Embarcações antigas ou abandonadas em Santos
Francisco Carballa
Nosso porto já teve dias de muita abundância de mercadorias e navios de Portugal e depois de todas as partes do mundo. Com
eles, vieram alimentos exóticos, conhecidos, e apreciados pelos estrangeiros residentes aqui, como as frutas secas natalinas (que - por algum motivo - ainda não foram cultivadas nos estados de clima frio como Rio Grande do Sul, Santa Catarina
(São Joaquim) e Paraná), azeite de origem portuguesa, bacalhau e vinho do Porto.
Ainda hoje existem controvérsias se, nesses cinco séculos, quais dos navios que aqui aportaram o fizeram de forma oficial ou clandestina. Os
relatos são vários, de navegantes como Diogo Garcia de Moguér, que escreveu em 1527, em sua Memória de la navegacion, que o conhecido bacharel Cosme Fernandez já estaria vivendo na nossa região há cerca de 30 anos, o que nos remete a 1497
aproximadamente (com a margem de um calculo confuso e que carece de pesquisas), sendo que o mesmo bacharel já conhecia a língua do silvícolas e produzia objetos de uso geral relacionados à cultura do europeu, ou aprisionava escravos do gentio da
terra para vendê-los à Espanha e seus territórios.
Vendo o que está escrito em outras fontes históricas, principalmente em Portugal e Roma, descobrimos que as terras brasileiras eram
conhecidas desde que o navegador Sancho Brandão por estes mares passou anteriormente a 1343, quando levou para Portugal o pau brasa que daria o nome à Ínsula do Brazil ou Ínsula de Brandan, que passaria a figurar em mapas e cartas de navegação em
pleno século XIV. Isso numa época em que as pessoas ainda acreditavam que o mundo era plano e havia um grande abismo no horizonte, além dos monstros que povoavam a ignorância das pessoas daqueles tempos. Existe no Vaticano uma carta com a notícia
do descobrimento relatada ao Papa Clemente VI (pesquisa de Armando Areias, 1998, Porto, Portugal).
Isto nos leva a entender que naufrágios sempre existiram em nossa costa, muito antes do século XVI, quando Portugal decidiu ocupar as terras
de forma oficial, e principalmente quando passou para a coroa de Espanha (1580-1640). Nesse período, todas as colônias portuguesas de além-mar, entre elas o Brasil, se tornariam alvo dos ataques dos inimigos, com seus navios. Muitas embarcações
desapareceram e ocorreram diversos naufrágios, que deixaram apenas materiais sólidos espalhados pelo leito do oceano ou - como no caso de certos relatos - a embarcação quase inteira ficou ignorada por muito tempo.
Os ataques tiveram origem nas brigas por confissões religiosas, domínios das terras apossadas ou entre nações inimigas naquele momento, mas
isso não afetou tanto os portugueses de São Vicente até 1580, quando a coroa de Portugal passou a pertencer a Espanha. Então, eles se tornaram alvo da cobiça de França, Holanda e Inglaterra, pelo menos ate 1640 quando a nação lusitana retomaria a
sua autonomia.
"St. Vicent", conforme publicado em Americae Praeterita Eventa - Helmut Andrä e Edgard de Cerqueira Falcão, Editora da Universidade de
São Paulo, 1966. Obra trílingüe (português/inglês/alemão), reproduz parte de Historia Antipodum oder Newe Welt, originalmente publicada em 1631 pelo gravador suíço Matthäus Merian e pelo escritor e compilador Johann Ludwig Gottfried.
Construindo as vilas e protegendo-as do gentio, viviam os colonos alheios aos interesses dessas coroas e suas maquinações
políticas, apenas fazendo a terra produzir e assim retirando dela seu sustento e também os produtos para o comércio das Índias Ocidentais, entre eles o precioso açúcar, além de buscarem metais e pedras de valor para sanar os gastos devidos a má
administração do rei e seu reino.
