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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - CRISTÃOS-NOVOS
Presença judaica pré-colonização (1)

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Antes da chegada dos primeiros colonizadores, nos anos iniciais do século XIV já era registrada a presença de europeus no litoral sulamericano. Alguns casos foram documentados - desertores, degredados, náufragos -, mas outros não têm registro de como chegaram ao território brasileiro.

Entre estes estariam muitos judeus perseguidos na Europa pela Santa Inquisição, e que de alguma forma conseguiram chegar ao Novo Mundo, onde formaram as primeiras povoações, como as primitivas vilas de São Vicente (antes da oficialização por Martim Afonso) e Cananéia, onde viveu o quase lendário Bacharel. A presença judaica também é fortemente marcada na toponímia brasileira: muitos nomes de acidentes geográficos podem ser rastreados até origens hebraicas.

Apesar disso, os efeitos da intolerância religiosa européia chegaram ao Brasil colonial, e prosseguiram até o século XX, como o comprova a existência de cemitérios separados para protestantes e judeus no Sudeste brasileiro.

Sobre esse tema, foi publicado na Revista USP nº 41 (de março a maio de 1999) - editada pela Coordenadoria de Comunicação Social da Universidade de São Paulo, na capital paulista - págs. 112 a 119:

João Ramalho e o filho: ascendência judaica?
Detalhe de pintura a óleo de Wasth Rodrigues, Museu Paulista, S.Paulo/SP
Imagem: enciclopédia Grandes Personagens da Nossa História, Ed. Abril, S.Paulo/SP, 1969, vol. I

Sobre a presença dos cristãos-novos na Capitania de São Vicente e a formação da etnia paulista

Nachman Falbel (*)

A vinda dos cristãos-novos ao Brasil, que se deu efetivamente desde os primeiros anos da colonização portuguesa, logo após a descoberta, foi estudada com certa amplitude e riqueza graças aos processos inquisitoriais existentes no Arquivo da Torre do Tombo, bem como os de outros acervos documentais [1].

Porém, se fizermos uma avaliação da pesquisa sobre o tema adotando um critério regional, veremos que poucos estudos se referem à presença de cristãos-novos no litoral paulista e mais especificamente na Capitania de São Vicente, excetuando-se os trabalhos fundamentais do historiador José Gonçalves Salvador [2].

Quais seriam os motivos para a ausência de pesquisas no tocante ao território, tão importante para o desenvolvimento de São Paulo e porto de entrada para a colonização interiorana do estado?

À primeira vista nos parece que a resposta pode ser encontrada na excessiva concentração dos pesquisadores na documentação inquisitorial, cujos processos referentes aos cristãos-novos são numericamente poucos - os que tratam dos judaizantes de São Vicente e da região paulista - em comparação a outras localidades.

Por outro lado, sabemos que o acesso dos visitadores à região era complexo, assim como difícil era separar a população litorânea do Planalto Paulista ou das terras de Piratininga que efetivamente subiram a serra pelo Caminho do Mar para criar o núcleo de Santo André da Borda do Campo.

Devemos aceitar e concordar com os historiadores que afirmam a imediata presença dos cristãos-novos, que receberam a concessão de explorar comercialmente o pau-brasil, como Fernando de Loronha, ou Noronha [3], e o papel que desempenharam na cultura da cana-de-açúcar que foi, de início, o principal produto da economia colonial na faixa litorânea brasileira. Cristãos-novos, judaizantes ou não, degredados ou não, passaram a ser um elemento colonizador de primeira importância na terra de Santa Cruz e, quando se deu a Primeira Visitação do Santo Ofício nos anos de 1591-95, uma boa porcentagem dos denunciados aos esbirros da Inquisição era da progênie judaica.

As denunciações da Bahia, da Primeira Visitação, mencionam cristãos-novos da região de São Vicente e se especificam através da denúncia de uma Maria da Costa na qual se afirma que Francisco Mendes era cristão-novo, morador de São Vicente e "he da geração de huns christãos novos que chamam os Valles" [4].

