Imagem: reprodução parcial da matéria original
Um plantão na Central de Polícia
Dramas e comédias que se iniciam nos
quatro cantos da cidade, têm seu epílogo na sala do delegado - Casos tristes ou humorísticos, todos são atendidos
O trabalho do delegado, sub-delegado,
escrivão e tiras - Há anos, uma débil mental afiança que o marido lhe queimou a casa - Quando os malandros conhecem o Código Penal - A
criação do Serviço de Ronda Noturna - Observações
Texto de Hamleto Rosato
Fotos de Evaristo Pereira de Carvalho
Ao iniciarmos estas linhas
queremos prevenir e deixar patente que o leitor não encontrará, aqui, todos os acontecimentos policiais que se desenrolaram na cidade durante
plantão que a reportagem fez na Central de Polícia.
Dentro do velho casarão da Praça dos
Andradas, muitos e muitos casos foram levados ao conhecimento da autoridade de plantão. Outros tantos ter-se-iam verificado nos quatro cantos da
cidade, sem, contudo, chegar ao conhecimento das autoridades competentes. Rememoremos, pois, alguns desses casos, dos muitos a que assistimos e que,
diuturnamente, se registram e têm o seu epílogo na sala do delegado.
Os personagens dos dramas e tragédias que se desenrolam e cujo desfecho tem como
cenário a sala da autoridade de plantão, via de regra, se constituem de vítima e acusado. Tem também outras histórias com atores diferentes,
numerosos, de ambos os sexos. E, então, o caso se complica. Questiúnculas às vezes, mas que redundam em charivaris em que se empenham
diversas pessoas. Um sempre começa a comédia ou o drama. Risos ou comoções marcam o término dos desentendimentos havidos. Invariavelmente, quando as
coisas ficam pretas, dividem-se os personagens: uns vão para o Pronto Socorro; outros, depois de ouvidos pelas autoridades - delegado ou
sub-delegado e escrivão - são entregues a domicílio, nos domínios do sr. Augusto Monteiro, chefe dos carcereiros.
Depois de ouvidos, baratinados, como se diz na gíria policial, é o inquérito
aberto. Após o testemunho de outras pessoas, depois de o escrivão encher laudas e laudas de papel, é o inquérito remetido à Justiça. Aí se finda a
ação da polícia. Outros casos surgem. Novas vítimas. Novos acusados. E a vida recomeça. Todos os dias. Todas as horas. Todos os instantes.
É por isso que a Central de Polícia é um mundo. Um pequeno mundo, mas que resolve
intrincados casos. Casos de todos os feitios. Envolvendo ricos e pobres. Pessoas de todas as raças. Religiões diferentes. Pessoas normais, que se
queixam disto ou daquilo. Outras que, com a mania de perseguição, se lembram do velho edifício da Praça dos Andradas e procuram o seu doutor.
Às vezes, casos que comovem. Outros, em que a autoridade, escondendo um sorriso,
atende também. É quando se trata de um paranóico qualquer que se queixa de que lhe roubaram uma jóia de alto valor. Tal jóia teria sido enviada à
Marquesa de Santos. "Trata-se de inveja, seu doutor" - diz o pobre ou a infeliz enferma mental. "Eles querem ficar com o meu castelo. Querem ser
agradáveis a d. Pedro I..." Outros casos tristes também são levados ao conhecimento da autoridade. É a tragédia ou a comédia que formam o seu palco
numa simples sala da delegacia.
É sobre o que observamos, nessa sala, durante algumas horas do dia e da noite, que
procuraremos reproduzir aqui. Antes, queremos ressaltar que as personagens aparecerão apenas com as suas iniciais. O que nos interessa é tão somente
relatar fatos, sem envolver pessoas.
À tarde, na Central - O plantão na Central de Polícia é feito, dia e noite, por
um delegado, um escrivão, um sub-delegado e vários investigadores. Os delegados se revezam, assim como os escrivães e investigadores. Contudo, há
uma exceção. Todas as tardes, como escrivão, funciona o sr. Mário Russo. Como investigador, o velho policial Eusébio. Além desses, praças da Força
Pública e guardas civis. Tiras das várias delegacias entram e saem. Movimento a tarde toda.
Na tarde em que ali estivemos, como sub-delegado se encontrava o sr. Salvador De
Martini. Calmo, ponderado, "fazendo polícia" para trabalhar pela coletividade, o sr. De Martini sabe lidar com as pessoas que ali vão para os mais
diversos fins. Sempre atencioso, ouve as partes. Resolve os assuntos de maneira justa.
