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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1847 - por Samuel Greene Arnold

Chovia copiosamente... Cubatão era "pequena e muito insalubre por causa do calor e dos pântanos"

Santos sempre foi visitada por muitos viajantes, ao longo de sua história, e um deles foi o norte-americano Samuel Greene Arnold, em meio a seu périplo pela América do Sul. Sobre essa visita, o pesquisador e historiador Costa e Silva Sobrinho publicou este artigo - mais tarde incluído em sua obra Romagem pela Terra dos Andradas - no jornal santista A Tribuna, num domingo, 16 de novembro de 1952 (página 21 e 20 - ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

SANTOS NOUTROS TEMPOS

Uma viagem a S. Paulo em 1847

Costa e Silva Sobrinho

Na véspera do Natal de 1847, quando chegou a Santos o jovem norte-americano Samuel Greene Arnold, conta-nos este em seu diário, denominado Viagem pela América do Sul, que chovia copiosamente.

Hospedado em casa de Guilherme Whitaker, o mau tempo obrigara-o ao prosaísmo do cavaco com as pessoas da família, ao jogo do gamão e ao estudo do espanhol sem mestre.

A 27, entretanto, serenou o tempo. Quis ele, aproveitando a estiada, ir conhecer a cidade de S. Paulo. Destarte, no dia 28, à 1 hora da tarde, montado em mula, partia para a Paulicéia. Noutro muar, um negro bagageiro levava no orção direito da sela bastarda uma pequena mala. Dois alemães completavam o grupo dos viajores: um já entrado em anos, e o outro relativamente moço. Afora a língua materna, falavam ambos o francês. O último falava ainda o inglês. Era na realidade um farrancho divertido.

Encontravam-se meia hora depois na proximidade da Ilha de Inácio Borges, hoje sítio das Palmas, quando o negrume de uma nuvem desabou sobre eles uma grossa chuvarada. Por sorte, passavam entram defronte de umas casas. Meteram-se dentro de uma delas com as cavalgaduras e tudo, em busca de abrigo. E ali ficaram à espera que a borrasca passasse.

Prosseguiram enfim a jornada. Às duas horas da tarde atravessavam a ponte das Canavieiras sobre o Rio de São Vicente, ou, como diríamos hoje - a ponte do Casqueiro.

Às três e meia transpunham outra ponte, a do Rio Santana, o qual pensaram erradamente ser um braço do primeiro. Às quatro horas estavam no povoado do Cubatão, ao sopé da serra. Consigna a esse propósito o diário de Arnold: "Até aqui gastamos três horas, por um caminho largo, de linhas retas e muito plano, através de uma planície pantanosa, com espessas moitas e uma vegetação que aumentava a sua exuberância à proporção que nos aproximávamos das montanhas. A povoação é pequena e muito insalubre por causa do calor e dos pântanos".

Em seguida, começaram a subir o caminho fragoso da serra. Às matas  aos pássaros que viu consagrou Arnold estas linhas ilustrativas: "Uma das espessas selvas virgens do Brasil cobre as faldas da serra: encontramos árvores gigantescas e denso matagal, arbustos abertos em flores, palmeiras, bananeiras e grande número de vegetais para mim desconhecidos. A mata estava cheia de pássaros cantadores, alguns entoavam vozes muito melodiosas. Faço esta observação porque dizem que não são comuns nos trópicos os pássaros canoros! Descortinava-se da serra um belíssimo panorama lá em baixo: a rica planície pantanosa recortada de rios, Santos ao longe e, mais além, o mar".

Maravilhavam-se os cavaleiros ante aqueles quadros da natureza. Exaltavam-lhes a imaginação o rumorejo das matas, e a água das cachoeiras saltando com fragor de pedra em pedra, as frondes enxameadas de pássaros, quando de súbito uma ruidosa e grossa chuva os fustigou. Os animais às vezes se espantavam com o fulgor dos relâmpagos. Rebramavam trovões estridorosos.

