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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (13)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V, Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Um Salomão indígena

"Las mujeres de buen parecer, solteras,

casadas o gentiles el dueno las encerraba consigo

 en un aposento con quien passava las noches

al modo que un cabron en un corral de cabras".

Montoya

Creia vossa Paternidade que é certo. Paschal Barrufo, que todo o mundo vê nos primeiros bancos da Matriz, é o mais relaxado de todos!

Nóbrega abanou lentamente a cabeça grisalha, numa dúvida que toldava os seus olhos miúdos.

- Talvez. Mas muito falso testemunho também se levanta. E Vossa Mercê não viu. É como se lhe dissessem...

- Mas foi homem de abono quem assim me afirmou - rosnou Belizario Velho, torcendo o sombrero preto nas mãos encardidas. - Seus desmandos já são conhecidos - acrescentou.

Tratava-se de Paschoal Barrufo, homem de estima e bem afazendado. Por todo Iperoig, desde Itanhaém até Bertioga, por toda a orla do litoral vicentino, não havia ninguém melhor afazendado e de tão fartos arcos como Paschoal Barrufo.

Senhor de bons engenhos, com escravatura pingue e escolhida, era homem para meter facilmente quinhentas caixas de açúcar no porão de um brigue e alinhar oitocentas pontas de lança em cima da taipa grossa de um fortim de vila. Vivia nas suas terras, numa morada de pilão, com sotéias largas, alcovas sombrias, redes de tucum e mochos de sola, bebendo vinho do Reino, caçando a mosquete e servido pela escravatura carijó.

A natureza americana, sob um sol de trópicos, punha ardores novos no sangue peninsular e a fêmea guarani, sensual e amorosa, dava concupiscências fortes nesses temperamentos rudes, resultantes de uma vida meio heróica e meio animal, passada entre a enxada e o mosquete e uma alimentação sinapismante onde entravam forte o pinhão brasileiro e as especiarias da Índia.

- Pois havemos de por em limpo essas falas - resumiu Nóbrega.

Velho levantara-se do tamborete forrado de couro de anta:

- Espere Vossa Paternidade, que será convencido.

- Até domingo lá iremos pedir sopas a Paschoal Barrufo, mais o Martim Proença, o Simão de Sá e o Fernão Mendes. Lá iremos e lá veremos!

***

- Muito bem vindos sejam a esta vossa casa; grande é a honra e muito é o gosto em vos receber!

No patamar de pedra-sabão, Paschoal Barrufo, gordalhudo e tisnado sob a barba preta, esperava de cabelo ao vento e cercado de dois alões pretos.

Fora, no pátio lajeado, Nóbrega e três homens de pelotes pardos apeavam dos machos suados.

- Vimos pedir sopas na fiança de Vossa Mercê - disse Nóbrega, já no terceiro degrau da escada de pedra.

- Muito me honra esta lembrança! - afirmou Barrufo, mostrando os dentes quadrados, cravados como cunhas nas gengivas cor de tomate. Entrai, que prestes estamos para o jantar!

No salão de teto baixo, palmas se cruzavam sob as imagens devotas; flores de romãs pendiam dos vasos da Índia, sobre um console de jacarandá preto.

- Então, como passam Vossas Senhorias, com esses últimos calores?

Nóbrega queixou-se de umas tonteiras pela manhã.

- Humores - sentenciou Simão de Sá -. Vossa Paternidade precisa sangrar-se.

- Ou uma boa purga, recomendou Martim Proença.

- Nada - replicou Fernão Mendes - mezinha para tonteiras, não há como caroços de marmelo na água quente em jejum.

Houve um silêncio em que se ouvia fora o ranger da nora de um poço.

- E por falar em marmelos, farta a colheita lá por seu lado, Fernão Mendes? - perguntou o dono da casa.

- Nem tanto - respondeu o velho, amaciando as barbas.

- Falta de peças para a colheita - afirmou Martim Proença.

Então, todos concordaram que, com a ameaça dos tamoios, despovoava-se todo o litoral.

- Peste de franceses! - resumiu Barrufo. E, batendo as palmas, ia gritar para dentro, apressando o jantar, quando um tapuia magro apareceu para aviar que o jantar estava servido.

- Passe, Vossa Paternidade primeiro, intimou Barrufo, levantando a cortina de pano do Reino para o padre passar.

Na sala, a mesa larga fumegava de viandas; ananases e jacas enchiam os pratos côncavos, e ao lado, junto à parede amolgada e branqueada a tabatinga, dois bofetes de pau preto vergavam sob o peso dos pratos de estanho.

O padre murmurou um Benedicte ligeiro, enquanto os outros se curvavam nos tamboretes de couro.

Um leitão assado fumegava entre concas de barro, e duas garrafas de cristal lapidado rebrilhavam de vinho do Reino.

***

- Mais vinho, Simão de Sá? - perguntou Barrufo.

Simão, com a boca cheia de talhadas de ananases, acenou que sim com a cabeça. Ao lado, Fernão Mendes, afogueado pela digestão lenta no calor das três horas da tarde, desafivelava devagar a cinta de couro...

O jantar findava. Então, já com os olhos brilhantes de vinho e sorrindo sob as barbas pretas, bateu Barrufo as palmas.

- Ainda mais viandas? Eu não agüento mais! - rouquejou Fernão Mendes.

- Nada, respondeu Barrufo, agora é o melhor. É a sobremesa de Vossas Mercês... E mostrou mais os dentes quadrados.

E outra vez bateu as palmas, então da porta do fundo outra vez franziu o pano do Reino de uma cortina; e um bafo morno que cheirava a cravo da Índia e a carne nua arejou a sala.

E, num rumor de pés nus que pisavam esteiras, uma a uma, nuas em pelo, gingando as ancas cor de âmbar, empinando os seios duros de adolescentes ou bamboleando os peitos caídos de mulher madura, umas com o ventre liso, outras com o ventre enrugado de parida, umas sorrindo alvarmente numa lasciva lorpa, outras sérias como no cumprimento de um rito, todas luzindo óleos nos cabelos negros, todas abanando palmas verdes de palmeira, num esfregar de coxas nuas e num bater de contas de colares, desfilaram ante os olhos pasmados dos velhos, as cento e cinqüenta fêmeas, comborças de Paschoal Barrufo.

- Sirvam-se Vossas Mercês... - ofereceu o dono da casa.

Nóbrega levantou-se violentamente, ante a impudência desrespeitosa da exibição e do oferecimento, enquanto Barrufo ria crassamente...


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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