III – Malária
a) Diagnósticos empíricos
Com relação à saúde pública nos primeiros séculos da colonização, pouco se
conhece, pois os cronistas cuidavam mais em registrar os constantes assaltos de que as populações eram vítimas por parte dos piratas franceses,
ingleses e espanhóis e dos índios feros e indomáveis, do que dar tento à mortalidade produzida pelos malefícios do corpo. Naquelas eras, as
populações viviam tão assoladas pelas epidemias que somente quando estas atingiam as raias [de]
calamidades públicas, é que eram consideradas dignas de registro, quase sempre rotuladas de flagelos ou castigos de Deus.
Muitos documentos desse tempo devem ter-se perdido em naufrágios, caído
em mãos dos inimigos da metrópole, ou dormem, ainda, nos arquivos ou em mãos de particulares, de modo que são escassas as notícias sobre a natureza
das moléstias reinantes naquela época heróica, principalmente sobre a malária. "Os próprios jesuítas que tanto fizeram pela nossa terra nos dois
primeiros séculos da colonização, nada nos legaram a respeito das doenças regionais" [3].
Quanto ao obituário produzido pela malária, segundo A. Souza
[4], foram os dados colhidos nos livros de assentamentos da paróquia, então
existentes no Arquivo da Matriz e hoje guardados no Arquivo da Cúria Metropolitana.
No fim deste capítulo é apresentado no quadro nº 2, dos
anos em que se fizeram as estatísticas, o número de habitantes, o número de óbitos ocasionados pela malária, o obituário geral e a percentagem entre
os óbitos ocorridos em conseqüência da malária e o obituário geral.
Em 1858 "o
impaludismo se mostra ausente do obituário da terra de que Saint-Adolphe, em 1842, dizia em cada ano morrerem vitimados por ele um décimo de seus
habitantes" [3].
Em 1883, "pela
primeira vez aparece o impaludismo com mortalidade elevada no obituário santista: 44 óbitos ou o triplo da média de 1850 em diante. Foram casos
ocorridos parte nos sítios, parte nos novos arrabaldes da cidade, nas zonas encharcadas que a população ia ocupando, por falta de lugar na antiga
planície elevada da velha Santos" [3].
"Nos novos
arrabaldes o impaludismo reinava, determinando mortes mais numerosas do que anteriormente sucedia (40 óbitos em 1887), e só com o correr dos tempos,
tendo sido drenados os terrenos da Vila Macuco para o mar e para a Vala Grande e os da Vila Matias
para o Rio dos Soldados, cujo curso foi melhorado, modificaram-se as devastações da malária naqueles recentes núcleos de
população, onde as ruas eram largas e mais bem orientadas" [3].
No ano de "1891, o
mês de janeiro não foi bom, porquanto o impaludismo e o tifo mataram, na cidade, 13 pessoas; em fevereiro, as mesmas doenças fizeram 8 óbitos",
[3], "afora os
causados por várias febres, inclusive uma centena por impaludados e tifo-malária, nos centros urbanos e justamente nos meses em que a doença
epidêmica lavrava com maior intensidade" [3].
Em 1893, a "Comissão de
Desinfecção, mais tarde Comissão Sanitária, iniciou os seus trabalhos em Santos, foi ativada a limpeza pública, assim como a dos terrenos e
quintais, com intimações para o entupimento de poços e de fossas latrinas"
[3].
No ano de 1894 "o
impaludismo continuou a figurar com cifra elevada, 104 no obituário..."
[3].
Referências ao obituário pelo impaludismo passam a ser encontradas somente em 1904. Apesar das notícias que, em 1887, já se esboçavam obras de
saneamento, mais tarde ampliadas pela criação do Saneamento de Santos, o obituário não decresce, mantendo-se ora elevado, ora em um nível
equivalente de ano para ano. Explica-se facilmente esse fenômeno pela expansão da população sempre crescente na cidade de Santos, e que avança para
as zonas malarígenas, sofrendo e pagando o tributo devido por todos os desbravadores.
Guilherme Álvaro
[3] diz: "O
impaludismo aparece com 54 óbitos na estatística de 1904; julgamos que se fôssemos apurar os casos, nem metade deles poderia conservar-se naquela
rubrica mortuária, porquanto no coração da cidade, onde nunca chegar podiam os anofelinos transmissores, ocorreram mortes causadas por tal
doença".
"Foi sempre vezo de toda
gente em Santos, dos médicos inclusive, proclamar a intercorrência palustre em todas as doenças. Ainda há pouco tempo conversando com distinto
colega, clínico daquela época em Santos, ele nos confessou que assim era, e que ninguém tinha a ousadia de contrariar a opinião corrente no
tempo em que chegou a esta cidade e que era a referida".