Um Antônio do Vale, casado em Portugal com Ana Garcia, homiziou-se no Brasil por crimes praticados no Reino e foi viver em São Vicente, casando com a filha do capitão-mor, Jerônimo Leitão, e ele aparece nas Denunciações do Santo Ofício relativas à Primeira Visitação ao Brasil [5].

Quando teriam vindo? Difícil precisar, pois quando, em 1532, Martim Afonso de Souza entrou no porto em São Vicente, dois anos após o estabelecimento das donatarias, já encontrara habitantes europeus, que no dizer de Paulo Prado seriam "remanescentes de naufrágios ou das viagens de 1501 ou 1503, das de d. Nuno Manuel, da nau Bretôa, e de Christovam Jacques, ou de outras anônimas..." [6].

A figura controvertida e desconhecida do Bacharel de Cananéia [7], com o seu clã familiar que incluía Gonçalo da Costa, Antonio Rodrigues, Mestre Cosme, Duarte Peres (ou Pires) e também a não menos controvertida personalidade de João Ramalho.

Este último, sobre o qual derramou-se muita tinta devido ao suposto "kaf" de sua assinatura, é mencionado na carta de Tomé e Souza dirigida ao rei d. João III, de 1º de junho de 1553, como natural de Coimbra e possuidor de uma prole abundante com muitos descendentes [8].

O fato é que antes da chegada de Martim Afonso encontramos núcleos de populações que as fontes lembram serem como náufragos, desertores ou desterrados, além de viverem amancebados com mulheres índias [9], sem informar exatamente quando chegaram.

Basílio de Magalhães, na sua Expansão Geográfica do Brasil Colonial [10], falando da prole de João Ramalho e da geração mameluca que começou a nascer antes da chegada de Martim Afonso de Souza, localizada em Santo André, frisa desde logo ser produto do ajuntamento dos primitivos povoadores de São Vicente, Santos, São Paulo, Itanhaém, Iguape e Cananéia.

O insigne historiador observa, com ironia, que houve aqueles e lembra a J. J. Machado de Oliveira que, no seu Quadro Histórico da Província de São Paulo [11] pretendia distinguir do nome de paulistas o "nome odioso" dos mamelucos tendo-os na conta de "mescla híbrida e impura", apenas capazes de "feitos anti-abomináveis, à semelhança do que também havia de escrever sobre os produtos miscigêneos da América o etnólogo germânico Hellwald".

Basílio de Magalhães arremata dizendo que "aquele ilustre escritor não queria que se confundissem os paulistas com os seus descendentes de sangue caboclo, como se houvesse algum desdouro em aquele povo originar-se do conúbio de aventureiros e criminosos de toda espécie com as mulheres indígenas" [12].

É curiosa a tentativa de frei Gaspar da Madre de Deus, em suas Memórias para a História da Capitania de S. Vicente [13], retrucando a Charlevoix e negando o papel dos foragidos e banidos de várias nações de terem fundado São Paulo, limitando a sua fundação apenas aos índios, e jesuítas, além de João Ramalho e sua prole. Concorda, no entanto, "que os moradores da Capitania de São Vicente, principalmente os de serra acima, se esqueceram algumas vezes das Leis Divinas e humanas, respectivas à inteira liberdade dos índios". A questão dos mamelucos, resultado da mescla de povoadores, estava subjacente na história do beneditino, em sua tentativa de limpar a formação da Vila de Piratininga.

A preocupação como "a constituição étnica do tipo paulista" parece ter ocupado a historiografia brasileira dos anos 30 (N.E.: do século XX), ocasião em que Paulo Prado escreveu sua Paulística, a qual Oliveira Viana contestou, em artigo no Correio da Manhã, com o mesmo critério historiográfico, sobre a importância do "sangue hebreu na formação antropológica de Piratininga" como sendo inferior ao de outros elementos europeus de tipo ariano. O biologismo próprio da época, que se mesclou com os ingredientes ideológicos nazi-fascistas, provavelmente teve seu papel nesse tipo de pesquisa histórica, que, consciente ou inconscientemente, se manifestava ao se abordar a presença dos cristãos-novos no Brasil.