Os índios selvagens eram o maior problema, pois havia a ameaça constante da antropofagia, como nos fala Hans Staden que naufragara nas
proximidades da Vila de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém, sendo socorrido com sua tripulação. Ele ficou um tempo trabalhando na região de Santos, até ser - durante uma caçada - aprisionado pelo gentio inimigo dos lusitanos, tendo uma
estadia forçada no meio dos Tupinambás, que não haviam sido evangelizados pelos valorosos padres José de Anchieta e Manuel de Nóbrega. Estes indígenas, por não conhecerem a Tupan nhénga (Palavra de Deus), agiam de forma natural dessas
terras antigas, quando sem remorsos devoraram um português de Santos, de nome Jerônimo, filho do capitão português Jorge Ferreira (capítulo 46) e um membro da tribo Maracajá de nome Ticoaripe (cap. 36), mencionados nos escritos de Hans Staden.
Lendo e pesquisando a história de outras nações, percebemos que outros reis e rainhas queriam participar da divisão de terras e assim ter o
lucro de sua produção, mesmo que fosse preciso roubá-las dos antigos donos. Nada melhor do que o rompimento de relações com Espanha para justificar esse ato; assim começou o ataque de piratas que, em nome de seus reinos, muito mal fizeram e
muitas mortes causaram ao povo alheio aos problemas políticos da Europa. Quando falo em roubo, eu me refiro aos reis e rainhas que nunca tiveram a preocupação de buscar um caminho para as Índias ou participar da empreitada dos grandes
navegadores, custeando suas viagens, até então: só queriam os lucros, pois tanto a França como a Inglaterra e a Holanda possuíam costa marítima e experiência em navegações.
Ouro, prata, pedras preciosas, especiarias, levariam uma infinidade de piratas, bucaneiros, corsários e flibusteiros a assolar nossa costa,
como o caso do ataque ocorrido nas proximidades do Forte do Góis em que, defendendo o nosso território, ocorreria o naufrágio do navio espanhol Santa Maria de La Begoña em 1584 ou 1586, bem nas proximidades do Forte da Barra. Segundo um
mergulhador de nome Jaderson, ainda podem ser vistos hoje os seus restos, bem na frente do forte, no leito marinho (este relato ainda precisa ser confirmado, podendo ser outra embarcação qualquer). Em 1591, quando o corsário Inglês Thomas
Cavendish atacou a vila de Santos na noite de Natal, surpreendendo os moradores, possivelmente já pela 1 hora da madrugada, sua atenção foi chamada pela sineta ou sino da igreja (segundo algumas afirmações, pois sabemos que - até o mal
interpretado Concílio Vaticano II - a missa do galo ocorria às 24 horas, sendo assim até recentemente - eu mesmo por muitas vezes participei quando criança, cantando no coral da Catedral de Santos; hoje, devido às mudanças sociais e a decadência
do bairro, não é mais possível que a celebração de Natal ocorra no horário tradicional). Sabemos, por relatos populares da época, que - para evitar perseguições ou represálias - muitos navios, nos portos, eram alvo de tiros de canhão, incendiados
e de alguma forma afundados, ou então, sendo embarcações de alguma importância ou qualidade, levadas como butim de pilhagem, como é citado nos relatos de sir Francis Drake no século XVI.
Nós sabemos do ataque do corsário Holandês Joris Van Spilbergen de 1615, em cujo livro de viagens nos é apresentada uma
gravura conhecida como "St Vicent", onde podemos reconhecer a baia de Santos com uma nave possivelmente espanhola em chamas indo a pique. Esse é o mais interessante relato que me chamou a atenção, pois naquele local é que
se encontram semienterrados, no leito marinho, os restos de um naufrágio, segundo o relato do mergulhador Rony Peterson V. Neves.
Indo pescar, como é seu lazer, sua rede de pesca ficou presa ao leito do mar, conhecendo bem o local ele mergulhou e encontrou uma ancora
antiga... julgando ser perdida por alguma embarcação, soltou sua rede e içou a âncora com muito custo para seu barco, deixando-a em um clube de Santos onde repousa no jardim como adorno.