"Qualquer que fosse a
doença diagnosticada, acrescentou aquele colega, o tratamento era sempre acompanhado da administração de quinina, e ninguém se admirava, tal a força
do hábito, diante dos acessos perniciosos surgidos no centro da cidade. O impaludismo naqueles tempos era o rótulo de todos os casos clínicos
indecifráveis ou complicados como a gripe hoje o é para os análogos. A própria febre tifóide, na maioria dos casos, era tida como
tifo-malária, sendo o tratamento misto de desinfecções intestinais e de quinino".
"Nos arrabaldes distantes
de Santos, principalmente na Ponta da Praia, onde aliás os anofelinos não são raros ainda hoje, havia o impaludismo, como
também ele existia nos limites de Santos e São Vicente, além do Saboó, e na Ilha de
Santo Amaro, quer no lado do Porto, na Bocaina, quer nas praias ladeantes da Vila Balneária de Guarujá".
Este autor [3]
teceu uma série de comentários sobre a existência de casos de malária no perímetro central da cidade, procurando insinuar que uma triagem rigorosa
poderia reduzi-los à metade.
Os autores estão de acordo no que diz respeito ao fato de serem catalogados,
naquela época, como malária, todos os casos febris surgidos no centro da cidade. Esse deslize é cometido ainda hoje em cidades que não dispõem de
laboratórios de análises, pois muita confusão se faz em matéria de diagnósticos clínicos da malária, principalmente em se tratando de localidades
situadas em zonas malarígenas.
Quanto ao fato, porém, de achar "impossível
que os anófeles transmissores chegassem ao centro urbano", os autores discordam, pois
certamente, não possuindo o autor, naquela época, elementos para pesquisas entomológicas, foi levado a fazer tal afirmativa pela falsa impressão de
segurança que lhe dava o afastamento da referida zona, das partes alagadiças e propícias à existência dos criadouros.
Uma das finalidades do presente trabalho é, justamente, provar a existência
desses criadouros disseminados na zona urbana de Santos e apontar os diversos modos de penetração dos vetores da malária.
"Em 1915, o coeficiente da
mortalidade geral aumentou também, indo a 16,92 por mil, quando tinha sido 16,09 em 1914. Foi o impaludismo que, produzindo 71 óbitos no município,
avolumou o seu obituário; a doença lavrou durante vários meses em sítios distantes, na Bertioga, nas margens
dos rios e nas praias da Ilha de Santo Amaro, chegando a vir causar estragos na entrada do canal de Santos, nas proximidades da Ponta da Praia. Não
houve explosão local intensa que chamasse logo a atenção, e só com o correr do tempo a Sanitária teve conhecimento do mal e procurou imediatamente
combatê-lo pelos meios a seu alcance, o tratamento e profilaxia pela quinina, já adquirida na Europa e nos Estados Unidos com dificuldades.
"Além dos referidos meios, de outros não se podia lançar mão, porquanto a
topografia das zonas infestadas exigia largos e custosos trabalhos de engenharia sanitária, para livrá-las da doença reinante nelas há muito
tempo".
"Apesar da farta distribuição de quinina às populações contaminadas, este surto
de impaludismo só terminou de vez em 1917, inclusive na Ponta da Praia, onde imprudentes se estabeleceram, levados pela crise, em lugares desde
muito abandonados por insalubres".
"Em geral, bastaria que os moradores das zonas referidas abandonassem os
terrenos baixos alagadiços, em que por comodidade se fixaram, e procurassem ponto mais alto e distante dos brejais, para que escapassem às
devastações dos hematozoários. É verdade que, na Ponta da Praia, a população que ali foi se fixar contava com os benefícios do
canal de drenagem nº 6 ainda este ano, mas a interrupção dos trabalhos da Comissão de Saneamento, logo no início da
Guerra Européia, veio desfazer-lhes a esperança que nutriam, de poder ficar impunemente no referido ponto do litoral santista. Este fato veio
mostrar a necessidade da continuação das obras de saneamento realizadas pelo governo do Estado, para bem da grande massa de população, pobre
quase toda e que foi procurar aqueles sítios confiada no seu próximo beneficiamento, compensador de sacrifícios motivados pelas dificuldades da vida
no centro da cidade".
Como adiante se pode verificar, as condições da Ponta da Praia, apesar da
construção do canal nº 6, permanecem sensivelmente as mesmas, inerentes às condições locais e estranhas ao próprio terreno.