Cínico e tarado - Como dissemos acima, na sala do delegado aparece gente de
toda a classe. Bons e maus. O essencial, então, é separar-se o joio do trigo. E isso, a autoridade inteligente, arguta, executa. Com um pouco de
psicologia, com muito de prática de polícia, a autoridade, ao primeiro olhar, sabe com quem está lidando. Dificilmente há um erro. A "velha tarimba"
faz da autoridade um verdadeiro psicólogo.
Em companhia de um tira, para designarmos a gíria policial, um investigador de
polícia, apareceu um indivíduo de cor. Num relance, o escrivão Mário Russo segredou-nos: "Deve ser cínico esse pilantra". E a conversa se formou
entre escrivão e detido. Poucos instantes depois, ele dava o seu nome: "A.S." Acusado de estupro de uma própria irmã, menor de oito anos.
Como se tivesse ido ali para uma festa. A. S. sorria, deixando transparecer os seus
alvos dentes na sua pele preta. Respondia às perguntas sem demonstrar qualquer nervosismo. Não se perturbava. Não demonstrava qualquer
arrependimento. Em sua voz não se sentiu qualquer indício de remorso. Parecia estarmos diante de um herói, tal a maneira como se portava. Com ordem
de prisão, certo de que seria mais um dos hóspedes de Augusto Monteiro, e que não verá por muito tempo o "sol da liberdade", continuava a responder,
com calma, cinismo e risonho, às perguntas que lhe eram feitas.
Preenchidas as formalidades, lá se foi A.S. em companhia do carcereiro, cumprir a
pena. E quando saiu, lembramo-nos das poucas palavras de Mário Russo: "Deve ser cínico, esse pilantra". Sim, cínico e tarado. Casos desses,
infelizmente, se repetem. É a vida, desvirtuada, brutalizada.
À procura de Durvalina - Instantes depois surge à porta um moço, entre 25 e 30
anos. Vinha em prantos. Lágrimas copiosas escorregavam pelas suas faces. Estava um tanto alcoolizado. Queria falar com o "seu doutor". Falou com um.
Não era. Tratava-se de um inspetor. Foi a outro e também não era. Por fim, acertou. "Seu doutor" - começou. Eu estava com a Durvalina - (Durvalina
A.), ali na Praça da República. Não estávamos fazendo nada. Apareceu um meganha e prendeu a Durvalina. Ela não fez
nada não, seu doutor. Eu vim aqui para ver se o doutor compreende e dê liberdade a ela. Se precisar eu pago a carceragem. Não fizemos nada".
Depois de ouvir, com paciência e atentamente o queixoso J. O., o sr. Salvador De
Martini procurou saber de sua profissão. É cozinheiro. E tomando novamente a palavra, foi dizendo: "Em absoluto, seu doutor. A Durvalina não
fez nada. Eu não posso compreender essa injustiça. Já estive preso aqui por espaço de dois meses. Mas, foi a fatalidade, seu doutor. Um
abalroamento. Eu era motorista. Cumpri minha pena, mas me regenerei. Trabalho todos os dias. Bebo um pouco, mas não pratico desordens. Sou correto.
Pergunte ao seu Azevedo".
A autoridade fez outras perguntas. E as respostas não se fizeram esperar. Vinham
sempre, todas elas, acompanhadas de lágrimas. Lágrimas que continuavam a escorrer pelo rosto de J. O. De quando em vez, com a manga do paletó,
enxugava o rosto e prosseguia: "Eu tenho residência ignorada... Em absoluto (essa palavra surgia de cada dez que pronunciava), não fizemos nada.
Seu doutor, se a Durvalina tiver que ficar recolhida eu também quero ficar. Ou senão amanhã eu vou procurar um abias-córpos... Não
se compreende tal injustiça". E J. O. chorava.
Depois de outras perguntas, o sub-delegado Salvador De Martini pediu que ele
descansasse um pouco, no banco, em outra sala. Ficasse ali um pouco até melhorar. Depois iria providenciar. E lá no banco, esperançoso de
encontrar-se com a Durvalina de seus sonhos, ficou o apaixonado J. O.
O marido queimou-lhe a casa - Na Central de Polícia, quase todos os dias, surge
uma velha conhecida das autoridades. É uma mulher, bem idosa, forte, porém vítima de um distúrbio mental. Todos conhecem a sua história. Seu marido,
para ficar com a sua herança, queimou-lhe a casa... Ela, há anos, pede Justiça. Todos fazem ouvidos de mercador.
E a pobre mulher, entre soluços, no seu linguajar arrevesado, passa a repetir à
autoridade de plantão: "Sanhur doutor. Meu marido quer me matar. Ele é malvado, doutor. Jura que estou dizendo verdade. Não bode
sanhur mandar prende ela?"
