Nilson Oliveira Santos veio há 10 anos de Nossa Senhora das Dores, a
72 km de Aracaju, em busca do pai com quem conviveu até os 7 anos
Foto: Vanessa Rodrigues, publicada com a matéria
Um Severino nas ruas de Santos
Migrante nordestino que veio em busca do pai construiu uma história de vida recheada de emoção, desafios e solidariedade
Christiane Lourenço
Editoria de Pauta e Reportagem
A
história que aqui, hoje, será contada é de um Severino do século 21, diferente do personagem que deu vida às palavras de João Cabral de Melo Neto em
seu famoso Morte e Vida Severina, poema escrito entre 1954 e 1955, e que retratou a saga de um nordestino do sertão com destino ao litoral.
Nosso migrante fugiu da saga da morte severina "que é a morte de que se morre/de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte/de
fome um pouco por dia".
Nilson, vulgo Dedé ou Coquinho, de sobrenome Oliveira Santos, 28 anos, é um dos dois sobreviventes de oito irmãos que nasceram em
Nossa Senhora das Dores, município sergipano de 24,5 mil habitantes a 72 quilômetros de Aracaju. A fome e até a febre amarela foram os algozes dos
filhos de dona Menininha, como é conhecida, e de seo Joel, o motivo principal de toda a aventura que trouxe nosso Severino a Santos.
Não é preciso dizer que a vida nunca foi fácil para Nilson, que para ir à escola precisava caminhar três quilômetros (motivo pelo qual nunca
completava o ano escolar), que desde muito pequeno trabalhava na roça como gente grande, que vendia picolé a R$ 0,10 caminhando descalço pelas ruas
atrás de um freguês e que aos 7 anos viu o pai ir embora de casa, fugindo da miséria.
- Meu filho, ainda é muito cedo para você entender certas coisas, mas quando você for maior poderá me procurar.
A última conversa entre eles nunca saiu de sua cabeça. Ele resistiu às tantas vezes que a mãe ameaçou dá-lo não por falta de amor, mas por medo da
morte e da fome. Daqui para frente, poderemos ver em muitas passagens o quanto a perseverança manteve Nilson vivo.
Se como dizem por aí o brasileiro não desiste nunca, ele se esforçou para fugir "da emboscada antes dos vinte" e da fraqueza e da doença "que
a morte severina/ataca em qualquer idade,/e até gente não nascida". Trabalhou até como segurança de rua aos 14 anos em troca de R$ 150,00 por
mês. Este tempo eram idos do final dos anos 90, quase véspera do novo século.
As palavras do pai continuaram reverberando até o dia que aceitou o convite de um tio e veio parar em Suzano (SP), com a promessa de trabalho –
ainda que na roça -, mas um pouquinho de dinheiro no bolso, o que seria suficiente para juntá-lo e finalmente sair em busca do seu objetivo.
Um ano se passou e nada mudou. Os pés continuavam descalços, só que agora congelavam nas madrugadas de colheita durante o inverno. "Ele nunca me
deu nada; nem roupa, nem calçado. Também não estudei; era só trabalho das 4 às 10 da noite".
O despertador era a chama de um palito de fósforo colocado no meio dos dedos ainda repousados na cama.
- Acorda!
Desiludido, sem dinheiro, quase escravo… O socorro veio da mãe, que vendeu a casinha em que morava e veio buscar o filho retirante. Lá foi ele de
volta para Sergipe, aí já com 17 anos, com os hormônios à flor da pele, suficientes para se engraçar com a própria prima e ter seu primeiro filho, o
Carlinhos, ou José Carlos.
Nada mudou com relação a trabalho, perspectivas ou na despensa de casa. Os R$ 7,00 que ganhava por dia nos bicos que fazia mal davam para a
comida.
Foi aí, perto de seus 18 anos, que um amigo de seu pai chegou em Nossa Senhora das Dores dizendo que Joel estava em Santos, cidade, aliás, reduto
para sergipanos. Quantos não vemos por aqui diariamente!
Com pensamento fixo na viagem que faria, só faltava o dinheiro. Nem o filho que tinha nascido o sossegou.
Tanto fez que conseguiu um financiamento para pequenos pecuaristas que deveria ser investido num pedaço de chão de sua avó. Ao invés dos porcos,
galinhas e outras criações, o que se realizava ali era o sonho do menino de 7 anos.
"Dos R$ 2 mil que consegui, viajei com R$ 1.300,00. O resto deixei para minha mãe e para a mãe do meu filho". A pressa e a inocência passaram-no
para trás. Ele nem pensou em pegar o endereço do pai com o amigo ou pedir que ele o avisasse. Na verdade, nem perguntou se o homem sabia onde vivia
Joel. "Achei que ele ligaria para o meu pai".
A viagem que começou em uma sexta-feira terminou na segunda, às 4 da madrugada, na rodoviária de Santos. Só então é que o peso da cidade grande
caiu sobre seus ombros. Os olhos arregalados não conseguiam entender por que seu pai não estava ali.
O ano era 2001 e nesta data Santos já tinha mais do que 17 vezes a população de sua terra natal. A espera durou até as 11 da noite, um dia inteiro
sentado na rodoviária.