A respeito do caminho da serra dá-nos o autor do diário desenvolvida notícia. Traspassemos para aqui as suas próprias palavras: "O caminho, que estava desfeito sobe pela serra geralmente entre uma margem alta e um valezinho coberto de árvores, com algumas lindas cascatas. Fora antes terraplenado, mas agora está destruído. As árvores caíram sobre ele, a terra desmoronada impede o trânsito, ou profundas escavações produzidas pelas enxurradas o atravessam, tornando a passagem difícil e até mesmo perigosa.

"Ficamos logo ensopados, e por isso já não nos interessa que a chuva dure duas ou três horas. Às seis horas da tarde atingimos o alto da serra, a uns 2.600 pés de altura. Mais adiante, num dilatado trecho, o caminho estava em vários pontos inundado.

"Muitas vezes os animais atolavam até a barriga. O alemão mais moço procurou passar um desses vaus, a besta no entanto afundou, caindo com ele dentro d'água. O meu negro arrieiro descobriu uma passagem que todos atravessaram sem perigo".

A noite tinha-se fechado no silêncio das sombras quando, às oito horas, chegavam todos eles à estalagem de um francês. Estavam molhados, encolhidos de frio e com os semblantes macerados de fome. Tirando-os daquele estado lastimoso, fornecera-lhe o hospedeiro roupa enxuta, boa ceia e leitos confortáveis e limpos.

Na quarta-feira, 29 de dezembro, às 9 horas da manhã, estavam prontos para seguir viagem. Relata-nos agora Arnold um episódio que lhe sucedera. Deixemos-lhe a vez: "Comecei com uma espécie de pas de mulets, isto é, montei na minha mula sem reparar que não estava ela com a rédea sobre o pescoço. Saiu a alimária a todo o galope, segurei  as correias da rédea e ao debruçar-me sobre o seu pescoço para passá-las e sujeitá-la ao freio, abaixou a cabeça e sacudiu para o ar as patas traseiras. E eu, airosa e friamente, me joguei ao chão para não ser cuspido da sela. A mula empinou-se e estacou".

Afora esta proeza de herói manchego, nada mais aconteceu que mereça contar-se. Eram nove e meia quando deixaram a estalagem. E às onze atingiram a povoação de S. Bernardo, "mais adiante da qual existe uma espécie de casa de verão a modo de monumento (chamado o Pavilhão), onde, em 1822, d. Pedro I tirou o chapéu e gritou - Independência ou morte! - quando se rebelou contra d. João, seu pai".

Perto de São Bernardo, explica-nos ainda o curioso visitante, "há grandes plantações de chá, a verdadeira planta da China, que se cultiva largamente nesta Província, como também o mate (chá paraguaio), que não cheguei a ver".

Às duas horas, ao dobrarem uma curva da estrada, descortinaram a perspectiva da cidade de S. Paulo, "muito bela à primeira impressão, cheia de cúpulas e torrezinhas que desde logo aparecem".

Achavam-se, afinal, às duas e meia, "na única hospedaria existente na cidade (pequeno estabelecimento). Estava o dono doente - conta Arnold -, não pôde receber-nos. Não obstante, tomei banho, troquei de roupa e fui à casa de mr. Fox, para quem trazia cartas. Sua esposa estava enferma, deu-me então um bilhete para um mr. Hopkins, também inglês, que me acomodou. E aqui estou, moído e quebrado no corpo, pois a minha mula é de trote áspero e a viagem longa... Dizem que a distância de Santos a São Paulo é de nove léguas. São quarenta milhas completas. De lá até aqui gastamos doze horas na caminhada".

Abster-nos-emos de narrar a permanência de Samuel Arnold na Paulicéia. Já discorreu do assunto no Jornal do Comércio o consagrado homem de letras e exímio historiador Afonso de Taunay.

Em casa de Guilherme Hopkins ficou dois dias. Era então costume muito usado a hospedagem graciosa em casa de amigos, de preferência aos hotéis.

A índole folgazã e a veia satírica do dr. Pedro Taques de Almeida Alvim, numa das suas famosas "Cartas de Segismundo", publicadas no Diário de S. Paulo, fazia a crítica desse hábito, hoje em dia esquecido, na seguinte sextilha:

Hóspede mais de três dias

Instalado em casa alheia

Pagando com cortesia

Almoço, jantar e ceia

Afora o quarto que habita...