E a autoridade (ela só quer ser atendida pelo sr. Natalino Mauá, sub-delegado), por
vários minutos, com paciência de Jó, afiança que irá providenciar. O caso ficará esclarecido. Serão tomadas providências contra o mau marido. E a
pobre mulher, sempre implorando Justiça, sai da Central. Sai para voltar no dia seguinte, com a mesma história, sempre se dirigindo à mesma
autoridade.
Malandros que conhecem leis - Diariamente, à tarde ou à noite, entram
conduzidos por inspetores de polícia, guardas-civis, soldados da Força Pública, ou guardas noturnos, tipos dos mais curiosos. Na sua maioria, velhos
malandros. Alguns com recordes de entradas no xadrez. Malandros que entram no velho casarão há longos anos, passam ali algum tempo e tornam a
voltar. Acontece até que muitos delegados destacados para Santos ficam conhecendo-lhes a pinta.
Mas os delegados são removidos. Vão para outras cidades. E os malandros continuam a
conhecer novas autoridades, a praticar outras infrações... Com isso, depois de algum tempo, adquirem algum conhecimento do Código Penal. E disso se
aproveitam. Conhecem os artigos e as penas previstas. Quando isso acontece, chegam a zombar das autoridades. "Não, seu doutor. Eu não ficarei
detido. Não há testemunhas contar. Provo ao senhor que, na ocasião, eu nem me encontrava em Santos".
E o malandro, geralmente bem falante, vai fazendo suas declarações. Acontece que, às
vezes, a polícia não pode mesmo lhes por as mãos. Não há provas concretas. Outros são menores. E a sagacidade da polícia se perde. Outras ocasiões,
os malandros falam. Dizem tudo. Contam várias histórias. No fim, porém, depois de serem ouvidos longamente, surge uma prova. Aí, com um sorriso
amarelo, acompanhado de dois praças, lá se vai o malandro para a sombra.
Brigas caseiras - São numerosos os casos de brigas caseiras que acabam na
Central. A maioria deles é uma rusga entre marido e mulher.
"Seu doutor - começa a esposa - a noite passada ele - ele é o O. M. - saiu cedo
de casa. Apareceu somente às quatro horas. Veio completamente embriagado. Hoje não foi trabalhar. Levantou azedo. Queria discussão. Eu não
lhe dei ouvidos. Ele continuou me provocando. Falou até o Chico vir de baixo. Eu não liguei. Tinha que cuidar do almoço. Era meio dia. A
bóia estava atrasada, porque eu durante a manhã lavei roupa. Ele ficou impaciente e disse que eu passei a manhã conversando com as comadres.
Mentira, doutor. Continuou resmungando, e como eu não dei trela, avançou para me bater. Eu peguei a caçarola e joguei a banha quente em cima
dele. Felizmente não acertou. Senão ele estaria com o rosto todo queimado".
E desnovelando o seu rosário de queixumes, a mulher continuou. "Depois, logo depois eu
me arrependi. Mas ele veio me bater. Gritei por socorro e a A. veio me atender. Ele queria bater nela também. Avançou. Aí eu não suportei mais e me
agarrei com ele. Apareceu a Rádio Patrulha e nos prendeu".
Usando um velho estratagema, a autoridade de plantão, como se estivesse decretando a
pena de morte, com um sorriso escondido, proclamou: "Todos os dois vão para o xadrez. Vamos abrir inquérito por agressão. Depois quem resolverá é a
Justiça. A senhora está machucada. Ele também. Logo, os dois terão que ser recolhidos".
Como se essas palavras fossem mágicas, a pobre mulher, então, entre soluços,
dirigindo-se ao marido, exclamou: "Tá vendo, O. Viu o que você foi arranjar? Eu não queria queimar você. Juro que me arrependi. Você tem sido tão
bão, por que foi fazer aquilo? Eu já o tinha perdoado pela farra da noite toda".
E com lágrimas nos olhos, virando-se para o sub-delegado que estava de plantão na
Central: "Doutor, prenda a mim mas não prenda ele".
Era a primeira prova de estratagema usado. Instantes depois, teria que surgir outra
prova. E esta não se fez esperar: "Doutor, eu, de fato - começou O. M. - a noite passada fiz asneira. Hoje perdi a hora do serviço. Levantei meio
indisposto. Fui culpado. O senhor me desculpe. Mas eu gostaria que o senhor mandasse a minha senhora (aqui com esse tratamento a terceira prova)
para casa. Eu fui um bruto, confesso. Mas juro ao senhor e a ela (dirigindo-lhe um olhar meigo) nunca mais fazer isso".
Estava transposta a barreira. A briga iria dar em nada. Assumindo uma atitude
convencional, a autoridade passou a dar conselhos. Não era um delegado. Era um psicólogo que sabia tirar proveito de um arrependimento sincero. E
com bonomia, palavras curtas mas ponderadas, foi a autoridade aconselhando os cônjuges, que pouco depois saíam, como se estivessem saindo, felizes,
da igreja que os uniu...
