As viagens de bonde não eram monótonas: cada uma era cenário para muitos
acontecimentos
Narciso de Andrade (*)
O bonde 7 e o bonde 12 faziam o mesmo trajeto. Só que em
sentido inverso, enquanto um ia o outro vinha. Percorriam de ponta a ponta as nossas duas maiores avenidas, Ana Costa e Conselheiro Nébias. O bonde
10 também trafegava por elas, mas só pela metade, porque cortava caminho pela Alexandre Herculano.
Estava em dúvida quanto ao itinerário de um e outro nas avenidas, mas tive a sorte de
me encontrar com o distinto professor Henzo Antelo, que não titubeou: o bonde 7 circulava no sentido praia-cidade e o 12 no sentido cidade-praia.
Obrigado, professor.
Eu estudava no Ginásio Santista, morava na Rua Borges perto da Conselheiro Nébias e
era freguês de carteirinha desses dois bondes. De carteirinha mesmo, porque tinha conta com o condutor, acertada de tempos em tempos com passes
escolares. A gente ficava devendo, gastava os passes com qualquer besteirinha mas pagava sempre, leal e pontualmente, ao condutor. Era ponto de
honra.
Fazer o percurso agarrado ao estribo era uma
habilidade da qual os homens se orgulhavam
Foto publicada em A Tribuna em 20/5/1947, recuperada do
arquivo particular do autor,
o repórter fotográfico José Dias Herrera
Viajar de bonde não era uma coisa monótona como pode parecer por causa daquele negócio
de estar preso aos trilhos. Os bondes de Santos, os autênticos, aqueles pintados de verde, o famoso verde City, eram abertos. A gente viajava na
paisagem. Cada viagem era uma história, porque acontecia de tudo. Encontro com amigos, início de namoro, papos eternos sobre futebol, política,
mulher. O retardatário que atravessava a rua correndo, dava um salto acrobático, se agarrava e se equilibrava no estribo. Todo mundo torcia para ele
não cair.
Pegar o bonde andando era uma arte e saltar quando em velocidade maior (oito ou nove
pontos, se não me engano), um capítulo à parte. Alguns eram verdadeiros artistas, perfeitos no lance. Pegavam o bonde na maior velocidade: de
frente, de lado, de costas. Nisto se destacavam os jornaleiros. Cabral Júnior, que depois montou e liderou a orquestra de Cabral Júnior e seus
Cubancheros, sob cujo ritmo caliente muito dancei na Humanitária, foi o melhor nessa de pegar o bonde andando sem dar bola para as leis
da Física. Não convinha imitá-lo, era tentar e se dar mal. Quem é do tempo sabe disso.
Agora, que os bondes não mais circulam pelas ruas da cidade, mas só na memória de
raros sobreviventes, entendo que eles não eram simples meio de transporte, mas autêntico teatro em movimento ao ar livre. Com a relevante vantagem
de um texto bolado na carne viva do cotidiano. Cortes incisivos e espontâneos, ali na nossa frente, palpitantes.
Poderia exemplificar com mil casos, pequenos acontecimentos incrustados na trama do
dia-a-dia da cidade. Poderia. Mas prefiro recorrer a Amadeu Amaral em seu Memorial de um Passageiro de Bonde. Esse autor anda meio esquecido,
ainda não virou tese acadêmica, que eu saiba, seus livros não são fáceis de encontrar, mas teve seu tempo de glória. Foi da Academia Brasileira de
Letras e, entre outros, deixou dois importantes livros sobre folclore, O Dialeto Caipira e A Poesia da Viola.
Este Memorial de um Passageiro de Bonde consegue reviver o clima daqueles
tempos, recriando as situações ocorridas em uma viagem de bonde.
Na Praça da Independência, um ponto para as
linhas da Av. Ana Costa que iam até a praia
Foto: José Dias Herrera/arquivo particular
Na verdade, são várias viagens, a começar pelas de cada dia, a serviço do trabalho. O
escritor dispara o olhar-armadilha e vai flagrando os detalhes. O louva-deus, aquele bichinho delicado que pousou no ombro da senhora grávida e a
assustou; o bêbado, incomodando todo mundo mas com um ar irremediavelmente simpático; o passageiro tocando sanfona no banco da frente.
No meio do caminho, o acontecimento fulgurante de uma trombada. Para o bonde, para o
caminhão, a vida pára. Todo mundo, no entanto, tem que chegar a algum lugar, para isso tomaram o bonde. Enfim, em cerca de 200 páginas, seguimos a
nossa viagem.
E eu fico pensando: por que acabaram com os simpáticos bondes aqui de Santos,
substituindo-os por esses ônibus horrorosos? Um dia contarei o que era uma viagem no bonde 1 de Santos a São Vicente pela linha do Matadouro. Com
direito ao encontro com uma boiada.
(*) Narciso de
Andrade é poeta e escritor. Texto publicado, junto com as fotos desta página, no caderno
AT Especial/Leituras do jornal santista A Tribuna, em 15 de março de 1998.
Próxima estação mostra um pouco da história de Santos
sobre trilhos... |