Ia o negro Doroteu, com sua negra Inácia, pela beira do
cais. Era o cais de Santos, os armazéns das docas a se perderem de vista, repletos de sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão.
Trilhos, automóveis, geladeiras, rádios, máquinas estranhas, conservas e frutas desciam nos guindastes, trazidos do bojo profundo dos porões escuros
dos negros cargueiros ancorados no porto. Um cheiro doce de maçãs
maduras se misturava ao salgado odor do mar, na lânguida noite tropical, envolvente e morna, cortado por um vento fino chegado de distantes
paragens.
Também a melodia melancólica de uma canção marítima se mesclava ao barulho
ensurdecedor dos guindastes, dos gritos de marinheiros e estivadores, dos apitos saudosos dos navios abandonando a orla do cais em busca do
mar-oceano mais além do porto. De quando em vez, uma nota mais alta da canção se sobrepunha a todo o ruído e vibrava no ar, fazendo mais ligeira a
carga nos ombros dos doqueiros. Era uma canção em língua estranha, impossível entender o que ela dizia, mesmo se pudessem distintamente ouvir todas
as suas palavras, mas cada um sabia - os doqueiros, os marinheiros de diversas raças, os ensacadores, mesmo os empregados da Alfândega - tratar-se
de uma canção de amor, feita de distância e de aflito anelo.
Mais que todos o adivinhava o negro Doroteu, andando ao lado de sua negra Inácia. Para
ele, as canções não tinham segredos, ele podia penetrar-lhes o sentido mais misterioso mesmo quando não entendia a língua do marinheiro improvisado
em cantor, desabafando para as luzes da cidade de Santos a sua saudade da mulher um dia encontrada e logo perdida em Xangai ou Constanza, em Nova
York ou Guaiaquil, em Amsterdam ou Istambul.
Dele era o sábio conhecimento das canções do mar, das bandeiras dos navios e da
variada cor das águas no correr do dia. Desses mistérios falava o negro Doroteu à sua negra Inácia quando juntos, nas noites sem trabalho,
atravessavam o cais imenso, trocando juras de amor, contando e ouvindo histórias, assoviando canções, rindo para todos, pois rir era o maior prazer
tanto do negro Doroteu quanto da sua negra Inácia.
[...] Certa vez fundeara ao largo, ante as praias
magníficas, um barco de armada e jamais entrevista bandeira. As autoridades não lhe tendo permitido sequer o acesso ao porto, eles vieram todos para
a praia saudar a bandeira vermelha da foice e do martelo, aquela que conduz consigo a estrela do amanhã. À frente de todos veio o negro Doroteu com
sua negra Inácia e, quando a noite chegou, eles acenderam pequenas lanternas marítimas e com elas acenavam, em signos de amor e solidariedade, para
a bandeira, e o navio, para o comandante e os marinheiros, para o distante mundo do outro lado da terra, de onde vinha, cortando os mares, aquele
proibido barco soviético.
Foi como uma festa de luzes brilhando sobre as areias, e naquela noite os ricaços
nacionais e os gringos turistas não tiveram sequer coragem de aparecer na praia. Mesmo junto às protegidas mesas de roleta e bacará suas mãos
tremiam, amedrontadas, ao lançar as fichas nas apostas, medo do barco e das lanternas, medo da vermelha bandeira soviética.
[...] Iam os dois, o negro Doroteu com sua negra Inácia,
pela beira do cais, na noite de Santos, de café e bananas, guindastes e navios. E mais que nunca riam um para o outro, e para toda a gente que
passava, mesmo para os apressados passageiros desembarcados tardiamente de um transatlântico vasto como uma cidade, porque a negra Inácia vinha de
revelar ao seu negro Doroteu, escondendo a cabeça em seu peludo peito, que sua barriga ia crescer, nela começava uma vida a florescer, nascida
daquele amor em festa da formosa negra Inácia e do risonho negro Doroteu.
[...] Iam de grupo em grupo e até um nome já haviam
escolhido para o menino, se um menino fosse e não uma negrinha: se chamaria Luís Carlos, como Prestes; naqueles anos e nos que se sucederam os
estivadores de Santos não botavam outro nome em seus filhos que o do revolucionário preso e condenado. Por essas coisas, Santos era designada pelo
país afora como a "cidade vermelha", e os policiais olhavam com desgosto e desconfiança aquele mundo da beira do cais, aqueles homens rudes e
fortes curvados sob os sacos de café, montados sobre os guindastes, desaparecidos nos porões dos navios, na carga e na descarga.
[...] E veio Pepe, o espanhol das navalhadas, fumava uma
ponta de cigarro, prendeu o negro Doroteu entre seus braços fortes, deu os parabéns à negra Inácia. Vieram muitos e muitos, veio toda a gente do
cais, parecia até que vinham para um daqueles comícios antifascistas agora proibidos, tão alegres chegavam e estendiam as mãos calosas ao negro
Doroteu e à sua negra Inácia.
Tantos eram já em torno aos dois, que os policiais de ronda se inquietaram. Mas, como
começara a cantar a gaita melodiosa do negro Doroteu, escondida em sua mão enorme sobre a boca, eles disseram entre si tratar-se de uma improvisada
festa onde era melhor não se meterem, pois os doqueiros de Santos não amam a polícia e não gostam de ver policiais envolvidos em seus jogos e
folguedos. E não vale a pena brincar com esses sentimentos de amor e ódio dos estivadores do porto vermelho de Santos, eles têm o sangue quente e
ágil a mão sobre a navalha.
[...] O apito de um cargueiro entrando no porto cortou a
música do samba do negro Doroteu, o passo da dança de sua negra Inácia. O vulto negro do barco surgia lentamente, e eles todos, doqueiros,
marinheiros, ensacadores, passantes e a negra Antônia que vendia doces, o fitaram e ficaram sérios de repente. O negro Doroteu largou sua gaita
mágica, era um conhecedor profundo das bandeiras, sabia distingui-las todas umas das outras. Confirmou o receio dos demais quando seus olhos
distinguiram antes de todos, na popa do cargueiro agora perpendicular a eles nas manobras para fundear, o odiado trapo, a bandeira imunda, o
estandarte abjeto.
O velho Gregório respirou fundo:
- Ele está aí. Mas não leva o café, ah!, isso não leva, que ainda há homens no cais de
Santos, Deus seja bendito...
- É o barco alemão... - repetiu Doroteu, e até seu filho que ia nascer ele tinha
esquecido e sua mão que segurava a gaita de boca, sua mão enorme, se fechou ameaçadora. O espanhol Pepe fez-se mais sombrio, cuspiu com força, seus
olhos se apertaram.
Há dias haviam começado a circular notícias que os estivadores de Santos se recusariam
a carregar o navio que viesse em busca do café oferecido a Franco pelo Estado Novo. O café enchia os armazéns, milhares e milhares de sacas, mas o
navio para transportá-lo não aparecia. Um dia se soube que um barco nazista viria pela carga. Mas não o esperavam tão rapidamente e a reunião do
sindicato ainda não fora feita.
[...] Pelo cais, homens iam de grupo em grupo,
murmuravam-se cochichos, os olhos se estendiam para o barco negro. Ali mesmo se acertava sobre a reunião do sindicato, e, mais ativos que todos,
eram os doqueiros espanhóis, a Franco se destinava o café acumulado nos armazéns. O sopro da greve se estendia sobre o mar, na montanha próxima um
trovão ressoou anunciando tempestade. Quase correndo, em busca da casa de Oswaldo, saía do cais de Santos o negro Doroteu com sua negra Inácia.[...] |