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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - PERSONAGENS
Tipos curiosos (18)

Este artigo de um dos expoentes da então futura Semana de Arte Moderna, Menotti del Pichia, foi publicado no jornal santista A Tribuna, onde ele mantinha coluna regular, em 8 de fevereiro de 1920:


Imagem: reprodução parcial da matéria

CRÔNICA
Massaranduba

Menotti Del Picchia

Em S. Vicente, num "bar", onde bebericava aos golinhos um cálice da branca, apresentaram-no.

- O Massaranduba.

O grande caboclo sexagenário ergueu-se, firme, perpendicular, solene. Saudou-me discretamente.

- É um tipo social de antigo santista. Têmpera velha; velho cerne e velha estirpe.

Examinei-o. O seu arcabouço equilibrado era forte; nariz grande e chato, acusando a mescla da raça negra no seu sangue indígena. Dos antigos portugueses colonizadores, guardava os olhos negros e vivos, a pigmentação tendente à raça caucasiana e as maneiras senhoriais e seguras.

Uma barba ríspida e grisalha contornava-lhe o mento. Sobrancelhas fartas.

- É dos Graça, povoadores das cercanias de S. Vicente. Foi rico e perdulário. Achegado ao prazer e à festança...

Muito nacional, tudo isso. Interroguei-o. Ele falou:

Descendia de uma família ilustre, pela sua tradição e riqueza. Seus avoengos eram senhores de muitas terras e tinham poder e linhagem. Plasmados em músculos de aço, entregues à faina do desbravamento, os marcos de suas posses entravam litoral a dentro e a prole crescente alargava a lenta conquista. Tinha memórias vagas, truncadas, algumas nítidas, desse tempo e dessa gente. Lembrava o avô, patriarcal e duro, capitaneando a família com a rudeza e o respeito dos velhos chefes guerreiros. Amestiçada a descendência com o bugre, melhor se adaptara ela à terra.

Nesse tempo, a sua fazenda dava-lhe foros de senhor feudal; socorria os amigos, abrindo mão dos seus haveres sem exigir como arrha (N.E.: SIC. A palavra portuguesa arras, do latim arras, significa "penhor, dote que o noivo assegura à esposa". Foi portanto usada no sentido de garantia, penhor) do negócio vistoso a palavra, que era uma chancela inquebrável. Era essa a época feliz em que o fio de barba valia de escritura, tão honrada era a gente e tão claros os costumes.

O dinheiro emprestado ou ganho vinha em canoas, cunhado em moedas rudes e pesadas de cobre. Nelas, as armas da colônia; primitivas e mal gravadas, alteavam-se na chapa metálica, que mais valia pelo seu peso que pelo seu cunho.

A família, amontoada nas casas da fazenda, vivia numa promiscuidade de Arca. A escravatura, animalizada no eito, confundida com as reses, tinha uma moral primitiva e nebulosa, que não distinguia o incesto e não evitava a mestiçagem. O abastardamento entre o luso e o negro era perdoado, tal o tumulto dessa vida de acampamento, sem lei nem roque.

Entretanto, por uma ética estranha e sagrada, certas leis de honra eram inflexíveis e rígidas. Os rapazes pubescentes e as raparigas viviam em comunhão ingênua, sem sentirem as solicitações do sexo, adormecidos os desejos numa ignorância quase edênea. Não havia, como hoje, essa escola sutil de perversão, esse envenenamento insidioso e roaz de costumes, que inicia os moços no pecado antes que a natureza lhes dê força de criar vidas. Até aos dezoito anos, a indumentária era ridiculamente embrionária, um camisolão de algodãozinho, longo como uma samarra, a esconder uma nudez entrevista na carreira ou exposta nos banhos comuns aos dois sexos.

Apesar dessa promiscuidade, o respeito, mais filho da ignorância que da bondade ingênita, respeitava a baliza natural dos sexos.

- Bons tempos... monologava Massaranduba.

No seu olhar miúdo e triste, uma névoa de saudade enevoava o fulgor das suas pupilas paradas. Revia a fazenda antiga, o engenho, a moenda, a terra desbravada e ainda dolorida pelos sulcos das enxadas. O gado lerdo, arrastando nos carreadores os carros pesados, que gemiam sobre o peso dos toros ainda não lavrados. Revia as senzalas escuras, a casa da fazenda, alva de cal e garrula de gaiolas de tuins e crianças...

- Quantos anos?

- Sessenta e cinco.

Era ainda hercúleo e firme, esse torso bronzeado, em cujas veias corria, mesclado e indefinível, o sangue de três raças. E suas feições severas e incisivas marcavam os estigmas dessas três nacionalidades tão diversas na origem e no clima. E naqueles olhos e no mover das maxilas, eu cria ver o aborígine bravio; ora o cabinda triste e resignado; ora o espírito de rapinagem e de conquista do luso audacioso e heróico, do tempo dos navegadores.

- Até mais ver, Massaranduba...

- Até mais ver, seu doutor.

Deixei-o naquele "bar", onde um italiano engrolava uma língua babélica, num sotaque indefinível. E pareceu-me que esse velho, rígido como a madeira que lhe serve de apelido, fosse um dos últimos tipos raciais dessa estirpe mesclada e forte que fixou, em S. Vicente e Piratininga, a glória e o esplendor da nossa pátria.


Imagem: assinatura do cronista, em clichê, no final de sua crônica