                         Má visita.

Os paulistanos até 1850 detestavam os hotéis. Não se hospedavam neles, pelo imorigerado da freqüência. E aquele que o fizesse, teria de viver em luta com a suspeita de devasso. Seria visto e evitado como elemento deletério.

A promiscuidade das classes, das raças e dos sexos existente então em tais casas escandalizava a vida recatada dos homens de outrora, cheios de circunspecção e de tais retraimentos que chegavam muitas vezes a mostrar relutância em contrair amizades.

Aqueles paulistas antigos, que vão ficando cada dia mais longe de nós, não transigiam com relações dissimuladas. Os vínculos afáveis das relações, estreitava-os a probidade e a limpidez do caráter. E as expansões apenas entre os íntimos eram permitidas.

Um Ano Novo de chuva torrencial foi o primeiro de janeiro de 1848. Esperaram até as 10 horas; e, como o tempo não mudava, Arnold e os dois alemães voltaram para Santos.

"O nosso amável francês - deixou bem acentuado o visitante norte-americano - só cobrou seis mil réis por ambas as paradas de nós três em sua casa; mas fiz questão que recebesse, de minha parte, quatro mil réis, dos quais deu logo dois à criada. Demais, o sobretudo que me emprestou muito me serviu durante a chuva. Chama-se Jean Payô, é de Norbona, e se me afigura o estalajadeiro mais amável que já vi.

"Às doze horas chegamos ao alto da serra e começamos a descida. Há dois caminhos, o antigo está pavimentado e é melhor neste tempo, mas é muito íngreme. O novo está pavimentado só nalguns trechos e noutros está macadamizado. É mais largo e menos empinado, mas se acha horrivelmente estragado pelas chuvas. Num ponto está completamente destruído e tivemos logo de retornar ao antigo.

"Na serra choveu mais do que nos outros lugares. O terrapleno abateu-se, formando valetas. Num lugar onde tinham sido arrastados pelas águas os pranchões de uma ponte e haviam colocado uns troncos de árvores em substituição, tivemos que apear de nossos muares. Fizemos com algum trabalho passar os animais, e chegamos ao Cubatão, ao pé da serra, às duas horas. Com mais duas horas de caminho plano e reto, estávamos finalmente em Santos. Foram ao todo seis horas e meia de larga e trabalhosa peregrinação".

Esse caminho devia, entretanto, estar bem melhor, pois tinha passado por importantes reparos no ano anterior, quando por ele teve de passar d. Pedro II.

Sabe-se, de fato, a bom saber, que no dia 25 de fevereiro de 1846 partiram de Santos em direção a S. Paulo, às 6 horas da manhã, os imperiais viajantes em coches acompanhados do marechal de campo Lima e Silva, presidente da Província, dos membros da Assembléia Provincial e de diversas outras pessoas.

Tendo pernoitado no "Ponto Alto", foram ali cumprimentados pelo senador Vergueiro, deputado Rafael Tobias e outras figuras de destaque. Prosseguiram a sua viagem no dia 26. Pararam um pouco em S. Bernardo, na casa do alferes Francisco Bonilha, onde presenciaram a manipulação e torrefação do chá.

A conservação da estrada de São Paulo a Santos se fazia naquela época por administração. No aludido ano de 1846 ela renderam 52 contos e consumira 66.

O dr. Vicente Pires da Mota, no seu relatório de presidente da Província, dizia a 15 de fevereiro de 1851 que a estrada da serra era uma obra gigantesca, a maior da Província e de maiores vantagens para o comércio. Oferecia trânsito fácil e cômodo. E por ela subiam e desciam carros pesadamente carregados.

Um lustro mais tarde, no discurso com que abriu a Assembléia Legislativa, assim se enunciava a respeito da aludida estrada o vice-presidente da Província, dr. Antonio Roberto de Almeida: "Está com muito adiantamento, e em breve será concluído, o aterrado que, começando no Cubatão, vem unir-se quase à serra da Maioridade, melhoramento este desde muito reclamado, e do qual foram incumbidos os operários alemães.