A um dado momento, essa "ciência" se refere à necessidade de "pesquisas antropométricas sobre os despojos dos bandeirantes" [14], para se fundamentar o conhecimento histórico, além da consideração das "tendências raciais" que acompanha a crítica que Paulo Prado faz a Oliveira Viana, adepto das mensurações cranianas, que a ciência confessa insuficientes para uma classificação científica dos grupos humanos.

Esse tipo de historiografia, que procura limitar a antropologia biológica para explicar os fenômenos históricos, não é de todo isento de preconceitos em relação aos judeus, assim como em relação a outras etnias ou povos.

E novamente o texto em questão, de Paulo Prado, nos explica "a contribuição judenga [que] trouxe para esse caldeamento o elemento inteligente, voluntarioso, irrequieto e nômade que outras influências mal explicam, e, sobretudo, a rediviva preocupação de enriquecimento tão peculiar ao judeu e que em toda parte assinala como um pioneiro de civilização e progresso" [15].

Se levarmos em conta que o livro foi escrito no final dos anos 20 (N.E.: do século XX), podemos entender a incipiência de tal historiografia que fala da "psique coletiva das tribos de Israel", comparando-a com a do povo paulista "devido a seus aspectos semelhantes, e entre esses aspectos encontra-se a perseverança, a tenacidade e o resistente arrivismo" (no sentido menos pejorativo da expressão), como nos diz o autor, além da notável faculdade de adaptação utilitária que, de caçador de índios, mineiro, de povoador e conquistador, converteu o habitante do planalto no moderno "grileiro e bugreiro" [16].

Por outro lado, o próprio conceito de raça, com o passar do tempo e em nossos dias, sofreu radical transformação de conteúdo, apoiado no próprio desenvolvimento que as ciências humanas e biológicas tiveram até hoje. Mas, ainda na década de 20, ao falar de São Paulo, Paulo Prado, ao mencionar a mescla de portugueses, espanhóis, flamengos, franceses e italianos, frisava, ao mesmo tempo, a "sensível dosagem de sangue israelita" nela, concluindo que, mais do que em outro sítio da colônia, as condições do meio e do isolamento perpetuaram essa endogamia tão importante para a fortaleza biológica dos agrupamentos humanos. Mesmo décadas após, certos historiadores não conseguiriam libertar-se da "miscigenação étnica" como elemento explicativo para as características da população local [17].

A verdade é que fazia parte da política colonizadora portuguesa fazer vista grossa aos transgressores e malfeitores que, perseguidos pela justiça do reino, poderiam optar por fugir a outras terras e se aventurar a ir viver na colônia para escapar da justiça. Eram eles os que se aproveitavam do homízio junto aos que deliberadamente eram degredados, como reza o alvará de 31 de maio de 1535 no qual "el-Rei ordenou que dahi em diante as pessoas que houvessem de ser degredadas para a ilha de Sam Tomé... fossem degredadas para o Brasil", assim como o alvará de 6 de maio de 1536, que condenava ao exílio no Brasil "os moços vadios de Lisboa que andão na ribeira a furtar bolsas e fazer outros delitos" [18].

Nas denunciações da Bahia, e durante a Primeira Visitação, transparece claramente o quanto os cristãos-novos sentiram-se à vontade para judaizarem na colônia distanciada da Inquisição continental e mais ainda os que se encontravam na longínqua Capitania de São Vicente e na Vila de São Paulo. Pelo teor das denunciações depreendemos o quanto se mostravam seguros, a ponto de não trabalharem no sábado, vestindo-se com roupas limpas, blasfemando e expondo suas crenças e praticando o seu culto nas "esnogas".

Já nesse tempo, o número de cristãos-novos no Brasil era significativo, pois a partir de 1536, quando se decidiu a instalação do Santo Ofício em Portugal, estes procuraram as terras mais longínquas, isto é, as colônias de ultramar, assim como os países europeus e outros continentes que os acolhessem, num verdadeiro êxodo que irá alterar a história da diáspora judaica desde a destruição do Segundo Templo de Jerusalém.