No acender das luzes - Com o acender das luzes, ou melhor, quando o relógio
bate as 19 horas, mudam-se as autoridades. A sala, porém, é a mesma. Os casos que surgem, são semelhantes. Se, durante o dia, o número de bêbados é
grande, não menor é o número de malandros que vão parar na Praça dos Andradas, à noite. E o desfile de criaturas diferentes continua. Homens e
mulheres. Menores transviados. Casos e mais casos.
No plantão da noite. Delegado: dr. Renato Santana. Gentleman. Educado.
Atencioso. Inteligência viva. Autoridade enérgica, porém dona de um ótimo coração. Sabe "fazer polícia", como dizem os repórteres acreditados junto
à Central. Sub-delegado: Antonio Vitor de Campos. Bom elemento. Trabalhador. Como escrivão vamos encontrar o mesmo atencioso Mário Russo. Moço
inteligente, dos mais capazes.
Um pobre flagelado - Não raro surge na Delegacia, pedindo uma pousada, um
deserdado da sorte. Nesta noite tudo estava calmo. À porta surge uma figura esquelética. Sem força, sequer, para falar. Queria um lugar para dormir.
Era um flagelado.
Em meio à sua história ao dr. Renato Santana, já Mário Russo enfiava a mão no bolso.
Uma pequena nota. E todos participam. É para se alimentar. Depois o delegado arranja um lugar para o infeliz no Albergue Noturno. São os dramas da
vida. São os dramas da terra. Ou serão dramas de autores estranhos que exibem apenas as suas personagens sem aparecer?
Repórteres - Num vai e vem constante, bisbilhotando tudo, farejando
sempre alguma coisa, os repórteres acreditados junto à Polícia são os anônimos porta-vozes das tragédias e comédias que geralmente assistem ao
epílogo. São criaturas humanas, como qualquer outra. Levam para os jornais as notícias que, ansiosamente, o povo aguarda.
Conhecem todos os malandros da cidade. Entendem perfeitamente a sua gíria, a sua
manha. E diga-se de passagem, como homenagem, que eles prestam valiosos serviços à polícia. Denunciam ao público os fora da lei. Ávidos de
furos, dedicam-se de corpo e alma à sua profissão. Sem descanso. Ininterruptamente.
Uma ronda com o dr. Eli Mourão - O dr. Miguel Teixeira Pinto, delegado auxiliar
de polícia, criou recentemente a Ronda Policial. Serviço de repressão à vadiagem. Contra os portadores de armas. Contra os malandros. Serviço que
vara a noite. À sua frente um delegado inteligente: dr. Eli Mourão. Eficiente. Zeloso. Trabalhador.
A reportagem foi apreciar o serviço de Ronda. No bas-fond, lugar onde se reúnem
os piores elementos, o dr. Eli Mourão, acompanhado do inspetor Pinto Vilela, investigadores Aristides e Casimiro, sargento Eliseu de Matos, da Força
Pública, e outros investigadores, inicia a batida.
De quando em vez, um sujeito, com cara de poucos amigos, conduz uma faca ou um punhal.
Se não apresenta carteira de trabalho, se já é pinta manjada, entra no carro e vai passar uma noite diferente... A revista é feita por
todos. Asa pessoas que não conduzem documentos são advertidas.
Dessa batida colhemos impressão. É um grande serviço. A autoridade que o
superintende está à altura. Vimos também a maneira correta do inspetor Pinto Vilela proceder. A um ou outro trabalhador que estava sentado, "meio
alto", num bar mal freqüentado, aconselhava: "Isto, meu rapaz, não é lugar para você. Procure outro local". E outros conselhos eram dados.
Ficamos satisfeitos. Se continuar a trabalhar desta maneira, a Ronda Policial,
dirigida pelo sr. Eli Mourão, só pode receber os agradecimentos do ordeiro povo santista.
De tudo, porém, nos ficou uma impressão desfavorável de um investigador "meio
carrancudo", que trajava um terno azul-marinho, o clássico chapéu de abas largas, e que não procedia com o mesmo tato, a mesma atenção dos
demais.
Foi a nota fora...
Os flagrantes acima foram fixados pela
objetiva da A Tribuna durante o plantão que a reportagem fez na Central de Polícia. Em cima, à esquerda, o inspetor Pinto Vilela aborda um
cidadão, durante a Ronda Policial chefiada pelo dr. Eli Mourão; ...
...ao lado, num bar, quando o
investigador Casimiro verificava os documentos de um dos freqüentadores; ...
...em baixo, na mesma ordem, em seu posto
de trabalho, o escrivão Mário Russo, vendo-se o sub-delegado Campos,...
...aparecendo ainda na outra foto o dr. Renato Santana
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