Sobre o passado malárico de Santos, "em
1917 o impaludismo causou 31 óbitos, dos quais 20 determinados pela forma aguda da doença. Foram menos 23 mortes do que em 1916 e por certo
diminuirão daqui por diante, principalmente na Ponta da Praia, onde o canal com que contavam em breve, começou a prestar serviços, dessecando grande
extensão de terrenos, nas proximidades dos lugares infestados pelo hematozoário. Ao mesmo tempo, o Código Sanitário Rural, por que nos batíamos
desde 1909, sendo realidade, a Delegacia de Saúde ficará armada para providenciar sobre focos de anofelinos, de que venha ter conhecimento".
Em 1918 "o impaludismo,
que lavrou ainda nas zonas rurais e na Ponta da Praia, foi causa de 11 falecimentos"
[3].
QUADRO 2:
Obituário por malária 1854-1919 (+) |
Ano |
População da cidade |
Obituário por malária |
Obituário geral |
% |
1854 |
7,855 |
4 |
255 |
1,5 |
1855 |
|
1 |
248 |
0,4 |
1856 |
|
3 |
268 |
1,1 |
1857 |
|
3 |
329 |
0,9 |
1858 |
|
(+) |
(+) |
-- |
1859 |
|
6 |
249 |
2,4 |
1860 |
|
3 |
290 |
1 |
1861 |
|
(+) |
(+) |
-- |
1862 |
|
9 |
304 |
2,9 |
1863 |
|
8 |
532 |
1,5 |
1864 |
|
5 |
383 |
1,3 |
1865 |
|
4 |
350 |
1,1 |
1866 |
|
6 |
251 |
2,3 |
1867 |
|
3 |
239 |
1,2 |
1868 |
|
6 |
268 |
2,2 |
1869 |
|
12 |
420 |
2,8 |
1870 |
|
7 |
364 |
1,9 |
1871 |
|
(+) |
388 |
-- |
1872 |
9.191 |
(+) |
386 |
-- |
1873 |
|
8 |
572 |
1,1 |
1874 |
|
5 |
581 |
0,8 |
1875 |
|
5 |
418 |
1,2 |
1876 |
|
(+) |
(+) |
-- |
1877 |
|
(+) |
(+) |
-- |
1878 |
|
6 |
554 |
1,08 |
1879 |
|
12 |
460 |
2,6 |
1880 |
|
12 |
462 |
2,59 |
1881 |
|
10 |
384 |
2,6 |
1882 |
|
10 |
428 |
2,33 |
1883 |
|
44 |
538 |
8,17 |
1884 |
|
29 |
543 |
5,34 |
1885 |
|
16 |
422 |
3,79 |
1886 |
15.605 |
49 |
554 |
9,02 |
1887 |
|
40 |
787 |
7,08 |
1888 |
|
34 |
--- |
-- |
1889 |
20.000 |
107 |
1.712 |
6,25 |
1890 |
|
41 |
896 |
4,57 |
1891 |
|
81 |
2.473 |
3,27 |
1892 |
|
66 |
4.173 |
1,58 |
1893 |
30.000 |
78 |
3.561 |
2,19 |
1894 |
|
104 |
1.440 |
7,22 |
1895 |
|
141 |
2.574 |
5,47 |
1896 |
35.600 |
143 |
1.780 |
8,03 |
1897 |
|
110 |
1.331 |
8,26 |
1898 |
|
128 |
1.625 |
7,26 |
1899 |
|
121 |
1.336 |
9,05 |
1900 |
|
119 |
1.369 |
8,6 |
1901 |
45.000 |
78 |
1.312 |
5,9 |
1902 |
|
74 |
1.371 |
5,4 |
1903 |
|
91 |
1.490 |
6,1 |
1904 |
|
60 |
1.507 |
3,9 |
1905 |
50.000 |
40 |
1.391 |
2,8 |
1906 |
|
33 |
1.404 |
2,3 |
1907 |
|
42 |
1.609 |
2,6 |
1908 |
|
41 |
1.636 |
2,5 |
1909 |
|
20 |
1.544 |
1,2 |
1910 |
75,000 |
16 |
1.469 |
1,1 |
1911 |
|
15 |
1.514 |
1,0 |
1912 |
|
5 |
1.639 |
0,3 |
1913 |
|
11 |
1.637 |
0,6 |
1914 |
|
(+) |
1.603 |
-- |
1915 |
|
71 |
1.692 |
4,1 |
1916 |
|
54 |
1.833 |
2,8 |
1917 |
65.000 |
31 |
1.533 |
2,0 |
1918 |
|
11 |
2.607 |
0,4 |
1919 |
|
10 |
1.105 |
0,9 |
(+) Obituário por malária 1854 a 1919: corresponde aos óbitos catalogados pelo autor [3]
com a causa mortis: febres intermitentes, malignas, palustres, malario-tifo etc. |
|