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NO TEMPO DOS BANDEIRANTES
[17] Os soldados de Vila Rica
O comércio paulista - A povoação hispânica de Vila Rica e as tentativas para um intercâmbio comercial - Emissários espanhóis que chegam a São Paulo - Esperança e desilusão
comércio, na vila, existe sob duas formas tradicionais: fixo e ambulante, exercido
pelos lojistas ou pelos forasteiros, sendo que quase ao findar o século, se instituem as feiras, no terreiro da Misericórdia, com isenção de impostos aos negociantes.
Os ambulantes, geralmente, vêm do litoral, vencendo os penosos obstáculos da Serra do Mar, pela trilha aberta pelos índios e que os senhores oficiais da Câmara procuram, a todo transe,
senão melhorar, pelo menos conservar. Para consegui-lo, não se perdem em projetos ou devaneios: intimam os moradores da vila "a que vão com seus negros consertar a estrada do mar", sob penalidades que vão de cem a quinhentos réis.
Esses obstáculos, porém, se não constantes, parece que não intimidam ninguém, pois é intenso o trânsito pela estrada e inúmeros os forasteiros que vêm comerciar na vila do planalto,
trazendo drogas da metrópole e levando - não o dinheiro dos paulistas, que é escasso e está proibido de sair - mas mercadorias da terra, principalmente trigo. É o comércio exercido na sua acepção legítima; a permuta e a circulação de
mercadorias, livres do simbolismo da moeda e dos descalabros do fiado.
Vivendo longe do litoral, longe, portanto, das naus que transportam artigos manufaturados, panos de Castela, chapins de Valença, fitas de Lamego, chapéus de Bardá, é com verdadeira
ansiedade que se aguardam os mercadores forasteiros - homens providenciais que fornecem o necessário àqueles que não podem, como muitos outros, importar diretamente artigos inexistentes na vila. Ouve-se falar que as naus singram os mares
transportando mercadorias da Flandres, de Nápoles e Sicília, da Inglaterra... quando não vão acabar nas garras dos corsários que, então, assolam os mares do Novo Mundo, assaltando caravelas ou saqueando as vilas do litoral. Ao planalto, contudo, é
pouco o que vem. Nem por isso, entretanto, a vila de São Paulo se conserva estacionária. O seu progresso se processa, com inevitável lentidão mas com absoluta firmeza.
Do lado ocidental do meridiano de Tordesilhas, funda-se, nos fins do século XVI, em data até há pouco citada erroneamente, mas, em verdade, em 1570 [1], a povoação espanhola de Vila Rica, a leste de Ciudad Real. Situa-se a nova povoação nos campos de Guaraciberá, em lugar aprazível, em pleno coração da província do Guairá e com uma população
indígena calculada em trezentas mil almas.
Situada, mais que São Paulo, longe da orla litorânea, aonde só se poderá ir, após uma travessia aspérrima, pela rota palmilhada por Hernando de Trejo, tem a agravar-lhe a situação,
ainda, a distância de sessenta léguas em que se encontra de Ciudad Real. E, quanto à aproximação de seus habitantes com os moradores de São Paulo, é coisa que, em qualquer caso, só pode ser levada à conta de façanha, por mais imperativa que seja a
necessidade de se estabelecer, entre ambas as vilas, um intercâmbio comercial.
Acontece, porém, que, posteriormente, o capitão Rui Dias transfere a vila do lugar da sua primeira fundação para a desembocadura do Curimbataí, no Huibaí (Ivaí), vinte
léguas além do primitivo lugar, o que dá motivo a protestos desesperados dos vilarriquenhos que ficam, assim, a uma distância de 180 léguas de Assunção, dificultando, ainda mais, o seu já precário comércio. E mais: tendo, em 1603, a municipalidade
da capital paraguaia posto em hasta pública o arrendamento dos ervais da zona de Jejuí, o que leva ao cúmulo do desespero os moradores de VIla Rica que vêem o seu miserável comércio sofrer golpes, desencadeia-se a luta econômica entre as cidades da
mesma província.
Em tão dramática situação, volta-se a pensar na possibilidade de um intercâmbio comercial com São Paulo, o que só poderá ser feito pelos rios Paraná e Tietê - trajeto extremamente longo
e difícil - ou pela trilha dos tupiniquins, caminho mais curto, mas perigosíssimo.
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Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
A situação, contudo, não admite hesitações.
Cabe ao grande "criollo" Hernando Arias de Savedra, ou simplesmente Hernandarias, a tentativa desesperada para a realização do grande sonho. Das providências que tomou, para
conseguir esse objetivo, di-lo ele próprio em carta que, a 5 de abril de 1604, endereçou ao rei de Espanha e na qual se encontra este trecho:
"En este proprio tiempo gozando de esta paz se despacharam de la Provincia de guaira que es la última de este gobierno por el rio Grande de la Plata arriba, cuatro soldados
a descobrir Tierra y al cabo de algunos meses de navegación fueron a dar en la ciudad de San Pablo que es en la costa del Brasil la tierra adentro de donde en los navios que este presente año han venido de la dicha costa tuve cartas de los dichos
soldados y relación de su viaje y de como se podria tratar aquella provincia del Guairá con el Brasil, pero considerando que los portugueses es gente prohibida no consentiré se ande aquel camino hasta ver lo que Vuestra Magestad es servido se haga
no emergente que los de Guairá lo desean mucho, porque como están tan a transmano de esto puerto y ellos tienen tan gran pobreza no alcanzan con que vestir-se y apenas se halla un sacerdote que quiera estar entre ellos para administrarles los
santos sacramentos de que estan aquellos pueblos muy necessitados y de todo esto cuando Vuestra Magestad se serviere permitirles podrían tener remedio del Brasil" etc. [2].