Ao verificar novo problema com sua rede, Rony Peterson mergulhou e, para sua surpresa, encontrou os restos de uma embarcação que
estaria semienterrada aproximadamente três metros no solo marinho, com a proa destruída e o castelinho mal conservado; havia muitas cavilhas de bronze, uma das quais ele me mostrou, assim me fazendo conhecer do que se trata.
Logo depois, durante um mergulho, ele encontrou e trouxe uma xícara de porcelana com o número 1614, não sabendo ele se isso era um
número ou data de fabricação; infelizmente esse objeto foi dele roubado. Informa ele ainda que o canal da dragagem está próximo da embarcação e que os navios que entram no porto de Santos passam por cima dos restos, que estão apodrecendo
rapidamente, sendo possível retirar pedaços com a força das mãos.
Restos possivelmente da barca Itapema, usada na travessia Santos-Guarujá por muitos anos
Foto em 2/5/2009, cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
Desconhecendo a existência desses objetos, ele não encontrou o sino ou algum canhão onde constasse o nome de tal embarcação, como
seria o costume em muitos navios. É possível que, durante o naufrágio, tais objetos tivessem caído ao mar em outro ponto, até pelo fogo ter destruído a madeira de sustentação, podendo ser que tais objetos simplesmente não estivessem a bordo.
Existe ainda a necessidade de descobrir do que se trata, e qual a sua importância para nossa cidade e história. Com cautela, para evitar as
especulações de aproveitadores, ele retornou algumas vezes aos restos e fez uma localização aproximada, dizendo que poderia estar entre 9 e 11 metros de profundidade, segundo o tempo e a maré, havendo tempos em que a água fica escura e outros em
que permanece mais clara, sendo ele muito acostumado a mergulhar sem equipamentos.
Pesqueiro Progressão, semissubmerso defronte ao armazém 8 do porto
Foto em 20/4/2009, cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador Francisco Carballa
São muitos os relatos que ouvi de trabalhadores das dragas, de que do leito marinho vêm materiais diversos, como madeiras antigas e
apodrecidas, metais e até pregos de cobre, o que pode acusar um naufrágio antigo ou apenas lixo jogado de navios ancorados. No Rio de Janeiro conseguiram, durante o serviço, retirar um canhão do leito marinho. Assim, por não haver uma
fiscalização intensa, ou um mapeamento do leito marinho da região do cais até a barra, muitas embarcações ou mercadorias perdidas ali permanecerão, se forem construídas com materiais mais sólidos, ou ficarão até se desfazerem, se forem de
materiais frágeis.
A equipe que pudesse buscar informações no estrangeiro entre os arquivos da Inglaterra (que ainda hoje mantém os diários de bordo de muitos
navegantes ou piratas ao seu serviço); na Torre do Tombo em Portugal, e nos arquivos da Holanda, explicaria esse curioso achado, pois poderia se tratar de um navio muito antigo ou outra embarcação qualquer de madeira, pois ainda hoje são
fabricadas e seus restos recordam os navios antigos com seus desenhos dos cascos que pouco mudariam nos cinco séculos de navegação, a não ser pelos equipamentos de vapor e depois com o maquinário a óleo diesel.
No decorrer do tempo, outras embarcações ficaram abandonadas e apodrecidas, levando nossa imaginação bem longe, como é o caso da
Prainha de Vicente de Carvalho (Itapema), ao lado direito do píer da Balsa, onde a barca Itapema - que possivelmente ali tem os seus restos, como os do navio Agios Giórgios,
que para lá foram arrastados e deixados abandonados. Já recentemente, um velho batelão do cais de Santos foi cortado com maçarico, pois tentaram arrastá-lo para fora da água e não conseguiram, assim como outra pequena embarcação está tendo o
mesmo fim.
Também, mais adiante, em uma prainha onde estão muitos barracos próximos, encontra-se outra pequena embarcação, mas por estar um
pouco longe da margem não pude ir até ela, para ver de que tipo seria, ficando localizada nas proximidades da Rua Ceará com a paralela à via férrea (Rua Senador Salgado Filho).
