Paraná vendia chá mate com seu carrinho, entre a Avenida Conselheiro Nébias e o Canal 3, no
Boqueirão
Foto: Alberto Marques, em 22/1/2002, publicada com a
matéria
Um símbolo do Boqueirão que se foi
Mamode Hassan, o Paraná, carismático vendedor de chá mate por mis de 50 anos na orla
da praia, morreu na semana passada
Ronaldo Abreu Vaio
Da Redação
Um lutador se foi. Dos ringues, das
trincheiras, da vida. Seu nome de batismo era Mamode Hassan. Seu nome de fato, Paraná. Assim ficou conhecido no
Boqueirão, onde, por mais de 50 anos, estacionou seu carrinho de chá mate, entre o Canal 3 e a Avenida Conselheiro Nébias. Agora, vai estacionar
o seu carrinho de mate no céu: há uma semana, aos 87 anos, Paraná se foi.
Hoje, às 20 horas, celebra-se a missa de sétimo dia, na Igreja do Embaré
(Avenida Bartolomeu de Gusmão, 32). Missas são uma forma de lembrar, de reverenciar. Pois há de ser na memória dos tantos amigos que fez vendendo
mate, que Paraná permanecerá vivo.
"Quando ele começou, no início dos anos 60, a praia não era como hoje, não tinha muita gente. Ele
sempre gostou de esporte, ele corria na praia, as pessoas começaram a segui-lo. Foi um precursor de correr na praia", orgulha-se um dos três filhos,
Vladimir Hassan, de 45 anos.
Paraná chegou a Santos em 1959. Antes de começar na praia, vendeu mate na Praça dos
Andradas e na esquina da Avenida Epitácio Pessoa com a Rua Oswaldo Cruz. O carrinho de mate foi sua marca durante a maior parte da vida. Vladimir,
que é arquiteto, orgulha-se em dizer que o pai criou os três filhos graças ao carrinho.
Mas houve vida antes do chá mate. Houve aventuras. E Paraná passou por algumas dignas da
ficção.
Segunda Guerra - Nascido em 1922, em São Manoel, interior de São Paulo, de mãe polonesa e
pai árabe, em tenra idade teve que passar pela primeira grande mudança em sua vida.
Era início dos anos 30, o mundo acabara de sofrer a crise da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. No
Brasil, a situação também apertou. "Meu avô começou a mandar a família para a Palestina, aos poucos, pra ver se estava melhor".
Assim, aos 10 anos, Paraná foi embarcado, sozinho, em um navio rumo ao Oriente Médio.
Na Palestina, foi reunido à mãe e aos cinco irmãos. O tempo foi passando, as coisas se assentaram.
Paraná foi crescendo. Até que sobreveio a Segunda Guerra Mundial.
"A Palestina era colônia inglesa na época. Ele combateu no Norte da África, na região do Egito",
conta Hassan. Ele também revela que faltava ao pai um dos lóbulos, na orelha esquerda, amarga recordação da guerra. "Ele dizia que uma bala passara
ali".
A guerra terminou. Em 1948, foi criado o Estado de Israel, exatamente na área onde a família
estava assentada. Os conflitos entre árabes e judeus começaram. Foram-se acirrando. E, mais uma vez, a família teve de se mudar. Resolveram fazer o
caminho inverso e voltar ao Brasil, um país em paz, livre de guerras e conflitos. O destino foi a cidade de Paranaguá, no Paraná. "Havia uma grande
colônia árabe, resolveram ir pra lá".
Conversar |
"Não era só um trabalho, era um ponto de encontro. s pessoas paravam ali para conversar.
Era a vida dele" |
Vladimir Hassan, filho de Mamode Hassan, o Paraná |
Cidadão santista - O episódio que o marcaria por toda a vida em Santos veio daí. Em
Paranaguá, para sobreviver, juntou o útil ao agradável. Como gostava muito de esporte, ganhou alguns trocados em partidas de luta livre ou boxe. era
um dos lutadores. Jogou futebol no Rio Branco, equipe da primeira divisão do Paraná. Depois, também foi caixeiro viajante e, por fim, vendeu caldo
de cana no mercado da cidade.
"Tinha personalidade forte, começou a se envolver com política, criou alguns desafetos e teve que
ir embora da cidade".
Foi então que Santos apareceu em seu caminho. A idéia era apenas embarcar aqui em um navio, para
Ilhéus, na Bahia. Mas foi ficando. E ficou.
Fixou-se. criou um identidade quase indissociável do Boqueirão. Afinal, de domingo a domingo,
estacionava seu carrinho de mate por ali.
Até que o mal de Alzheimer se manifestasse. Então, em 2006, um dos irmãos de Vladimir assumiu o
carrinho. Mesmo assim, o pai, todos os dias, religiosamente, acompanhava o filho. "Não conseguia se afastar, ficava ao lado do meu irmão".
Um grande momento na vida de Paraná aconteceu em 1997, quando foi agraciado com o título de
Cidadão Santista. Título conquistado graças ao carrinho, que tanto amava. "Não era só um trabalho, era um ponto de encontro. As pessoas paravam ali
para conversar. Era a vida dele". |