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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTIVA x FRANCO
Navio de Jorge Amado viaja no tempo (1)

Recusa dos estivadores santistas de embarcar café para o ditador espanhol Franco ocorreu em 1946, mas o escritor deslocou a história para 1938
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No livro Agonia da Noite, segundo volume da trilogia Os subterrâneos da liberdade (Editora Record, Rio de Janeiro/RJ, 32ª edição, 1980), que teve sua primeira edição em maio de 1954, o escritor baiano Jorge Amado começa a contar, logo no primeiro capítulo, a história de como os estivadores santistas se recusaram a carregar um navio com café oferecido pelo governo brasileiro à Espanha (então dominada pelo ditador Francisco Franco Bahamonde). Esta é a versão do escritor:
 
Ia o negro Doroteu, com sua negra Inácia, pela beira do cais. Era o cais de Santos, os armazéns das docas a se perderem de vista, repletos de sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão. Trilhos, automóveis, geladeiras, rádios, máquinas estranhas, conservas e frutas desciam nos guindastes, trazidos do bojo profundo dos porões escuros dos negros cargueiros ancorados no porto.

Um cheiro doce de maçãs maduras se misturava ao salgado odor do mar, na lânguida noite tropical, envolvente e morna, cortado por um vento fino chegado de distantes paragens.

Também a melodia melancólica de uma canção marítima se mesclava ao barulho ensurdecedor dos guindastes, dos gritos de marinheiros e estivadores, dos apitos saudosos dos navios abandonando a orla do cais em busca do mar-oceano mais além do porto. De quando em vez, uma nota mais alta da canção se sobrepunha a todo o ruído e vibrava no ar, fazendo mais ligeira a carga nos ombros dos doqueiros. Era uma canção em língua estranha, impossível entender o que ela dizia, mesmo se pudessem distintamente ouvir todas as suas palavras, mas cada um sabia - os doqueiros, os marinheiros de diversas raças, os ensacadores, mesmo os empregados da Alfândega - tratar-se de uma canção de amor, feita de distância e de aflito anelo.

Mais que todos o adivinhava o negro Doroteu, andando ao lado de sua negra Inácia. Para ele, as canções não tinham segredos, ele podia penetrar-lhes o sentido mais misterioso mesmo quando não entendia a língua do marinheiro improvisado em cantor, desabafando para as luzes da cidade de Santos a sua saudade da mulher um dia encontrada e logo perdida em Xangai ou Constanza, em Nova York ou Guaiaquil, em Amsterdam ou Istambul.

Dele era o sábio conhecimento das canções do mar, das bandeiras dos navios e da variada cor das águas no correr do dia. Desses mistérios falava o negro Doroteu à sua negra Inácia quando juntos, nas noites sem trabalho, atravessavam o cais imenso, trocando juras de amor, contando e ouvindo histórias, assoviando canções, rindo para todos, pois rir era o maior prazer tanto do negro Doroteu quanto da sua negra Inácia.

[...] Certa vez fundeara ao largo, ante as praias magníficas, um barco de armada e jamais entrevista bandeira. As autoridades não lhe tendo permitido sequer o acesso ao porto, eles vieram todos para a praia saudar a bandeira vermelha da foice e do martelo, aquela que conduz consigo a estrela do amanhã. À frente de todos veio o negro Doroteu com sua negra Inácia e, quando a noite chegou, eles acenderam pequenas lanternas marítimas e com elas acenavam, em signos de amor e solidariedade, para a bandeira, e o navio, para o comandante e os marinheiros, para o distante mundo do outro lado da terra, de onde vinha, cortando os mares, aquele proibido barco soviético.

Foi como uma festa de luzes brilhando sobre as areias, e naquela noite os ricaços nacionais e os gringos turistas não tiveram sequer coragem de aparecer na praia. Mesmo junto às protegidas mesas de roleta e bacará suas mãos tremiam, amedrontadas, ao lançar as fichas nas apostas, medo do barco e das lanternas, medo da vermelha bandeira soviética.

[...] Iam os dois, o negro Doroteu com sua negra Inácia, pela beira do cais, na noite de Santos, de café e bananas, guindastes e navios. E mais que nunca riam um para o outro, e para toda a gente que passava, mesmo para os apressados passageiros desembarcados tardiamente de um transatlântico vasto como uma cidade, porque a negra Inácia vinha de revelar ao seu negro Doroteu, escondendo a cabeça em seu peludo peito, que sua barriga ia crescer, nela começava uma vida a florescer, nascida daquele amor em festa da formosa negra Inácia e do risonho negro Doroteu.

[...] Iam de grupo em grupo e até um nome já haviam escolhido para o menino, se um menino fosse e não uma negrinha: se chamaria Luís Carlos, como Prestes; naqueles anos e nos que se sucederam os estivadores de Santos não botavam outro nome em seus filhos que o do revolucionário preso e condenado. Por essas coisas, Santos era designada pelo país afora como a "cidade vermelha", e os policiais olhavam com desgosto e desconfiança aquele mundo da beira do cais, aqueles homens rudes e fortes curvados sob os sacos de café, montados sobre os guindastes, desaparecidos nos porões dos navios, na carga e na descarga.

