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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [18]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[18] O vinho e as doenças

Vinho bom e vinho ruim - Os mercadores e os oficiais da Câmara - Doenças, médicos e remédios - As peroleiras de Afonso Gomes - A grande panacéia do tempo

escendentes de lusitanos cujo amor ao bom vinho não é lícito pôr em dúvida, entregam-se os paulistas ao cultivo da vinha que, aqui e ali, reponta nos inventários e aparece nas atas. E dessa cultura surge, naturalmente, uma pequena indústria: o fabrico do vinho.

Consome-se vinho, larga e abundantemente, em São Paulo do Campo. E esse consumo contribui para que o comércio da vila tome uns aspectos importantes, não devido ao produto da terra, em geral azedo, mas também ao vinho do Reino, muito apreciado por todos e, principalmente, pelos negociantes que realizam o inverso do milagre bíblico, transformando-o em água.

Nas lojas e nas tendas vende-se o vinho em pipas, barris, peroleiras e botijas. É costume, também, vende-lo a retalho, às medidas e às canadas, embora a Câmara tenha que intervir, às vezes, para que os comerciantes não se furtem à regra, com prejuízo do povo.

Mas não é apenas dessa forma que os lojistas lesam a população. A esperteza sempre foi onímoda e, assim, furta-se na medida, furta-se no preço e furta-se na resistência ao fisco.

Antes de ser posto à venda, o vinho tem o seu preço regulamentado por um almotacel que o avalia, as medidas são examinadas e marcadas pela Câmara, e o imposto de consumo, em taxas que vão de cem a duzentos réis, religiosamente pago aos senhores oficiais, sob garantia de um fiador.

Tudo isso é minuciosamente regulamentado pela Câmara, mas tudo isso é minuciosamente fraudado pelo comércio. Daí, naturalmente as contínuas providências da Câmara contra vendeiros, taverneiros e mercadores mais espertos, para que "ninguem venda vinho sen for visto pellos ofisiais da dita camara e que ninguem venda vinho sen llisensa pera lhe por preço ao bom como bom e ao ruim como ruim". Essa história de bom como bom e ruim como ruim tem toda a razão de ser e o meu provável leitor a compreenderá de pronto, sabendo, pelo depoimento dos senhores conselheiros, que nesta vila havia muitas tavernas em as quais se vendia vinho muito ruim e muito caro por medidas muito ruins e pequenas...


Homem de roupeta com bandas de passamanes, calções e botas
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Contudo, apesar de venderem caro o seu vinho detestável, há vendeiros que, visando maiores lucros, preferem vendê-lo em pipas ou peroleiras, negando-se a cede-lo a retalho, às patacas, mesmo quando esse vinho já está a caminho de ser vinagre.

O povo, logicamente, queixa-se, pois essa é a sua função principal neste vale de lágrimas. Felizmente, porém, há quem lhe ouça os queixumes e, mais do que isso, quem tome resolutamente o seu partido: a Câmara.

Reunem-se, em tais circunstâncias, os senhores oficiais e, "sabendo-se que este povo se queixava em como algumas pessôas nesta villa tinham vinho do reino e o vendiam as peroleiras por quantia de quatro mil réis cada uma, com que os pobres que os não podiam comprar pereciam por se não vender miúdo ao povo em que todos tivessem seu quinhão" resolvem os "homens bons da governança", sem a menor hesitação, que aqueles cavalheiros cumpram suas ordens, isto é: vendam a retalho, pelo miúdo, caso não queiram incidir na multa de seis mil réis.

Não cause espanto a declaração do senhor procurador do Conselho afirmando que o povo perecia por não poder comprar vinho pelo miúdo. Isso, que poderá parecer exagero de funcionário em função da defesa pública, é apenas uma verdade que, mais adiante, se explicará. Mas o exagero funcional existe. Os senhores oficiais da Câmara não querem saber de outra coisa senão da defesa intransigente do "bem comum", o que os leva, não poucas vezes, a determinar o preço de certos artigos, avaliando-os muito por baixo para, depois, fazerem nova avaliação, de acordo com a realidade das coisas.

Sendo inúmeros os vinhedos nos sítios da vila, sendo relativamente grande o fabrico local de vinho e não sendo pequena a importação do artigo português, a primeira impressão que se tem de tudo isso é esta: os paulistas do seiscentismo são bebedores inveterados.

A verdade, contudo, não é exatamente assim.

E não é assim porque o vinho, exercendo funções terapêuticas, como cauterizante ou como veículo de qualquer droga ou planta medicinal, é empregado largamente na ciência de curar. Esta é, ao tempo, das mais rudimentares e, exercida a princípio pelos religiosos da Companhia de Jesus, vai acabar depois nas mãos inábeis dos Fígaros ou dos cidadãos que estejam na posse de aparelhos de pequena cirurgia.

É possível que nem todos depositem excessiva confiança nesses Curvos Semedos improvisados, eméritos aplicadores de termocautérios e grandes autoridades em purgas e sangrias: Mateus Leme, com sua caixa de boticas; Manuel Fernandes Sardinha, com seu estojo de lancetas; João da Costa com suas seis lancetas, pinça e um cautério, além de um boticão e seis escarnadores. As intervenções cirúrgicas praticadas por esses dilettanti devem andar muito próximas dos suplícios chineses, apesar de o bandeirante não ser muito sensível ao sofrimento físico.

Isso, contudo, não é razão para que os leigos deixem de intervir nos males alheios, pois é da sabedoria popular que, "de médico e de louco todos nós temos um pouco".