Mesmo que a conversão e a aceitação do cristianismo fosse honesta, eles, os cristãos-novos, viviam na sociedade portuguesa sob permanente suspeita de judaizarem, o que se pode comprovar pelo número de processos havidos contra os mesmos e pela literatura anti-judaica da época, que acentuava o quanto para os conversos era impossível deixar a sua antiga fé [19].

Séculos de ódio teológico, associado a outros fatores, que afirmavam a caeccitas judaeorum e a obstinação do povo de cerviz dura, contribuíram acentuadamente para gerar esse permanente clima de desconfiança em relação aos cristãos-novos, mesmo que fossem fiéis à nova religião. Por vezes a saída do reino lhes era vedada, já que eles constituíam-se num fator importante da economia e da sociedade portuguesa, e isso torna-se mais patente nos inícios do século XVII, quando terão que comprar sua licença para saírem livremente de Portugal ou quando terão de obter outras mercês com o perdão geral que lhes outorgou Clemente VIII, em 1604 [20].

Portanto, não é de surpreender se na Segunda Visitação Inquisitorial ao Brasil, do licenciado Marcos Teixeira, em 1618, disseminou-se o pavor, não somente entre os cristãos-novos na Bahia e adjacências, mas também entre os da região sulina, que receberia um reforço dos foragidos do Norte.

Claro é que devemos distinguir na Capitania de São Vicente as duas topografias, isto é, da região litorânea e a do planalto, esta tendo como barreira natural a Serra de Paranapiacaba, que devido à sua densa vegetação na época dificultava o acesso aos lugarejos ou vilas que se encontravam em Piratininga. Mas o intercâmbio entre os povoados do litoral e as terras do planalto era inevitável, constituindo-se a Vila de São Paulo um lugar ideal para o refúgio daqueles ameaçados continuamente pelos membros do Santo Ofício.

A fama dos cristãos-novos paulistas como implacáveis predadores de índios, nesse tempo, estava estabelecida, e suas incursões provocam reações de parte dos clérigos e religiosos dos territórios vizinhos da região do Prata, que por vezes solicitam a instalação da Inquisição no Brasil, também devido à sua presença e ao êxodo provocado pela visitação [21].

Obviamente, agora seus interesses econômicos eram bem mais amplos e se voltavam também para a região do Peru e das minas de prata de Potosi, cujos mandatários tinham a mesma preocupação em relação aos portugueses que por lá andavam.

Boleslao Lewin, em seu El Judio en la Epoca Colonial, cita a "Ley de Indias" de 1625 (Libro IX, Titulo XXVI), que se refere a isso: "Porque desde el Brasil entran por tierra en la Provincia del Paraguay, e pasan a las del Perú muchos Estrangeros Flamencos, Franceses y de otras Naciones [...]". Do mesmo modo chama a atenção a Real Cédula de 17 de outubro de 1602, que ordena que se faça sair os portugueses e estrangeiros que teriam entrado na região do Prata sem licença:

"[...] En los puertos y partes de essa probincia tantos estrangeros y especialmente ay muchos portugueses que an entrado por el rio de la plata y otras partes con los navios de los negros y cristianos nuebos y gente poco segura en las cosas de nuestra santa fee Catholica Judaiçantes y que en los mas puertos de las indias ay mucha gente desta Calidad [...]" [22].

De fato, a preocupação com os judaizantes nas capitanias do Sul levou a que um religioso, frei Diogo do Espírito Santo, vigário da Casa de N. Sra. do Carmo, solicitasse que o Santo Ofício promovesse a vinda de um visitador. Efetivamente chegaria em 1627 o licenciado Luís Pires da Veiga [23], credenciado para visitar os reinos do Congo, Angola e Brasil.

Além da Bahia e Rio de Janeiro, um visitador da Inquisição chegaria pela primeira vez à Capitania de São Vicente, e podemos imaginar que isso obrigou os seus habitantes cristãos-novos a procurar refúgio em outros lugares. Assim mesmo sabemos que em 1628 ele se encontrava em São Paulo ouvindo denunciantes e confidentes, assim como o fizera no Rio de Janeiro, onde várias pessoas foram denunciadas, seguindo após ao Espírito Santo [24].