[...] E veio Pepe, o espanhol das navalhadas, fumava uma ponta de cigarro, prendeu o negro Doroteu entre seus braços fortes, deu os parabéns à negra Inácia. Vieram muitos e muitos, veio toda a gente do cais, parecia até que vinham para um daqueles comícios antifascistas agora proibidos, tão alegres chegavam e estendiam as mãos calosas ao negro Doroteu e à sua negra Inácia.

Tantos eram já em torno aos dois, que os policiais de ronda se inquietaram. Mas, como começara a cantar a gaita melodiosa do negro Doroteu, escondida em sua mão enorme sobre a boca, eles disseram entre si tratar-se de uma improvisada festa onde era melhor não se meterem, pois os doqueiros de Santos não amam a polícia e não gostam de ver policiais envolvidos em seus jogos e folguedos. E não vale a pena brincar com esses sentimentos de amor e ódio dos estivadores do porto vermelho de Santos, eles têm o sangue quente e ágil a mão sobre a navalha.

[...] O apito de um cargueiro entrando no porto cortou a música do samba do negro Doroteu, o passo da dança de sua negra Inácia. O vulto negro do barco surgia lentamente, e eles todos, doqueiros, marinheiros, ensacadores, passantes e a negra Antônia que vendia doces, o fitaram e ficaram sérios de repente. O negro Doroteu largou sua gaita mágica, era um conhecedor profundo das bandeiras, sabia distingui-las todas umas das outras. Confirmou o receio dos demais quando seus olhos distinguiram antes de todos, na popa do cargueiro agora perpendicular a eles nas manobras para fundear, o odiado trapo, a bandeira imunda, o estandarte abjeto.

O velho Gregório respirou fundo:

- Ele está aí. Mas não leva o café, ah!, isso não leva, que ainda há homens no cais de Santos, Deus seja bendito...

- É o barco alemão... - repetiu Doroteu, e até seu filho que ia nascer ele tinha esquecido e sua mão que segurava a gaita de boca, sua mão enorme, se fechou ameaçadora. O espanhol Pepe fez-se mais sombrio, cuspiu com força, seus olhos se apertaram.

Há dias haviam começado a circular notícias que os estivadores de Santos se recusariam a carregar o navio que viesse em busca do café oferecido a Franco pelo Estado Novo. O café enchia os armazéns, milhares e milhares de sacas, mas o navio para transportá-lo não aparecia. Um dia se soube que um barco nazista viria pela carga. Mas não o esperavam tão rapidamente e a reunião do sindicato ainda não fora feita.

[...] Pelo cais, homens iam de grupo em grupo, murmuravam-se cochichos, os olhos se estendiam para o barco negro. Ali mesmo se acertava sobre a reunião do sindicato, e, mais ativos que todos, eram os doqueiros espanhóis, a Franco se destinava o café acumulado nos armazéns. O sopro da greve se estendia sobre o mar, na montanha próxima um trovão ressoou anunciando tempestade. Quase correndo, em busca da casa de Oswaldo, saía do cais de Santos o negro Doroteu com sua negra Inácia.[...]

É importante notar que o episódio assim descrito ocorreu efetivamente em 1946, na gestão do presidente Eurico Gaspar Dutra, mas Jorge Amado, em sua ficção, o deslocou para 1938, como sendo a primeira greve do Estado Novo de Getúlio Vargas. Os navios (eram dois) pertenciam ao regime ditatorial franquista, e no romance foram sintetizados em uma embarcação, agora nazista.

A esse respeito, o jornalista, professor e escritor gaúcho Janer Cristaldo cita, em seu artigo A grande prostituta:

"(...) A coincidência da instituição do Estado Novo com a explosão da Guerra Civil Espanhola é uma oportunidade única para Amado de inserir seus personagens no conflito internacional que redundaria na II Guerra, expondo ao mesmo tempo a linha do Partido.

Tão única é esta oportunidade e tanto o autor quer aproveitá-la, que chega a deslocar para 1938 uma greve dos portuários de Santos, efetivamente ocorrida em 1946, o que aliás provocou um certo debate. Estaria Amado realmente sendo fiel ao método que 'exige do artista uma representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário', conforme proclamavam os estatutos da União de Escritores Soviéticos?

Ao autor isto pouco importa. Deslocando a greve para 38, pode criar um navio alemão que vem buscar, no Brasil, café para a Espanha. De uma só tacada, Amado fustiga Hitler, Getúlio e Franco: 'Em algumas palavras (o velho Gregório) historiou o motivo por que a direção do sindicato havia convocado essa sessão: o governo oferecera ao general Franco, comandante dos rebeldes espanhóis ('um traidor', gritou uma voz na sala), uma grande partida de café. Agora se encontrava no porto um navio alemão ('nazista', gritou uma voz na sala) para levar o café.'

Na Guerra Civil Espanhola, segundo Amado, há apenas 'nazistas alemães e fascistas italianos'. Tão pródigo em elogios a Stalin e à União Soviética, em sua trilogia o autor silencia sobre a presença russa na Espanha, constituída por pilotos de guerra, técnicos militares, marinheiros, intérpretes e policiais.

A primeira presença estrangeira em terras de Espanha foi a soviética, com o envio de material bélico e pessoal militar altamente qualificado, em troca das três quartas partes (7.800 caixas, de 65 quilos cada uma) das reservas de ouro disponíveis pelo Banco de España. Pagos adiantadamente.

Silêncio de Amado: a representação veridicamente concreta da realidade no seu desenvolvimento revolucionário pode esperar mais um pouco. (...)"

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