O lado esquerdo do antigo Forte de Santa Cruz, nas proximidades do início da grande ponte férrea, é um local onde existem muitas
embarcações pesqueiras abandonadas e até naufragadas. Em direção de Conceiçãozinha, existe uma infinidade de embarcações abandonadas no mar, bem em frente ao final da Rua Guilherme Backheuser. Semiafundada no porto de Santos, bem em frente ao armazém 8, está uma outra embarcação pesqueira, o barco de nome Progressão, preso apenas pela proa ao costão do cais.
Santos tem muitas pessoas antigas cujas histórias hoje parecem novidade ou explicam pontos obscuros de nosso passado. Assim, um
caso interessante é relatado por Clovis Benedito de Almeida, de 76 anos, sobre o navio Carl Hoepke. Conhecido como "navio espanhol", teria naufragado em 1956 na região da Ponta da Praia devido a uma grande
tempestade: ao entrar no canal do porto, o vento fez com que encalhasse e posteriormente afundasse. Na verdade, um incêndio na casa das máquinas, que logo se alastrou, fez com que muitas pessoas se jogassem ao mar, morrendo uma delas. A
embarcação foi rebocada então até Florianópolis (SC), onde foi reformada. Mais tarde, foi vendida a um grupo paulistano, que o converteu em um navio-boate, o Recreio, que não escaparia de mais um sinistro: durante
forte temporal, encalhou na praia santista, onde foi aos poucos desmontado. Mas, ainda no acidente de 1956, conta o sr. Clovis que parte da carga do Carl Hoepcke (vinho, azeite, azeitonas etc.) ficou boiando,
sendo apanhada pelos caiçaras, inclusive moradores da Praia de Santa Cruz dos Navegantes (Pouca Farinha). Conforme o relato, eles teriam enterrado os barris de vinho para evitar que as autoridades os recolhessem. Segundo uma moradora que conheci,
seus pais "tomaram uma bebedeira que ficaram torrados"...
(17 de maio de 2010)
Bibliografia
- Revista Portuguesa, ano 10 Nº 95 jan/fev/1998 Portugal.
- STADEN, Hans – Primeiros registros escritos e ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes. São Paulo, 1999. Editores Mary Lou Paris e Ricardo Ohtake.
- Relatos de pescadores e mergulhadores.
- Pesquisas particulares.
Corrente que poderia ter pertencido ao antigo navio São Jorge, segundo informação não confirmada, prestada por mergulhadores
Foto em 6/5/2010, cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
Adendo, em 22 de janeiro de 2014:
Quando era ainda menino, lá pelos idos dos anos de 1973, morava com minha família na Rua São Francisco, 250-altos, e as reportagens que
saíram na TV alvoroçaram o povo: haviam descoberto um navio que tinha uma sereia na ponta, onde estava escrito o nome Vivian. Depois, ainda achariam mais duas carcaças de navios antigos de madeira.
Mas, não se falou mais do assunto, pois a cidade entrava em transformações profundas naquela década, com o alargamento da Rua Xavier da
Silveira, Rua João Pessoa e outros pontos da cidade.
Mas a história do Vivian ficou na minha mente, depois que houve até uma reportagem em alguma emissora de
televisão da época que poderia ser a Globo, Tupi, Bandeirantes ou Record, que mostrava a ponta do dito navio em terra firme e os comentários sobre o assunto. Na época, haviam dito que existiam mais embarcações de madeira e que as dragagens as
destruiriam, por estarem já apodrecidas pelo tempo.
Desmonte do Batel
Foto em 6/5/2010, cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
Desmonte do Batel
Foto em 7/5/2010, cedida a Novo Milênio pelo professor e pesquisador
Francisco Carballa
Rony Peterson encontrou os restos de uma embarcação naufragada
Foto: Francisco Carballa, maio/2010
N. E.: há um acróstico escondido pelo autor nas letras iniciais dos parágrafos, marcadas em verde: NAVIO COLONIAL DE
SANTOS.... - O adendo acima começa a explicá-lo. |