A supervisão inquisitorial no Sul continuaria com resultados, por vezes, dramáticos para os judaizantes levados a julgamento em Lisboa, sofrendo os habituais processos e procedimentos da maquiavélica e malévola instituição em Portugal. Contudo, o papel econômico que os cristãos-novos desempenhavam, seja no reino ou nas colônias, impedia, por vezes, a execução radical e persecutória da nefanda instituição, assumindo o Estado uma atitude benevolente em relação aos cristãos-novos e fazendo vista grossa em relação à heresia, quando se sobrepunham seus interesses imediatos.

A história das relações entre o poder secular e a Inquisição mostra o quanto elas oscilaram, em boa parte devido à consciência - verdade é que despertada por alguns luminares - de que as restrições impostas à "gente da nação" prejudicavam a sociedade e a economia portuguesa, mormente quando, desde os inícios do século XVII, ela estava sofrendo a concorrência superior de outros, e em particular do expansionismo mercantil holandês.

Tanto no Oriente quanto no Novo Mundo, a presença dos outros povos europeus se impunha, apesar do pioneirismo ibérico nas descobertas marítimas. E muitos foram os que viram na política persecutória, e no conseqüente êxodo da península para outros lugares, aos judeus e cristãos-novos de Portugal, a causa maior para a sua ruína sem que pudessem impor o seu ponto de vista a não ser transitoriamente.

A exclusão dos cristãos-novos da sociedade portuguesa como um todo, restringindo sua participação em cargos públicos, impedindo a manifestação de seu talento na administração em todos os seus aspectos, nas colônias e na metrópole, sem dúvida teve um preço alto ao império colonial, pois a fuga de capitais importantes esvaziava os cofres do tesouro real, além de outras conseqüências.

Nesse sentido, a nobreza reinol, que tinha naturalmente a dificuldade de se adaptar à nova mentalidade mercantilista que acompanhava o ingresso da Europa na modernidade, deixando para trás o mundo medieval que desdenhava a usura, a atividade mercantil e pecuniária, prevaleceu na classe dirigente do Estado português até o século XVIII.

Economistas do porte de Duarte Gomes Solis, autor do tratado Alegación en Favor de la Compañia de la India Oriental, por volta de 1621, propunham um plano para incrementar o comércio ultramarino, que na época se encontrava com entraves de toda natureza [25], assim como o faria o padre Antonio Vieira.

Este último, profundo conhecedor da mentalidade portuguesa, tinha a visão da importância do ativismo econômico dos cristãos-novos para a manutenção das conquistas ibéricas, e ao intentar demonstrar isso incorreu no pecado de defesa dos "Heréticos judeus" e suspeita de judaísmo, levando-o ainda a ser processado pela Inquisição [26].

Mas é preciso ainda lembrar que o êxodo de judeus e cristãos-novos de Portugal não se restringiu apenas a homens de negócio, pois abrangeu uma vasta gama de profissionais e artesãos que desempenhavam um papel econômico importante na sociedade ibérica, ainda que a historiografia que trata do assunto tenha por hábito focalizar os que exerciam uma atividade mercantil.

Basta examinar as profissões dos que foram processados pela Inquisição para se inteirar do quanto elas abrangiam praticamente todos os ramos da atividade humana, das mais humildes, entre elas a de curtidor, tecelão, alfaiate, sapateiro, ferreiro, coureiro, tratante, e outras, até as denominadas liberais, tais como professor universitário, médico ou físico, advogado, além de clérigos e militares.

A sociedade portuguesa, na metrópole e na colônia, contava com a presença dos descendentes dos judeus conversos desde que o foram obrigados, a partir de 1497. Era inevitável a penetração desse elemento numericamente significativo em todos os aspectos da vida social ibérica, e do mesmo modo que ocorreu na Espanha muito antes, devido às conversões em massa no ano de 1391, ocorreria posteriormente em Portugal, adicionado a um processo de mesclagem devido aos casamentos entre famílias de cristãos-velhos e cristãos-novos, mesmo havendo de um lado certo repúdio e de outro uma tendência endogâmica a fim de preservar sua identidade religiosa.

