III - O poeta Duarte Há,
em todas as línguas, vocábulos cuja significação o progresso econômico, a evolução filosófica e a cultura literária alteraram profundamente. Em
economia política, por exemplo, as tributações, que se apelidavam geralmente impostos, hoje se chamam taxas, direitos, tarifas, licenças, rendas,
emolumentos; são modalidades diversas de um problema só.
Na acepção antiga e popular, taxa era o mesmo que imposto: não havia diferenças. Hoje, porém,
taxa é especialmente aquilo que o contribuinte paga em troco de um determinado serviço, como a taxa dos telégrafos, a taxa d'água, a taxa do
matadouro; e imposto é a contribuição geral de todos os habitantes de um país ou de uma cidade para as despesas de caráter coletivo, como o
subsídio dos representantes do povo, os vencimentos do funcionalismo, a abertura de ruas e de estradas, a instrução, a higiene e outras mais.
Assim, pois, toda a taxa é, no fundo, um imposto, se a este vocábulo dermos a significação
genérica de tributo; embora nem todo o imposto seja taxa.
Erra, portanto, e erra barbaramente, quem escreve, como o patrono dos recorrentes, à página 8 do
Recurso suplementar: "Onde se foi buscar base para a criação de taxas de um imposto não
autorizado?" Taxa de impostos é pleonasmo tão asmático como goiabada de goiabas.
E tão furibundo estava o encolerizado patrono contra a cobrança irregular de uma taxa que, na
sua opinião, não existe legalmente, que não se limitou ele ao dislate referido: foi além e, descrevendo no espaço, em torno de si, um gesto amplo,
frenético e tresloucado, exclamou oito páginas depois: "E é constitucionamente ilegal porque
não existe em lei expressa!"
Constitucionalmente ilegal! Mas essa expressão típica equivale às pérolas de safiras do
poeta Duarte, contra quem Gonçalves Crespo, no auge da indignação, desfechou a seguinte paródia improvisada no decurso de um espetáculo teatral no
Porto:
Cebolas de batatas
E couves de feijão,
Ai, coração!
O amor é um tomate,
Adeus, Duarte.
Adeus, adeus!
Constitucionalmente ilegal! Estamos vendo que o poeta Duarte acaba ainda por descobrir
alguma taxa inconstitucionalmente.... legal!
Todo o Recurso suplementar é assim uma vasta cacaborrada, na qual o senso lógico, o senso
gramatical e até o senso comum sucumbem esmagados sob o tumultuoso tropel das asnices em franca disparada.
Vejamos agora o caso que tantas vezes o fez arremeter contra a concessionária do Matadouro, e
contra a Prefeitura. A Lei n. 585, de 31 de outubro de 1916, regulando a coleta, lançamento e arrecadação dos impostos e outras rendas municipais,
foi publicada a 2 de novembro do mesmo ano, no jornal oficial da Municipalidade. Contém ela três artigos. No 1º discrimina as rubricas da receita;
no 2º dispõe que cada uma dessas rubricas constitui um título especial dos Regulamentos anexos e no seu parágrafo único determina que tais
regulamentos entrarão em vigor desde a data da publicação da lei; no 3º revoga as leis anteriores que lhe são contrárias.
Ora, esses Regulamentos, por um qualquer motivo ponderoso, não foram publicados conjuntamente
com a Lei. Não se conformando com tal irregularidade, que quase levou o povo de Santos aos extremos de uma heróica revolução capitaneada pelo
poeta Duarte, comenta este, com a sua lógica habitual: "Na publicação feita da lei referida,
não se vê nenhum regulamento; e nem se podia ver. Se ao Prefeito é que cabe organizar esses regulamentos para execução das leis que forem
aprovadas pela Câmara - como admitir-se que essas leis, logo ao serem elaboradas, já estejam com seus regulamentos anexos? Como compreender que
elas, em seu texto, possam já ter regulamentos anexos e dar a estes uma força de obrigatoriedade desde a publicação dessas mesmas leis de que são
conseqüentes?"
E assim discorre Duarte, com essa elegância e esse vigor; e teria razão, sim, senhores, se se
tratasse aqui da regulamentação posterior de uma lei anterior. Mas não se trata disso. A lei em questão, como se vê dos seus três artigos, não faz
outra coisa senão pôr em vigor os Regulamentos a que alude e que foram aprovados pela Câmara, com as alterações havidas, como parte integrante da
referida lei.