"Fizeram-se na serra reparos de mera conservação, empedrando-se alguns lugares suscetíveis de desmancho, e removendo-se os obstáculos causados pelos desmoronamentos, que de quando em quando nela ocorrem.

"Continua o macadamizamento da estrada aquém da serra, tendo já saído no Zanzalá o atalho do Rio das Pedras, e estando feita uma ponte com cabeceiras de pedra sobre esse rio. Trata-se ao mesmo tempo de calçar com pedras os esgotos laterais dessa porção de estrada construída com segurança e perfeição.

"Existe em S. Bernardo uma turma de operários portugueses que tem a seu cargo a reparação da estrada desde esse ponto até o Zanzalá.

"Tendo-se em vista melhorar toda a estrada pelo sistema começado do alto da Serra para cá, e sendo indispensável nele fazer atalhos importantes, de que se não pode prescindir para evitar a péssima localidade da atual, que se não presta à construção de bom caminho, convém não fazer nela obras custosas, que terão de ser em breve abandonadas, e tratar somente de torná-la transitável com segurança.

"Devo em último lugar declarar-vos que muito se tem melhorado o aterrado do Cubatão a Santos, sendo de grande vantagem o lanchão que se comprou para conduzir o cascalho preciso".

Era assim há uma centúria a Via Anchieta, essa expressão do gênio viril, do espírito laborioso de um povo que tem medido sempre as suas obras pela sua estatura gigantesca.

A Tribuna também publicou este artigo na série Santos noutros Tempos, na páginas 20 e 21 da edição de 19 de outubro de 1952 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

Um visitante norte-americano

Costa e Silva Sobrinho

O grande escritor e político argentino, Domingos Sarmiento, quando era ministro plenipotenciário de seu país nos Estados Unidos, foi convidado certa vez para fazer uma conferência na Rhode Island Historical Society.

Discorrendo sobre o tema escolhido, ao qual deu o título "América do Norte e América do Sul", disse ele o seguinte, neste trecho: "Permitiu-me a obsequiosa hospitalidade do nosso vice-presidente, o honrado Samuel Greene Arnold, ver na sua biblioteca numerosos documentos argentinos, inclusive escritos meus quase olvidados. Na convivência que tive com ele, notei que falava regularmente o espanhol. E, convém que se saiba, perlustrou a América do Sul de ponta a ponta, tendo visitado a República Argentina, onde jantou com o famoso tirano Rosas, e freqüentou com assiduidade amigos pessoais meus, como os Ocampo e outros, cuja lembrança me é saudosa.

"Vi rememorados no seu livro de apontamentos de viagem os incidentes principais, os nomes e aspectos dos lugares, o feitio moral da sociedade, o governo e os fatos coetâneos..."

Perante esta referência - "no seu livro de apontamentos de viagem", que acabamos de ler acima, quem não sentirá uns alvoroços de curiosidade, por saber o paradeiro de tal livro?

Foi o que aconteceu com David James, que auxiliado pelo professor Lawrence Wroth, conservador da Biblioteca de John Carter Brown, de Providência, conseguiu encontrar os descendentes do senador Arnold, atuais possuidores do manuscrito.

Assim, pôde ser impresso aquele diário de viagem, que Sarmiento havia folheado em casa de Arnold.

Além disso, possuímos dele agora uma esplêndida tradução espanhola, feita em Buenos Aires, com prólogo de José Luís Busaniche e prefácio do citado David James. Intitula-se "Viagem pela América do Sul (1847-1848)", por Samuel Greene Arnold, um jovem norte-americano de Providência (Rhode Island) que o escreveu para sua noiva Luisa Grindat, no período de 1847 a 1848.

É a descrição da viagem feita de Southampton ao Brasil com escala na Ilha da Madeira, e depois ao Rio da Prata e ao Chile pela cordilheira dos Andes. Seu autor, figura de prestígio no estado de Rhode island, onde chegou a vice-governador, escreveu também diversas obras históricas. Contava ele apenas 25 anos quando esteve no Brasil.

Para nós, que vivemos às orlas do Oceano, as páginas mais interessantes desse diário são as referentes a Santos.

Samuel Arnold aqui chegou pelo Carlotta, que, sob o silêncio da meia noite do dia 24 de dezembro de 1847, uma sexta-feira, fundeou defronte da Fortaleza da Barra.

