trilhos do passado santista...

Carlos Pimentel Mendes