Terão aqueles soldados, realmente, chegado a São Paulo?
Vejamos o que reza a ata da sessão da Câmara de Piratininga, no dia 22 de novembro de 1603:
"Acordarão os ditos ofisiais cõ o sõr capitão p.º vas de baros em prezença dos soldados espanhoes q. vieram da villa rica do espirito santo provincia do paraguai a saber
joão benitez de la cruz, procurador, e p.º minho / p.º glz. / sebastião de peralta os coais na dita camara diserão q. forão despachados pr. seu major dom ãt.º de andrasque a tratar q. sendolhes nesesario socoro como cristãos e vasalos de sua
majestade lho desen desta cpta. [3] e que eles farião o mesmo sendo nesesario e acordouse q. a todos paresia bem e q. disso se fizese este assento pr todos asinados e o
asinarão ãt.º roiz escrivão o escrevi e declarou o dito capitão q. lhe daria socoro sendo-lhe nesesario mas q. se não meterião fazendas de hüa parte para outra até sua magestade ser avisado."
É evidente aí, na parte final da ata, o propósito em que vêm os paraguaios de estabelecer relações comerciais com os paulistas, como são evidentes os escrúpulos do capitão Pedro Vaz de
Barros em não realizar nenhuma transação nesse sentido sem a aprovação de Sua Majestade. Vindos de Vila Rica, segundo confessam, por ordem "de seu major dom ant.º de andrasque" (trata-se do capitão-general don Antonio de Añasco, sobrinho e
sucessor de don Ruy Diaz de Melgarejo) é em vão que tentam estabelecer comércio com São Paulo, pois Sua Majestade insiste em que o caminho de São Paulo é caminho proibido.
Os espanhóis conservam-se na vila de Piratininga vários dias, temerosos de um regresso que lhes pode ser fatal, principalmente porque, tendo trazido vários índios como guarda-costas,
muitos deles se embrenharam no mato e desapareceram. A Câmara, contudo, estuda ainda a possibilidade de um intercâmbio comercial com Vila Rica, "pelo proveito que se esperava desse caminho e termos comercio e amizade por sermos todos cristãos e
de hü rei comü..."
Concorda-se, portanto, em que se avisem as demais Câmaras da Capitania para que cada uma apresente um grupo de homens dispostos a acompanhar os quatro espanhóis na sua viagem de
regresso. E Dom Luís d'Almada Montarroios, provedor da Fazenda real, vai além, prometendo até auxiliar os castelhanos com o rico dinheirinho de Sua Majestade, "pelo proveito que se esperava de se abrir este caminho e comercio".
O entusiasmo, como se vê, empolga todas as almas e a vaga perspectiva de um comércio com uma vila situada a cento e cinqüenta léguas de distância vai assumindo, cada vez mais, aspecto de
estupenda realidade.
Assunção, contudo, fiel às ordens de Madrid, continua a confiar no meridiano de Tordesilhas e obstina-se em não manter relações com o Brasil. O seu intento é claro e a penetração que se
processa à ilharga da demarcação de Castela não deixa a menor dúvida sobre o delineamento geográfico de um império hispano-guarani nas terras do Novo Mundo.
Quando, sob a direção de Hernando de Trejo se funda, no litoral de Santa Catarina, o povoado de São Francisco, essa fundação merece aprovação geral por ser considerada "una
escala muy conveniente para la conquista de aquella tierra, para la comunicación con el Paraguay y reino del Perú, y para embarazar que los portugueses no se introdujeren en los limites de la demarcación de Castilha, a que siempre, desde aquelos
principios, se le conoció propención [4]. La ocupación de la costa del Brasil dentro de los derechos españoles fue una preocupación persistente de las autoridades de
Asunción"...
Por essas e outras razões, partem de São Paulo os soldados espanhóis sem que se consiga realizar qualquer acordo nem se delinear qualquer coisa que se pareça ao menos com uma esperança.
Continua proibido o caminho de São Paulo, de onde, aliás, como afirma Hernandarias, vienen y van gentes. E, apesar de, ainda em 1607, o grande "criollo" continuar pedindo ao rei la autorización del comercio con el Brasil, a
idéia fracassa e era uma vez um lindo sonho embalado por duas populações, durante anos, lindo sonho que irá acabar mais tarde como um pesadelo, com as ousadas incursões dos "encommenderos" até ao planalto de Piratininga e o remendo furacão
desencadeado pelos mamelucos sobre o Guairá.
Mercador forasteiro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro
[1] Segundo um documento da Biblioteca de Buenos Aires consultado pelo historiador
paraguaio Ramón I. Cardoso, em 1575 Vila Rica já estava fundada, "Ruy Diaz de Melgarejo no hizo otra cosa que legalizar la fundación ya echa..." (El Guairá, pág. 55).
[2] Ramón I. Cardozo, "El Guairá", pág. 100.
[3] Capitania.
[4] "Historia del Paraguay" pelo P. P. Lozano, tomo II, pág. 380 e "Argentina",
p. Ruy Diaz de Guzmán, L. II, cap. XV, cit. p. Ramón I. Cardozo.
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