A Câmara, porém, não admite.

E, ainda antes de iniciar-se o seiscentismo, precisamente a 16 de agosto de 1579, trata de cortar as raízes do exercício ilegal da medicina, com providências que lhe parecem definitivas e categóricas:

"E logo assentaram entre todos que, porquanto nesta vila havia muitas pessôas que de fóra vinham e outros que não eram examinados curavam feridas e faziam sangrias por toda a terra e que pois havia na vila Antonio Rodrigues barbeiro e homem experimentado e examinado, que era bem faze-lo Juis do ofício e que sem sua ordem e sem ser visto todo o que assim curar não possa fazer nem usar da dita cura e sangrias sem sua licença e carta de examinação, salvo que em suas casas o faz e mostrem o fazer por necessidade ou em negocio e caso fortuitos não sendo achado o dito Antonio Rodrigues farão as ditas curas e sangrias pessoas que o souberem fazer; e para este efeito apareceu logo o dito Antonio Rodrigues e recebeu o juramento dos Santos Evangelhos sobre um livro deles da mão do vereador Antonio Proença e prometeu de usar e fazer o dito seu ofício bem e fielmente..."

Esse prestimoso barbeiro, que se investe, assim, de tão altas funções, parece ser o primeiro cirurgião da vila a exercer seu mister com tão honrosas credenciais. O mesmo, porém, já se não pode dizer de Custódio de Sousa Tavares, que curava na vila sem licença nem carta de examinação sendo que meteu petição para curar e se lhe não deu licença, pelo que é intimado, sob as penas da lei, a suspender suas atividades clínicas e cirúrgicas. Em verdade, parece não ser necessário o acúmulo de grandes conhecimentos científicos para pôr em prática a trilogia terapêutica de então: purga, sangria e clister, tão pitorescamente registrada por Molière:

Clysterium donare
Postea saignare
Ensuita purgare.

É o que deve ter feito, sem dúvida alguma, aquele minucioso Paulo Rodrigues Brandão que, em 1633, cura as feridas da perna de um dos filhos menores da dona viúva Maria de Barros e não se esquece de, segundo confessa, dar-lhe o azougue - talvez alguma pomada mercurial, porque o cirurgião, aí, é doublé de farmacêutico.


Mulher de baeta
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Outro que, ao tempo, acumula funções é João da Costa - físico e dentista. Casado com uma filha de Domingos Luís, o Carvoeiro, fundador da igreja de N. S. da Luz, João da Costa, certo dia, abandona as "profissões" e, levado por um desgosto de família, vai acabar como ermitão da igreja de Santo Antônio...

Mas, nós vínhamos conversando sobre o vinho e, insensivelmente tomamos rumo diferente.

Diferente mas paralelo, pois, como dissemos, o vinho é usado como remédio, servindo de veículo a drogas ou plantas medicinais ou então, em fricções e cauterizações na sua fermentação acética, como vinagre.

Daí, encontrar-se tanto vinho em São Paulo, salvo nos momentos em que negociantes espertos procuram açambarcar o produto, sonegando-o aos almotacéis, escondendo-o dos próprios amigos, mas acabando escobertos como aquele espertíssimo Afonso Gomes, do qual se fala na ata de 31 de julho de 1649:

"... pelo procurador foi requerido que estava nesta vila muito falta de vinho para as necessidades das doenças e males que nesta dita vila haviam e que em casa de Afonso Gomes estavam algumas peroleiras de vinho do Reino e que os ditos oficiais o mandassem vir a esta Câmara para que declarasse a quantidade que tinha e o vendesse almotaçado para que todos o alcançassem, assim ricos como pobres."

Vê-se por aí, claramente, que o vinho é o grande remédio para as necessidades das doenças e males que nesta vila haviam. É evidente, também, que se trata de males físicos e não morais, e é bom deixarmos claro esse ponto, já que é hábito dos beberrões inveterados alegarem, compungidamente, que bebem para curar os males da alma ou as doenças da ingratidão...

Não. Tanto não é assim que, entre os papéis do inventário de Martim Rodrigues, se encontra um conhecimento, no qual se declara que o recém-falecido deve "meia pataca de vinho para lhe curarem as feridas".

Se é verdade que meia pataca não dá para embebedar ninguém, não é crível que o velho espanhol de Piratininga bebesse para curar... as feridas do coração. O vinho pode curar as feridas da alma. Mas, indiscutivelmente, cura também os males do corpo.

Contudo, apesar de tantos cirurgiões e físicos com cartas de examinação, de tantas purgas, sangrias, clisteres e cautérios, o bandeirante resiste aos "tratamentos" e atinge idades avançadas, não sendo poucos os casos de longevidade no planalto. E, tanto não é muita a confiança que se deposita nos pernósticos esculápios, que acontecem coisas como as contidas neste início de testamento:

"Saibam quantos esta cédula de testamento virem, em como eu Belchior Martins estando enfermo de uma mordedura de uma cobra, e posto nas mãos do Senhor..."

Realmente, é preciso muito pessimismo e uma grande descrença nos conhecimentos científicos dos físicos e cirurgiões para, à simples mordedura de uma cobra, colocar-se nas mãos do Senhor, num "consumatum est" doloroso, triste, irremediável...


FEIRA LIVRE - "...Proveu que nesta villa se venda os generos da terra e hortaliça e peixe na praça e terreiro da Misericordia livremente, sem almotaçaria sendo na praça, e sendo na vendagem se almotaçará; e é em augmento e grandeza da terra haver praça e Ribeira." (Atas, VII, 605)
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


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