Não é esta uma lei contendo matéria nova, que o prefeito deva regulamentar; é, ao contrário, uma
lei aprovando as disposições relativas à coleta, lançamento e arrecadação de impostos, constantes de um anexo integralizado nela, disposições de
caráter permanente, que se achavam em pleno vigor, havia muito tempo. A Câmara, tendo que modificar algumas delas, regularizou o seu ato por meio
de uma lei expressa. É tudo, portanto, uma só peça dividida em texto e anexo.
O que poderia causar reparo é a circunstância de não terem sido os Regulamentos publicados ao
mesmo tempo que a lei que pôs em vigor as alterações votadas, e que determinaram o dia certo em que eles entrariam a ser executados. A sua
publicação só se deu alguns dias depois, a 24 de novembro, mas isso mesmo em nada aproveita à causa dos recorrentes, como facilmente verificará
quem acompanhar a nossa argumentação.
O prefeito municipal autorizou, por despacho de 4 de julho de 1917, o
aumento da taxa de matadouro, de acordo com a Lei n. 585, art. 8º, título VIII, cap. 1º. O advogado dos recorrentes exultou. Pois se a Lei n. 585
só tem três artigos, como se refere o prefeito ao artigo 8º, que não existe? Se os Regulamentos anexos não foram publicados com a referida lei - é
porque esses Regulamentos também não existem. Logo - exclama triunfante e contente o Duarte, entusiasmado com a sua descoberta genial - não há
tabelas de impostos e a respectiva cobrança está sendo feita de um modo constitucionalmente ilegal! Quanta puerilidade nessas afirmações,
quanta bajulice, quanto sofisma parvo!
Em primeiro lugar, não havendo, como não há, diferença alguma entre a malsinada lei e o seu
anexo, os quais constituem, como já dissemos, uma só peça, podia o prefeito em seu despacho reportar-se aos artigos deste ou daquela. Mas tal não
aconteceu: é evidente que, no ato de ser dado o despacho, ou de copiá-lo para a imprensa, ou talvez no momento de sua composição, foi omitida
involuntariamente uma palavra que não altera em nada o pensamento que ele exprime.
O prefeito despacho: "De acordo com o Regulamento da Lei n. 585, art. 8º, título VIII" etc.; e
saiu publicado: "De acordo com a Lei" etc. Trata-se de uma questão de lana caprina
(N.E.: em latim, lã de cabra, algo inexistente), sobre a qual nos estamos entendendo para
patentear aos nossos leitores, e ao público, de que força é a argumentação dos adversários da Câmara.
O importante é saber se o Regulamento que alterou, entre outras, a tabela das taxas de matança,
estava ou não vigorando na época em que o sr. prefeito municipal autorizou a concessionária do Matadouro a aumentar, de conformidade com o seu
contrato, aquelas taxas.
A Lei n. 585, publicada em 3 de novembro, mandava que o seu Regulamento tivesse execução nesse
mesmo dia. Como, porém, o Regulamento só foi publicado no dia 24, convimos que a sua execução começasse nessa data. Ora, somente a 5 de julho do
corrente ano, isto é, oito meses depois da publicação do Regulamento, é que a concessionária obteve o aumento da taxa de matança.
É, por conseguinte, uma verdadeira falta de respeito para com os ilustres membros do Senado
Estadual e uma burla ao povo de Santos, afirmar-se que a taxa está sendo cobrada de modo constitucionalmente ilegal, porque não há lei
anterior que a autorize. Pois a lei e o seu Regulamento não estavam publicados e vigorando desde oito meses atrás?
Quem lá fora ler as impudentes de cínicas asseverações dos recorrentes, não conhecendo os fatos
em seus pormenores, ficará pensando que a Administração de Santos está entregue a mãos ineptas e prevaricadoras. Os recorrentes se atreveram a
afrontar a austeridade dos senadores paulistas, dizendo-lhes que a nossa Municipalidade cobra taxas que não foram votadas regularmente - só porque
o Regulamento da Lei n. 585 foi publicado 20 dias depois dela!
É estribada nesse fato sem importância alguma que eles ousam atacar, perante um Poder superior,
a honorabilidade do nosso prefeito. Como o Regulamento não saísse publicado no mesmo dia em que saiu a lei que a ele se refere - atrevem-se os
signatários do Recurso a afirmar, de público e raso, com o mais repulsivo desplante, que tal Regulamento não existe!
Adeus, Duarte! Até amanhã.
Imagem: trecho do livro O Matadouro
Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 17) |