Há muitas histórias curiosas registradas nos cerca de
cem anos de circulação dos bondes por Santos e São Vicente, que, reunidas, mostram bem os serviços inestimáveis que esse meio de transporte já
prestou a Santos. Em resumo, basta dizer que os bondes já transportaram desde o imperador D. Pedro II até lavagem para porcos e restos de móveis
destinados ao lixo. O bonde 16 era
conhecido como Lavageiro, por que os moradores no Morro da Nova Cintra tinham o costume de transportar em seu reboque lavagem (restos de comida
recolhidos pela cidade) para os porcos que criavam. Com isso, os veículos dessa linha foram adquirindo um odor bem característico, nada agradável...
Contam os antigos motorneiros que os bondes também foram usados no transporte de
restos de móveis e colchões que os moradores destinavam ao depósito público de lixo.
Bonde saindo da Avenida Ana Costa, no Gonzaga, em direção ao José Menino, por volta de
1920
O hotel Atlântico ainda não existia
Pioneirismo - Existiam também carros de cargas e encomendas. Santos foi a
primeira cidade brasileira, talvez da América do Sul, a ter um sistema de transporte de mercadorias por bondes, o então chamado tram-road. O
"serviço de transporte de gêneros e mercadorias, por meio de trilhos" proposto por Domingos Montinho e aceito pela Câmara de Santos na sessão de 28
de janeiro de 1870 foi inaugurado em 9 de outubro de 1871, um ano antes da capital paulista, pela sociedade anônima Cia. Melhoramentos da Cidade de
Santos, e a primeira linha ligou o Centro de Santos à Barra (atual Boqueirão).
A sucessora dessa concessionária do transporte, Cia. City, foi também obrigada por
contrato com a Municipalidade a manter carros apropriados para irrigação das ruas (o primeiro bonde irrigador, para limpeza e lavagem de ruas, foi
montado em 1913. Existiram dois desses bondes).
Em tempos mais recentes, lembrados pelos antigos motorneiros que agora participam do
projeto Vovô Sabe Tudo na revitalização do serviço de bondes - foi comum que as mães confiassem aos motorneiros seus filhos em idade escolar, para
que os transportassem até as escolas ou ao local onde outros parentes as aguardavam. Pois é, Santos já teve até, pode-se dizer, "bonde escolar"...
Viajar de bonde já foi uma atividade chique o suficiente para merecer nota em colunas
sociais
Os vivos e os mortos - Pesquisadores como Olao Rodrigues, Francisco Martins dos
Santos e Fernando Martins Lichti registram em suas obras (referidas em várias páginas desta série) que já existiram bondes fúnebres - adaptados
especialmente para o transporte dos caixões aos cemitérios, com todo o cortejo. Registra o livro Poliantéia Vicentina (Editora Caudex, São
Vicente, 1982): "Para enterros, os carros levavam crepe negro e eram conduzidos por duas ou três parelhas de cavalos também negros, empenachados e
cobertos por xaréis igualmente da cor do luto". Francisco Martins dos Santos observa que o transporte fúnebre surgiu em 1903, quando a empresa Ferro
Carril Santista foi reorganizada sob a direção de Júlio Conceição e James Mitohell.
Com adornos mais alegres (cetim branco e flores de laranjeira), e puxados por parelhas
de cavalos normandos, também já transportaram muitos noivos até as principais igrejas, com todo o acompanhamento de pais, padrinhos, amigos e
convidados. O transporte por bonde também era contratado especialmente para as festas particulares da alta sociedade santista.
Os bondes já foram usados para transportar bandas de música que faziam suas
apresentações semanais nos coretos da região, e nos finais de semana eram comuns os passeios da família inteira até as praias, a Boa Vista ou o
Porto Tumiaru (que valiam como verdadeiras excursões, já que o núcleo populacional santista se concentrava na
região entre os bairros do Valongo e do Paquetá e a região até as praias era praticamente deserta, quase inacessível por
ser constituída de manguezais - o saneamento dessa área, com a construção dos canais de drenagem, só começaria depois da Primeira Guerra Mundial).