Porém, o repúdio se manifesta fundamentalmente a partir das restrições impostas pelos estatutos de pureza de sangue que limitavam a ascensão social daqueles que possuíam "sangue infecto". O famoso médico cristão-novo Ribeiro Sanches, em um opúsculo escrito em 1735, intitulado Origem da Denominação de Cristão-Velho e Cristão-Novo em Portugal, assim como d. Luís da Cunha no conhecido Testamento Político dirigido a d. José, é de opinião que a instituição inquisitorial promove entre os perseguidos cristãos-novos o judaísmo mais do que o refreia ou elimina [27].

Ele dirá que "foi mais notória a diferença entre cristão-novo e cristão-velho depois que se estabeleceu o costume de tirarem inquirições, de todos aqueles que queriam entrar no Estado Eclesiástico, ou cargos honrosos da República", sendo originado tal coisa do decreto da Sé de Toledo, feito no ano de 1547 [28].

Mas, no distante Brasil, a questão assumia proporções menos graves, e os que aqui aportaram estavam dispostos desde o início a serem mais tolerantes e menos preconceituosos, pois a realidade os impelia a seguir o impulso da vida e da sobrevivência, que o isolamento e a solidão do vasto território a ser colonizado acentuava. Daí o casamento com indígenas, bem como a bastardia com o elemento africano, que começava a se tornar mais presente à medida que a indústria açucareira vai se desenvolvendo a assumindo um papel central na economia colonial [29].

O que vai caracterizar a atividade dos cristãos-novos em território brasileiro no processo de povoamento e colonização é a economia açucareira que demandava a mão-de-obra escrava, no que implicava também a participação dos mesmos no tráfico negreiro, que os portugueses vinham fazendo há muito tempo no continente africano.

A multiplicação de engenhos de açúcar que se estende do Norte ao Sul do território faz da colônia um grande centro de produção e exportador para a metrópole e todas as nações com as quais Portugal comercializava [30].

Mas, por outro lado, apesar da sua importância, precisamos lembrar que São Paulo era um reconhecido centro de irradiação de sertanistas para a exploração e a busca de minerais preciosos e de expedições bandeirantes, que se fizeram em busca dos mesmos, atraindo para cá indivíduos de todas as origens e lugares [31].

O incremento maior deu-se durante o período do governador d. Francisco de Souza, ainda que aventureiros e forasteiros, na capitania, assim como em outros lugares, representassem uma parcela da população instável que se aproveitava, temporariamente, das oportunidades para amealhar certa fortuna e logo desaparecer.

As Atas da Câmara de São Paulo mencionam a estes e por vezes os seus nomes aparecem em uma única menção para nunca mais serem lembrados. O levantamento extraordinário de Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica [32] nos fornece uma quantidade considerável de nomes e famílias de cristãos-novos, não mencionados em seu livro como tais, porém identificados posteriormente como vítimas da Inquisição, que apesar de tudo não cessou de supervisionar a religiosidade sempre suspeita dos habitantes da colônia até os dias do marquês de Pombal.

(*) Nachman Falbel é professor de História Medieval da FFLCH-USP e autor de, entre outros, Os Espirituais Franciscanos (Perspectiva).


O NOME DO RAMALHO NAS ATAS - As atas da vila da borda e do interior do Campo de São Vicente trazem o nome e a assinatura de João Ramalho, o incansável andarilho e primeiro desbravador desta região do Campo de São Vicente - ele pouco se deteve na ilha e sempre preferiu o continente. Na parte inferior vê-se a assinatura característica de João Ramalho no final da ata de Santo André da Borda do Campo, e na superior, trecho da ata da Câmara de São Paulo onde consta sua declaração recusando o cargo de vereador paulopolitano
Reprodução: O Caminho do Mar - subsídios para a história de Cubatão

NOTAS:

[1] A verdade é que a frota da descoberta de Cabral traz a figura extraordinária do judeu converso Gaspar da Gama, objeto da monografia de Elias Lipiner: Gaspar da Gama, um Converso na Frota de Cabral. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.

