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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Crônica policial - 03
O velhíssimo conto-do-vigário...

Mudam os tempos, mas o golpe continua basicamente o mesmo...

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Vigário é o religioso católico que substitui o padre ou o bispo em inúmeras funções. Conta-se que no Brasil do século XVIII, em Ouro Preto, os vigários das paróquias de Pilar e da Conceição queriam uma mesma imagem de Nossa Senhora. Então, um deles propôs que se amarrasse a santa num burro ali presente, que seria colocado entre as duas igrejas. Ficaria com a imagem a igreja que o burro escolhesse. Mas o burro era do vigário da igreja de Pilar e para lá se dirigiu, deixando o vigário vigarista com a imagem.

Daí - e de outros casos de mistificação ocorridos depois em Portugal, usando os espertalhões o nome de um vigário para dar credibilidade ao golpe - nasceu a expressão conto do vigário, que os brasileiros usam para se referir aos casos de estelionato. A história de um deles, ocorrido em Santos pouco antes da Primeira Guerra Mundial, foi publicada assim, na página 3 do jornal santista A Tribuna, edição de 27 de janeiro de 1913 (ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da matéria original

O VELHO CONTO

Quatrocentos e sessenta mil réis por um pacote de jornais velhos

O dr. Bias Bueno, terminando o expediente na 1ª delegacia, se dispunha a sair, quando lhe foram anunciar que um cidadão lhe desejava apresentar uma queixa.

A autoridade policial fez entrar o queixoso.

Um homem alto, moreno, vestido com um certo apuro, adiantou-se então, ostentando garbosamente sob o mento umas falripas negras, que formavam o mais gaiato cavanhaque que jamais os olhos argutos dos sherlockes policiais viram na delegacia.

- Que deseja, cavalheiro?

- Saiba vossoria que eu acabo de cair no conto do vigário.

Abafou-se uma gargalhada prestes a estalar.

- No conto do vigário? Pois ainda há neste tempo quem caia no conto do vigário?!

- Ah! mas da maneira que eu caí, qualquer um cairia!

- Conte lá isso.

E o cidadão das impagáveis barbichas desenrolou a fita.

Estava a espairecer um bocado próximo à Praça José Bonifácio, quando foi abordado por um velho simpático e bem falante que lhe pediu para indicar-lhe a Avenida Conselheiro Nébias.

Precisava lá ir a essa avenida procurar um engenheiro do Saneamento, a fim de conversar sobre negócio importante.

O amável cidadão das barbichas ralas prestou-se logo a acompanhar o velho até a Praça José Bonifácio, onde tomaria o bonde para a avenida.

Foram. Em caminho, um rapaz louro, simpático e de pequenos bigodes aproximou-se do gajo.

O velho repetiu-lhe a pergunta: - Conhecia acaso um engenheiro do Saneamento que morava à Avenida Conselheiro Nébias?

O louro recém-chegado conhecia. Dava-se até com o engenheiro.

- Pode indicar-me a casa desse engenheiro?

- Para quê?

- Negócio importante. Um sobrinho seu, ex-empregado da Comissão de Saneamento, deu, há tempos, um desfalque de 50 contos naquela repartição e fugiu para [...] (N.E.: trecho dilacerado) ...nho uma fazenda.

Arrependido, muitos anos depois do crime, arranjou o dinheiro e entregou-mo agora para que eu o restituísse à Comissão.

Ora, eu não conheço a cidade...

O moço louro interrompeu-o:

- Isso é de menos. Eu lhe indicarei a residência do doutor, mas acho que vai perder o seu tempo. Ele não está em casa. Deixei-o há pouco na cidade. O melhor é entregar-lhe amanhã o dinheiro.

O barbichas ouvia a conversa, calmo e sorridente...

O velho achou aquilo uma terrível maçada. Ter de guardar 50 contos no hotel era um perigo. Havia em Santos muita gente má; poderiam roubar-lhe o dinheiro...

O moço louro empinou o busto, arregalou os olhos, engrossou a voz e disse:

- Uma idéia! Nós dois (e apontou para o barbichas) somos homens sérios. Eu sou negociante à Rua Marquês de Herval n. 44, e este cavalheiro, este cavalheiro...

O barbichas altivamente alteou o queixo ornado das engraçadas falripas e declarou solenemente que também era um homem sério e empregado na casa Mandarim.

Chamava-se Manoel Rodrigues e por sinal que viera da terra há cinco anos.

- Nós dois, continuou o moço louro, somos homens sérios. Podemos, portanto, prestar-lhe um serviço: guardar-lhe o dinheiro até amanhã.

O velho, como bom matuto ingênuo, aceitou a proposta e entregou ao jovem louro o pacote dos 50 contos.

Deu o nome do hotel onde se achava hospedado e retirou-se.

Pouco depois, o rapaz louro disse ao bom do Manoel Rodrigues:

- Ó seu Manoel, e se você ficasse a guardar o dinheiro até amanhã? Eu tenho que ir à Barra e posso perdê-lo.

O Manoel achou a idéia excelente.

O outro pediu-lhe o lenço e embrulhou nele o pacote com os 50 contos.

Depois pediu ao barbichas que lhe desse como garantia algum dinheiro.

Barbichas sacou do bolso toda a sua fortuna, 460$000 e deu-a ao rapaz louro.

Separaram-se. No Itororó, o barbichas, curioso, abriu o pato. Nem uma pelega de 1$000! Apenas três pedaços da Tribuna muito bem embrulhados em uma reclame da companhia Previdência.

Só então, o ingênuo Manoel Rodrigues lembrou-se que caíra no conto do vigário.

O delegado riu-se.

- Pois você caiu nesse conto?

O Manoel coçou a barbinha e desculpou-se.

- Caí, porque eles me fizeram fumar um cigarro que me tonteou de tal modo a cabeça, que se me mandassem tirar toda a roupa eu tirá-la-ia!...

A polícia, enquanto procura os contistas, vai mandar pregar uma bela medalha ao peito do Manoel, para que todos saibam que ele é um águia com 09. (N.E.: a citação remete às regras do jogo do bicho, em que - nos números apostados - as dezenas de final 05 a 08 são referidas como sendo da águia. 09 é uma dezena relacionada a outro animal, o burro...)

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