Um filho de Guilherme Whitaker, vice-cônsul britânico e anteriormente vice-cônsul americano nesta cidade, agente a quem Arnold trazia cartas de mr. Reid, do Rio, lá estava à sua espera no desembarcadouro. Acompanhou-o até a casa de seu pai, onde nada faltou para bom gasalhado do hóspede.

Era de fato o velho Whitaker um homem amável e simples, que costumava receber em sua casa os estrangeiros que lhe vinham recomendados, pois em Santos não havia então nenhum hotel que prestasse.

O jovem yankee, que devia seguir no mesmo dia para São Paulo, aqui ficou detido pelas chuvas. Olhando para as vidraças embaciadas pelo aguaceiro, escreveu uma copiosa carta à sua noiva. Depois de notar que aqui almoçavam às 8 horas e ceavam às 3, consignou ele no seu diário estas linhas à família Whitaker:

"A senhora Whitaker é brasileira, tem duas filhas já crescidas; a maior, Gabriela, fala o inglês; a menor, Angela, é muito bonita e não o fala. Tem cabelos negros, compridos e penteados com apurado gosto, como é hábito das brasileiras. Olhos magníficos e lindos braços, usa ela mangas curtas como é costume aqui. O casal tem também dois rapazes, que se parecem muito, e um deles, o de nome Henrique, fala perfeitamente o inglês. O outro, chamado João, fala apenas um pouco. A senhora Whitaker não o fala. São pessoas muito agradáveis, mas não o demonstram. Vivem com uma simplicidade muito brasileira".

Em seguida fez Arnold uma visita ao cônsul americano, sr. Black, para quem trazia cartas de Birckhead e de Maxwell, Wright & Cia. Achou-o bem doente, com uma tísica adiantada, que o reduzira a um feixe de ossos envolto em molambos.

E rematou o registro do dia deste teor: "A noite de Natal anterior passei-a em Londres com um tédio medonho, mas hoje estou melhor... Choveu torrencialmente quase o dia inteiro".

No dia 25 de dezembro, sábado, o tempo manteve-se inalterável. A alma do nosso visitante continuou também amortalhada num burel cinzento. Assinala o diário uma observação, que julga importante, feita por Guilherme Whitaker a respeito de certos usos que ninguém conseguia modificar. "Antigamente, teria dito Whitaker, cortavam-se as madeiras e escoavam-se os alagadiços antes das chuvas; pois até hoje assim se procede".

"Ontem - anota ainda o diarista -, à meia noite, houve grande festa na igreja Matriz. Perdemo-la, entretanto, por causa da chuva. E hoje ninguém saiu de casa porque ainda está a chover".

Mais uma carta para a noiva e a anotação de haver ceado com o proprietário e comandante do navio Carlotta, com quem veio do Rio. E agora torna a tratar da família do seu nobre hospedeiro, consagrando-lhe mais estas linhas:

"Conversei um pouco com a filha mais velha do sr. Whitaker, Gabriela, que fala bem o inglês. É uma jovem de 20 anos, de boa aparência. A segunda, Angela, é muito bonita, estava hoje toda vestida de branco e tinha um sorriso alegre e perfumado como um ramo de flores. Joga bem o xadrez. O sr. Whitaker tem 11 filhos ao todo. O filho mais velho, de 28 anos, foi educado nos Estados Unidos e  mora na fazenda no interior. Todos saúdam os pais com um beijo no dorso da mão, como se fez no baile com o Imperador. João é literato e pensa dedicar-se ao foro. O sr. Whitaker chama-se William, tem 53 anos, e está aqui há 30".

De Guilherme Whitaker surdiu efetivamente numerosa prole. Um trabalho recente do dr. Edmur de Aguiar Whitaker, sobre "A Família Aguiar Whitaker", dá-nos do assunto detida notícia. Eis a pauta dos mencionados onze filhos, com as datas certas dos respectivos nascimentos: 1 - João Guilherme, 1824; 2 - Gabriela, 1826; 3 - Henrique, 1828; 4 - Angela, 1831; 5 - Antonio Afonso, 1833; 6 - Jorge, 1835; 7 - Frederico, 1837; 8 - Artur Horácio, 1840; 9 - Francisca, 1842; 10 - Brasília, 1845; e Teolinda, 1846.