"Saí dali caminhando pela São Francisco". Hoje, dez anos depois, ele conhece os nomes das ruas e avenidas como um
santista da gema. Até porque foi apresentado a elas por Gardenal, uma nova personagem nesta história, que daqui para frente passará a fazer
parte da vida de Nilson, como sua companheira inseparável.
O aluguel do primeiro mês de um quartinho de cortiço nas proximidades da Conselheiro Nébias estava garantido. Agora, a meta era achar Joel. O
dinheiro acabava na mesma velocidade com que os dias de teto garantido voavam. Sem pai, sem dinheiro e sem ter onde morar, o nosso migrante,
ex-lavrador e quase pecuarista, passou a dormir nas ruas, coincidentemente, em frente a um ferro-velho e depósito de material reciclável.
O ir e vir de carrinheiros bastou para lhe dar uma nova profissão, ou melhor, um meio de sobreviver aqui. No começo, a carroça era emprestada.
Depois, por R$ 40,00, comprou um eixo de rodas, que se juntou às madeiras encontradas nas ruas, que finalmente deram a forma a Gardenal, sua
carroça, financiada, ainda, por um soldador que lhe cobrou R$ 80,00 pelos serviços.
Pronto, o Dedé da dona Menininha, protegido de Nossa Senhora das Dores, agora era o Coquinho, um carrinheiro que conseguiu sua própria carroça e
que desviou de todas as formas das drogas e do álcool que dominam quem vive nas ruas.
"Meu pai sempre me disse: - Filho, seja sempre o homem que seu pai é. Nunca use drogas, não beba e não mate. Peça, mas não roube".
Tinha passado um ano e meio quando um homem o viu catando papelão e perguntou se ele poderia recolher os recicláveis do Hospital Ana Costa (HAC).
"Acho que foi Deus que colocou ele no meu caminho". Esse "ele" é o diretor técnico do hospital, o médico José Luiz Boechat Paione.
Mesmo com um quartinho alugado num cortiço da Braz Cubas, Coquinho – apelido em referência à sua cabeça então
raspada – passou a dormir naquelas imediações, quase sempre na esquina das ruas Pará e Espírito Santo. "Era mais perto".
Por seis anos, esse severino-catador se sustentou praticamente dos 200 quilos de papelão, caixas de remédio e bulas que precisam ser descartados
diariamente pelo hospital. Trabalhador e sem vícios, fez amigos. Conseguiu alugar um quartinho num cortiço da Braz Cubas por R$ 250,00.
O trabalho pesado também lhe rendeu uma moto nova, com prestações de R$ 330,00 por mês e que, depois, virou duas mais velhas, que foram
consertadas e revendidas. Estava aí um novo modo de fazer dinheiro, mas sem abandonar Gardenal.
Uma pausa; por que Gardenal? "Ela era louca igual eu (sic)! Eu colocava 800 quilos nela e saía puxando". Mais do que gratidão,
Coquinho-Nilson-Dedé-Severino faz uma declaração de amor à sua amiga: "ela é tudo para mim".
Voltando à história, outra companheira passou a fazer parte de sua vida. Creonice, mulher mais velha, que fisgou seu coração e lhe deu seu segundo
filho, José Henrique, hoje com 2 anos e meio.
Quanto mais ele trabalhava, mais ganhava a confiança de funcionários do hospital. Até o dia em que decidiu aceitar conselhos e entregar um
currículo. Era o sonho do trabalho com carteira assinada se aproximando.
Mas e quanto ao seu principal objetivo em terras santistas?
Bom, a procura pelo pai ficou em segundo plano, ou melhor, quase esquecida. Até porque anos antes ficou sabendo que o pai teria tido um tumor no
cérebro e podia já não estar mais vivo. Aquele homem que da última vez tinha dito que seo Joel estava em Santos já havia morrido. Portanto,
nada de pistas novas, nada de pai.
Mas não dava para reclamar. Era 8 de fevereiro de 2010 quando começou a bater cartão como funcionário de higienização do HAC. A única condição era
que continuasse a ser responsável pela coleta e reciclagem do lixo limpo do hospital. Negócio fechado.
Empregado, com direito à renda extra dos papelões, Nilson – agora já não cabe mais o Coquinho – até comprou uma Kombi velha, enferrujada,
atenuando o cansaço de Gardenal e dele mesmo, que agora tem dois empregos.
Foi justamente em uma das viagens até o depósito de papelão, há apenas quatro meses, que, numa parada para um gole de água, todo seu sofrimento
fez sentido.
- Eu te conheço, disse um homem.
- Eu também te conheço, respondeu.
- Você não é o filho da Menininha, neto da Jandira?
- Sou.
- Eu sou seu pai!
Como explicar tanta coincidência depois de 10 anos de procura? Não tem como explicar. O longo abraço fez o tempo voltar, fazer tudo valer a pena.
Nesta segunda-feira, Nilson vai realizar seu último sonho. De férias pela primeira vez, ele embarcará em um avião para Aracaju para reencontrar
Carlinhos, o filho que ficou para trás.
"Eu cheguei até aqui, porque nunca desisti. O que posso querer mais da vida? Só felicidade". |