[2] Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição. São Paulo, Pioneira, 1969. Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro: 1530-1680, São Paulo, Pioneira, 1976. Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional, São Paulo, Pioneira, 1978.

[3] Sobre ele ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional. São Paulo, Pioneira/MEC, 1978, pp. 8, 38, 98, 166. Os Magnatas do Tráfico Negreiro, Séc. XVI e XVII. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1981, pp. 6, 20, 129.

[4] Primeira Visitação do Santo Officio: Denunciações da Bahia, p. 314.

[5] Denunciações da Bahia, 1591-1593. São Paulo, Prado, 1925, p. 355. Ver Costa Pôrto, Nos Tempos do Visitador, Recife, UFP, 1968, pp. 162-3; ver Elias Lipiner, Os Judaizantes nas Capitanias de Cima, São Paulo, Brasiliense, 1969, pp. 26-8.

[6] Paulística, Rio de Janeiro, Ariel, Rio de Janeiro, 1934, pp. 44-5.

[7] Interessante é a tentativa de Augusto de Lima Júnior, no artigo "Mineiros e Paulistas de Origem Judaica" (in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol. V, 1958, pp. 146-58), artigo recheado de incorreções e preconceito inconsciente, resultado visível do desconhecimento do judaísmo. Diz que Gonçalo Costa ou Duarte Peres era judeu, ficando isso patente pelo nome Cananéia que dera ao seu pouso na nova terra. Ele também adota o critério errôneo do nome para identificação de quem é judeu ou descendente de judeu.

[8] Idem, ibidem, p. 47. Provavelmente estabeleceu-se em Piratininga em 1513, vindo de São Vicente, e fundou a povoação de Santo André da Borda do Campo. Ver o Livro de Tombo do Mosteiro de São Bento da Cidade de São Paulo, editado por D. Martinho Johnson (São Paulo, 1977, p. 102), com as referências bibliográficas, entre elas: A. de E. Taunay, "João Ramalho e Santo André da Borda do Campo", in Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XXIX, 1932 (Conferências Comemorativas do IV Centenário da Fundação de Sâo Vicente), pp. 41-91.

[9] Luís, Washington, em Na Capitania de São Vicente (São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980), desenvolve esse aspecto com excelente conjunto de provas e documentação histórica.

[10] 3ª ed., Rio de Janeiro, Epasa, 1944, pp. 92-3.

[11] 2ª ed., São Paulo, 1897, p. 87.

[12] Idem, ibidem, p. 93. Em nota de rodapé o historiador lembra Pierre François-Xavier de Charlevoix (Histoire du Paraguay, Paris, 1761), que dizia: "[...] de ce mélange il sortit une génération perverse dons les desordres en tout sens furent poussés si loin, que l'on donna à ces métis le nom de Mamelucs, à cause de leur ressemblance avec ces anciens esclaves des Soudans d'Egypte".

[13] 3ª ed., São Paulo-Rio de Janeiro, Ed. Weiszflog Irmãos, 1920, 99, pp. 229-37. O saudoso prof. Alfredo Ellis Jr., em sua importante obra Os Primeiros Troncos Paulistas (CEN, col. Brasiliana, vol. 59, 1976), apesar da impregnação antropologista e etnologista, típica da historiografia da época, demonstra com conhecimento seguro dos fatos o papel histórico positivo do mameluco, resultado do cruzamento racial que marcou a formação da população paulista.

[14] Idem, ibidem, p. 95.

[15] Idem, ibidem, p. 96 (grifos nossos).

[16] Idem, ibidem, pp. 96-7.

[17] Ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530-1680), São Paulo, Pioneira, 1976, p. 7: "Que características revelaria então? Julgamos nós, à luz da história paulista, que seriam traços fisionômicos [sic!] maior resistência biológica, mais adaptabilidade ao meio, amor à liberdade, extraordinária mobilidade e destemor, enfim".