Continuemos a perlustrar o diário de Arnold.

No dia 26 de dezembro apresenta-nos ele apenas trivialidades. Cedamos a palavra ao próprio autor, que fará menção simplesmente disto: "Chove pela terceira vez, o dia todo. Mas eu e o sr. Whitaker demos um giro. De tarde chegaram diversos moços, alguns deles brasileiros (na realidade são todos brasileiros e das relações do sr. Whitaker). Não fizeram outra coisa senão jogar baralho, gamão, tocar piano e conversar".

Não sofre dúvida que, desta feita, o autor deixou passar em silêncio o acontecimento mais importante do dia. Referimo-nos ao casamento de Antonio Augusto da Costa Aguiar com d. Narcisa Cândida de Andrada, casada em primeiras núpcias com seu primo Francisco Eugenio de Andrada, e filha de José Bonifácio, o Patriarca.

Realizou-se às 5 horas da tarde, na igreja Matriz. Foram padrinhos o comendador Diogo José de Carvalho e o dr. Martim Francisco Ribeiro de Andrada.

A noiva, fruto da última aventura amorosa de José Bonifácio, em Portugal, e já depois de casado, tinha vindo com o pai para o Brasil em 1819. D. Narcisa, a esposa de José Bonifácio, doce figura de mulher, havia perdoado aquela fraqueza do seu "querido Andrada". Teve destarte a menina o seu próprio nome, chamou-se também Narcisa, "aliás Narcisa Cândida, romântica homenagem do marido à mulher enganada, mas generosa", como elegantemente notou Tarquínio de Sousa (José Bonifácio, p. 87).

No seu testamento, feito no Rio de Janeiro, na ilha do Paquetá, em 9 de setembro de 1834, refere-se o velho Andrada várias vezes a esta filha. Vê-se ali que ele possuía em grau heróico o amor paterno. Os seus assíduos cuidados para com ela ressumbram em todas estas linhas:

"Declaro mais que tenho outra filha natural, chamada d. Narcisa Cândida de Andrada, a quem sempre reconheci e criei como minha verdadeira filha, e se acha legalmente legitimada.

"Nomeio para tutor e curador de minha filha d. Narcisa Cândida de Andrada a meu prezado irmão Martim Francisco Ribeiro de Andrada, a quem peço que, enquanto esta minha filha não tomar estado, a não separe da companhia de sua tia d. Maria Amália Nébias, em atenção ao amor de mãe com que a tem tratado, serviço que lhe tem prestado, e confiança que nela faço.

"Declaro que deixo por universal herdeira de minha terça a minha filha d. Narcisa Cândida de Andrada etc.

"Deixo igualmente os meus serviços (se Sua Majestade Imperador os julgar dignos de alguma remuneração), a José Maximiano Batista Machado, na condição de se verificar o casamento com a dita minha filha d. Narcisa Cândida de Andrada, por este a ter pedido para sua esposa e eu o julgar muito capaz; porém, no caso de por algum incidente se não verificar com ele o dito casamento, passarão à pessoa que com ela casar com aprovação do tutor".

Poder-se-ia dizer: José Bonifácio, que tinha tanto recato em afastar dos olhos os amores inconvenientes de d. Pedro I, fora no rescaldo da mocidade, e ainda depois, homem dócil aos atrativos do sexo. Quem teve tantas severidades nos lábios, não devia esconder concupiscências no coração. Quase da mesma forma se pronunciou Tarquínio de Sousa, quando escreveu:

"O homem que se dizia tímido na presença de senhoras não escondia a facilidade em abrasar-se diante de raparigas mais acessíveis ou conscientes dos próprios encantos e deles tirando partido sem maiores escrúpulos".

Não esqueçamos, porém, que a prerrogativa de remitir aquela falta cabia em primeiro lugar à esposa. Esta, que pôde descer a profundos níveis na análise da vida do cônjuge insigne, lha perdoou. A História não deverá ser menos indulgente.