Sim, já existiu uma época em que era considerado chique passear de bonde, ao ponto de
o fato merecer nota nas colunas sociais. Passear no veículo principal, bem entendido, já que nos reboques (surgidos a partir de 1931, com a
introdução de bondes elétricos com motores mais potentes) viajava a classe menos favorecida, pagando meia passagem...
A propósito, registra o Indicador Turístico, de 1885, que "uma linha de bondes
puxados a muares conduz os passageiros ao Boqueirão, ao preço de 400 réis; há um ramal do Boqueirão à Ponta da Praia".
Praça Mauá, com o chafariz inaugurado por D. Pedro II
Imperador também - Em 17 de agosto de 1876, durante sua segunda visita a Santos
(onde já havia estado em 18/9/1846), o próprio imperador D. Pedro II fez questão de percorrer - com todo o seu séqüito -, em bonde especial, toda a
Rua da Independência, do Largo da Coroação (hoje Praça Mauá) até o Boqueirão da Barra (hoje praia do Boqueirão). Ele
havia chegado à Ponte da Alfândega e assistido missa na Matriz, oficiada pelo cônego Cipião Junqueira, vigário de Santos,
e fora advertido do cansaço e esforço que a viagem de bonde até a praia representaria.
Essa Rua da Independência foi depois chamada de Rua Octaviana e hoje tem os nomes de
Conselheiro Nébias (rua e avenida) - as duas denominações em homenagem ao santista Dr. Joaquim Octávio Nébias, presidente da Província do Rio Grande
do Sul, no Segundo Império.
Tal via, aliás, foi aberta em conseqüência da necessidade de um caminho para a
passagem dos bondes: desde 1864, as "gôndolas" puxadas por burros - na época o mais moderno meio de transporte urbano -, já transportavam
passageiros do centro santista até a esquina do Caminho da Ponta da Praia, hoje Avenida Epitácio Pessoa.
Diligências - Note-se que os veículos eram chamados então de diligências, tanto
que, com a falência de Luís Massoja e seu serviço de gôndolas, o transporte foi assumido em 14 de fevereiro de 1866 pela empresa Companhia
Diligências Guanabara, que chegou a ter diligências até para São Paulo (serviço logo extinto pela concorrência da ferrovia da São Paulo Railway Co.,
inaugurada no ano seguinte).
Na Barra do Boqueirão visitada pelo imperador, nem existia ainda o famoso
Cassino Miramar (inaugurado em 12/1/1896), ou o Parque Indígena de Júlio Conceição (que foi o primeiro orquidário de
Santos, iniciado em 1895), ambos junto à praia. A área na época era tomada por diversas chácaras, pertencentes aos homens ricos de São Paulo e
Santos, que ali permaneciam nos finais de semana e períodos de veraneio. Foi essa a razão de se criar o serviço de bondes para o Boqueirão, depois
estendido à Ponta da Praia.
Trecho final da Avenida Conselheiro Nébias, junto à praia, em 1904
Outro passeio - Não foi a única vez em que o imperador D. Pedro II passeou de
bonde por terras santistas: anos depois, "no dia 9 de março de 1885, a bordo de pequeno barco denominado Rio Pardo, regressava de sua viagem
às províncias do Sul a família imperial. A Vila de São Vicente recebeu-a. A comitiva era composta da princesa Isabel, do Conde D'Eu, dos príncipes
D. Pedro, D. Luiz e D. Antônio, e outras altas personalidades. Os visitantes chegaram de Santos em bondes que a empresa Emmerich & Ablas pôs à sua
disposição. Foi um acontecimento notável na Vila (N.E.: de São Vicente) que jamais se repetiu."
Prossegue o relato, na Poliantéia Vicentina: "Recebidos condignamente pelas
autoridades vicentinas, das quais se destacava o capitão Gregório, os membros da família imperial visitaram a Velha Matriz,
a Câmara Municipal e o lugar onde existiu, segundo os historiadores, a casa do fundador de São Vicente (Rua Martim Afonso), a Fonte (depois
Biquinha de Anchieta) e as praias. Após essas visitas, os príncipes foram repousar na residência do capitão Gregório Inocêncio de Freitas. Nessa
oportunidade, como lembrança de sua passagem por São Vicente, a princesa Isabel aqui deixou uma travessa que usava no cabelo. Fomos encontrar essa
peça no Instituto Histórico e Geográfico de Santos".
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