Veículo que circulava
pelo Brás, no centro, foi levado para Santos onde está sendo restaurado e vai permanecer
São Paulo perde seu último bonde
Na capital, sem ser
cuidado, o bonde 38 virou abrigo de usuários de crack, além de passar por cheias e furtos
Cristina Moreno de Castro
De São Paulo
Bancos
originais de 1917, feitos, como as colunas, do resistente pinho de Riga. Teto e assoalho de rara cabreúva. Detalhes em bronze, cobre e latão e
pintura original de tom verde-musgo.
Eis o bonde prefixo 38, de 94 anos, o último a
circular na cidade de São Paulo.
No final de fevereiro, ele voltou a Santos para
ser restaurado e passar a funcionar em sua cidade natal. Lá, ele circulou entre 1917, vindo da Escócia, e 1971.
Na capital, fazia o pequeno trecho entre o
Memorial do Imigrante, na zona Leste, e a estação de metrô Bresser-Moóca, a 500 metros dali.
Nada a ver com os longos trajetos que os bondes
da cidade faziam entre 1900 e 1968, movidos a eletricidade – o 38 tinha sido transplantado com um motor do carro Tempra na primeira restauração por
que passou.
Nos últimos dois anos, depois que um problema
mecânico o imobilizou e sua proprietária, a Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, não conseguiu verba para a manutenção, o tempo passou
a ser implacável.
Depois de proporcionar passeios entre 1998 e
2008, viu-se como abrigo de usuários de crack, virou vítima de enchentes constantes, teve baterias e outras peças de pouco valor furtadas, viu cerca
de um terço de sua madeira original se depredar.
"Quer preservar um bem histórico? Põe pra
funcionar", justifica o diretor-administrativo da ABPF-SP, Carlos Alberto Rollo.
Em Santos, o bonde ganhou um banho de loja, para
ser oficialmente apresentado ao povo em um desfile no próximo sábado, que vai comemorar um milhão de passageiros desde que a cidade decidiu criar um
museu vivo de bondes, em 2000.
Ele terá de andar rebocado em outro dos cinco
bondes que funcionam na cidade, até receber um motor e voltar a funcionar, com 42 lugares. Está cedido em comodato por dez anos, renováveis.
Em seu lugar, em São Paulo, a Secretaria de
Estado da Cultura cogita colocar um bonde como "elemento cenográfico" quando o Memorial voltar a funcionar.
OPINIÃO
Fomos tolos, eles poderiam
estar por aí rodando, mas só nos resta a saudade
Ralph Giesbrecht
Especial para a Folha
Há cerca de um mês, o bonde que estava encostado
sobre os trilhos da Rua Visconde de Parnaíba, à frente da antiga Hospedaria dos Imigrantes, foi colocado sobre um caminhão e levado dali para
sempre.
Ele havia vindo de Santos, onde teve a mesma
função até 1971, quando foi retirado de circulação.
Porém, ele nada tinha a ver com a cidade de São
Paulo, que teve seus bondes elétricos como transporte urbano por 68 anos, de 1900 a 1968. Estes bondes da Light e depois da CMTC que circularam
aqui, foram quase todos desmontados após seu fim.
Alguns poucos foram doados. Um deles está no
Clube Pinheiros, outro em Bertioga, no SESC, e outro no museu do Transporte Coletivo na Avenida Cruzeiro do Sul, todos parados e maltratados.
Finalmente e felizmente, alguém conseguiu
devolvê-lo a cidade praiana.
Hoje, está sendo restaurado para rodar com
poucos irmãos sobreviventes pelo centro da cidade.
Cidade plana, Santos sempre admirou os bondes,
mais ainda do que São Paulo. Sua retirada em 1971 foi pressionada pelo lobby rodoviário.
Em São Paulo, a última linha, praça João
Mendes-Santo Amaro (zona Sul), havia terminado melancolicamente, no ano de 1968.
Eu, ainda criança e adolescente, andei nos
bondes de São Paulo, que tinha os "camarões" (fechados) e os abertos, onde o cobrador andava pelos trilhos com as notas de cruzeiros dobradas entre
os dedos das mãos.
Os bondes foram uma tradição forçada a acabar
depois de uma campanha de morte, onde se os culpavam por tudo de ruim no trânsito.
Injustiça e morte de algo que, ao contrário do
que se apregoava então, nada tinha de obsoleto. Poderiam estar rodando até hoje, com adaptações e modernizações, como ocorre em inúmeras cidades
européias.
Como fomos tolos. No litoral, a cidade litorânea
de Santos os colocou de volta. Nós nem isso: somente ficamos com a saudade.
Ralph Giesbrecht é pesquisador ferroviário e da
história de São Paulo e edita o site estacoesferroviarias.com.br.
Em Santos,
restauradores trabalham na reforma de bonde que veio de SP
Foto: Moacyr Lopes Nunes/FolhaPress,
publicada com a matéria
SAIBA
MAIS
Frota na cidade chegou a ser
de 472 veículos circulando
De São Paulo
Além do bonde 38, que funcionou no Memorial do
Imigrante, não se sabe de outros bondes mantidos na cidade para fins de turismo.
"Infelizmente não pensaram no potencial
turístico. Essa desativação radical deixou um vazio", lamenta Henrique Di Santoro, 62, administrador do Museu dos Transportes Públicos da Prefeitura
de São Paulo.
Ele defende a criação de um circuito de bondes
nos locais históricos do centro de São Paulo, a exemplo do que ocorre no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro. "Seria uma forma de deixar uma
lembrança inesquecível daqueles tempos".
No museu é possível resgatar um pouco dessas
memórias. Ali há, por exemplo, uma fotografia do primeiro bonde que circulou em São Paulo, em 1872, usando tração animal.
E outra da multidão atraída pelo bonde elétrico
de 1900, apesar do temor geral de que poderia dar choque.
A frota de bondes da capital chegou a ter 472
veículos. Eles cruzavam toda a cidade a 60 km/h.
A viagem final ocorreu em 27 de março de 1968.
(CMC). |