[18] Doc. para a História do Açúcar, pp. 25 e 31, apud Costa Porto, op. cit. p. 154.

[19] Ver N. Falbel, "Um argumento polêmico em Vicente da Costa Matos", in Em Nome da Fé (Estudos in memoriam de Elias Lipiner), São Paulo, Pesrspectiva, 1999, pp. 91-113. Por vezes, propor-se-á sua expulsão, assim como ocorreu entre 1621 e 1623, e outras ocasiões.

[20] G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio ..., op. cit. p. 12; J. Lúcio Azevedo, História dos Cristãos-Novos, 2ª ed., Lisboa, Liv. Clássica Editora, 1975, p. 162.

[21] Lafuente Machaim, Los Portugueses en Buenos Aires en el Siglo XVII, B. Aires, pp. 103-4.

[22] B. Lewin, El Judio en la Epoca Colonial, B. Aires, Ed. Colégio de Estudos Superiores, 1939, pp.51-2.

[23] Ele não figura no Catálogo de frei Pedro Monteiro. Ver N. Falbel, O Catálogo dos Inquisidores de Frei Pedro Monteiro e sua Complementação por um Autor Desconhecido. São Paulo, CEJ da USP, 1980.

[24] A N. T. T., Inquisição de Lisboa, Contra os Cristãos-Novos, ms. nº 24, apud. J. G. Salvador, Cristãos-Novos, Jesuítas e Inquisição, op. cit., pp. 108-9.

[25] Duarte Gomes Solis, Alegación en Favor de La Compañia de La Índia Ocidental, ed. e pref. por Moisés Bensabat Amzalak, Lisboa, 1955. Ver J. G. Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio... (op. cit., pp. 16-7), que chama a atenção ao fato de que Solis se referia ao Brasil e não à Índia.

[26] Ver Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição (ed. transc., glossário e notas de Adma Muhana, São Paulo, ed. Unesp-FCEB, (1995), e o seminal estudo de Alberto Dines, Vínculos do Fogo, I, (São Paulo, Companhia das Letras, 1992), que se refere a Vieira com uma penetração original em seus escritos e pensamentos; A. Baião, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, I, Lisboa, 1936, pp. 205-316.

[27] Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal, 2ª ed., pref. de Raul Rego, Porto, ed. Paisagem, 1973.

[28] Idem, ibidem, p. 36.

[29] C. R. Boxer, em O Império Colonial Português, Lisboa, Ed. 70, 1969, pp. 279-303), dedica atenção à questão da "Pureza de Sangue" em toda a extensão do Império português.

[30] J. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Econômico, 3ª ed., Lisboa, Livr. Clássica Editora, 1978, cap. "O Império do Açúcar", pp. 215-87. O caso de João Nunes, estudado por Sonia Aparecida Siqueira (Separata dos Anais do V Simpósio Nacional dos Prof. Univ. de História, Campinas, 1971), é ilustrativo por se tratar de um magnata do açúcar denunciado à Inquisição; ver E. de O. França, Engenhos, Colonização e Cristãos-Novos na Bahia Colonial (Separata dos Anais do IV Simpósio Nacional dos Prof. Univ. de História, São Paulo, 1969). Porém, para o estudo da presença dos cristãos-novos em Pernambuco, e sob o domínio holandês, e o papel que tiveram na economia açucareira, são indispensáveis os trabalhos de José Antonio Gonzales de Mello, a começar do clássico Tempo dos Flamengos e a terminar com o Gente da Nação, Recife, Massangana, 1989.

[31] Como bem demonstrou J. P. Calógeras, Formação Histórica do Brasil (Rio de Janeiro, Pimenta de Mello, 1930, p. 25), "S. Vicente e S. Paulo, a antiga Piratininga, durante centenas de anos foram os postos avançados donde irradiaram as expedições militares à procura da fronteira sulina (...) não somente em relação aos hispanos mas também em relação aos invasores franceses e holandeses".

[32] São Paulo, Itatiaia-USP, 1980.

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