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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [16]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[16] Os que tocam viola

"Guarapevas" e "Caxambus" - "Bailes de escravos atentados contra o serviço de Deus" - Homens austeros e gente triste - Violeiros e citaredos - Onde surge Bluteau para desiludir-nos...

leitura dos "Inventários e Testamentos" revela-nos, entre tanta coisa curiosa, como um descerrar de pesadas cortinas, o amor do paulista pela música, apesar do período tumultuário que atravessa no século XVII.

É verdade que, dado o quase isolamento em que vive o bandeirante, numa vila que se ergue longe do litoral, à boca do sertão, tendo de permeio o tremendo obstáculo que é a Serra do Mar, não lhe é fácil estar em mais íntimo contato com a Corte e o Reino. Disso decorre, naturalmente, o fato de não se encontrarem no altiplano certos indícios de progresso já visíveis nas vilas litorâneas.

O paulista do seiscentismo, áspero e rude, de índole acentuadamente ruralista, prezando a roça mais que a cidade - a ponto de a vila viver continuamente deserta - tem, contudo, seus momentos líricos. E é, certamente, nesse instante de sentimentalismo que o bandeirante, fugindo por momentos ao irresistível fascínio das selvas, empunha o violão e canta.

Canta?

Talvez. Cantam seus avós bronzeados, ao som de inúbias e maracás, e cantam seus avós brancos, tangendo guitarras. Canta, também, o rude mameluco no seu vilarejo triste, à hora triste das ave-marias, quando o sino do Colégio enche de sons côncavos o céu violáceo de Piratininga?

Na vila, os índios, se não cantam, ao menos se divertem com seus instrumentos bárbaros, tangendo a guarapeva, chocalhando maracás, rufando uaís, assoprando torés. Os poucos tapanhunos marcam seus batuques ao som bambo e rouco de adufos e caxambus.


Candeeiro de 4 bicos
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Podem tocar. Dá-se-lhes licença para que o façam.

Mas não podem dançar, desconjuntando-se em batucadas desrespeitadoras. Quando o fazem, lá se ergue um oficial da Câmara para fulminar a heresia, com palavras ásperas e penalidades irrecorríveis, como ocorre não poucas vezes.

"... E requereu mais o dito procurador que se fizesse acordo sobre o gentio que nesta vila fazem bailes de noite e de dia, porque nos ditos bailes sucediam muitos pecados mortaes e insolencias contra o serviço de Deus e contra o bem commum commettendo fugas e levantes e outras coisas que não declarava por não serem decentes. E visto o dito requerimento accordaram os ditos oficiais da camara que, antes da missa do dia nem da noite não houvessem os ditos bailes sob pena do dono do negro ou da negra que for achado nos taes bailes pagar cem reis por cada negro ou negra que for achado..." (Atas - 21-10-1623).

A ata não nos esclarece se esses "negros" são do gentio da terra ou do gentio da Guiné. É de crer, contudo, que se tratasse destes últimos, pois só o africano, com seus batuques lascivos, poderia escandalizar os austeros senhores do Conselho. O índio, geralmente, não bailava para escandalizar os brancos. Dançava para come-los...

Há em São Paulo, nessa centúria quase misteriosa, alguns instrumentos musicais, encontradiços, aqui e ali, nos espólios dos bandeirantes.

Instrumentos de gente pobre, não se nos depara nenhum cravo, nenhuma espinheta, nenhum clavicórdio. Dos instrumentos nobres, só nos aparece uma harpa. Porque o que se vê mais na vila, no seu mundo musical, são as violas.

Afonso Dias de Macedo, segundo se registra no seu inventário, possui umas violas de pinho do reino. Afonso deve ser lojista ou, então, um melômano inveterado, pois não se contenta apenas com um "pinho".

Sebastião Pais de Barros também possui sua viola, instrumento que aparece, ainda, nos episódios de Isabel Beldiaga e João do Prado, sendo que a deste possui oito tastos de cordas, como o acentua o meticuloso inventariante.

O sexo frágil também gosta de música e, se não pode dedilhar uma cítara, como Santa Cecília, contenta-se com possuir instrumento mais acessível. E é assim que a senhora Paula Fernandes deixa, ao morrer, uma guitarra - talvez... soidades de Portugal.

Falamos em cítara e ocorre-nos a pergunta: existirão citaredos em Piratininga?

Percorrem-se os inventários e eis que, no desnorteante bricabraque das fazendas que ficaram dos defuntos, surgem duas cítaras: uma, pertencente a Francisco Ribeiro e outra, a Francisco Leão. Como Apolo na velha Hélade, tangendo sua khitara, envolto na sua magnífica clâmide purpúrea, surgem nos ásperos campos de Piratininga dois olímpicos citaredos, a dedilhar as cordas do divino instrumento! É o que acreditamos, é o que desejamos e, todavia, surge nesse caso um "mas", adversativa malevolamente posta no fim das nossas róseas suposições por um lexicógrafo que não conhece o "manto diáfano da fantasia".

O destruidor de ilusões é Bluteau, rigoroso cicerone setecentista que, no último volume do seu "Vocabulário", na palavra viola, afirma, com autoridade que ninguém lhe contesta:

VIOLA - "Instrumento musico de cordas. Tem corpo concavo, costas, tampo, espelho e cavallete para prender as cordas e pastana para os dividir" etc. etc. "Chamão-lhe comumente Cithara posto que o instrumento que os Latinos chamarão Cithara podia ser muito diverso do que chamamos viola".

E aí está! Chamam comumente cítara à viola!

Seja tudo pelo amor de Santa Cecília...

Mas - dir-se-á, à guisa de consolação: se não há cítaras, há uma harpa, o instrumento dos anjos, a inspiradora suprema de Davi, a enamorada de Éolo nos seus sussurros apaixonados...

O Davi de Piratininga, dono da melodiosa preciosidade, é Sebastião Pais de Barros. A harpa de Sebastião, contudo, deve ser apenas a sombra de uma harpa, pelo muito que a tocaram e a maltrataram. Tanto que, ao ser feito o inventário do rude capitão, é ela avaliada em 160 réis, o que, positivamente, é uma humilhação sem nome para tão nobre instrumento!

Será mesmo uma harpa?

Não pode ser outra coisa: uma harpa com sua chave que se avaliou em 160 réis.

Cento e sessenta réis por uma harpa enquanto, do mesmo Sebastião Pais de Barros, se avalia uma viola em 2$000.

Não falemos mais nela, que, em tão pífia avaliação, é como se não existisse. O que existe, o que aparece, o que domina, é a viola. Todos a seqüestram, todos a estimam...

Todos, não. Há na vila um homem original: é o soldado Manuel Chaves que possui uma raridade - o único pandeiro que aparece nos inventários. E, apesar de a harpa de Sebastião ter chaves, Chaves não quer saber de harpa. Após a faxina dura, ele, sobre o seu catre solitário, espanta as mágoas tocando pandeiro...


Chapins de Valença, com dupla sola de cortiça
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


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