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TIPOS DE RUA - II
O Cabo de Machado
Ari N. Barone
Alto, magro, preto, bem preto mesmo, cabelos já um tanto
grisalhos (e dizem que "preto, quando pinta, tem três vezes trinta"), percorria ele todos os dias as ruas da cidade, transportando às costas pesados
feixes de cabos de machado.
Esta era a sua profissão: passava dias e dias numa fazenda de abastado agricultor da zona,
embrenhando-se pelas matas em busca da boa madeira para fazer cabos de machado. Ela outorgou-lhe, com o tempo, o apelido pelo qual todos o
designavam: "Cabo de Machado".
Era, de um modo geral, delicado, atencioso, embora não tivesse as faculdades mentais de todo
perfeitas. Não era louco, nem bobo e nem ao menos idiota: era um pouco de cada coisa, simplório e confundia-se com as próprias idéias, sem ter
grandes aspirações na vida.
As poucas dezenas de mil réis que talvez alcançava mensalmente, vendendo suas dúzias de cabos de
machado, davam para sustentá-lo quase miseravelmente, mas davam.
Seu teto era o seu chapéu, todo esburacado, velho, sujo,
sem cor; sua cama, um banco de uma das praças, se não chovia; se chovia, abrigava-se nos coretos das praças; sua família, nunca a mencionava, mas
deviam ser tão-somente os cabos de machado que ele mesmo fazia e o ajudavam a viver. De seu, nada mais tinha de que os míseros andrajos que o
cobriam e que de vez em quando eram trocados por outros menos rotos que algum filantropo lhe oferecia.
***
Cabo de Machado era bem divertido e nos
proporcionava momentos de bom humor quando começava a mostrar os seus conhecimentos. Apologista da liberdade, depois de dizer algumas frases
truncadas, em latim e francês, emitia a sua opinião sobre os direitos do homem.
Suas palestras, invariavelmente, começavam assim: "Naturitatis,
negaripotis; oives, macio, tiric-tac; todo cidadão tem seu direito livre", que, em língua de gente, quer dizer: "Quod Natura dat, nemo negare
potest; Oui, Monsieur, tiric-tac (este tiric-tac seria invenção sua ou o complemento da frase em francês, mas que, nem ao menos por
semelhança, conseguimos descobrir o que era); todo cidadão tem seu direito livre", frase final, esta, que era sua e pronunciada com o dedo indicador
apontado para o alto.
***
O preto velho não me sai da memória; vejo-o claramente,
andar ligeiro, pés descalços e esparramados, feixe de cabos de machado às costas, negociando, aqui e ali, arriando muita vez sua carga pesada para
tomar um "traguinho", muito embora não fosse visto amiúde embriagado.
Mineiro de nascimento, ao declará-lo inflava o peito orgulhosamente, como se nascer nesta ou
naquela região do Brasil desse o direito de ser mais brasileiro que os outros. Coisas de preto velho...
Um dia, talvez por engano da polícia ou talvez mesmo por bebedeira ou distúrbios, encarceraram o
Cabo de Machado. Recolhido à mesma cela de um louco, passou sustos terríveis durante toda uma noite. Mais do que assustado, ele ficou
desiludido, porque não podia entrar em sua cabeça a idéia de que ele, o arauto da liberdade, ali estivesse engaiolado, preso entre quatro paredes.
Solto, porém, continuou sua vida como se nada lhe houvesse
sucedido, apregoando os seus cabos de machado com um feixe deles às costas, andar ligeiro, repetindo o seu estribilho: "naturitatis, negaripotis..."
***
A filosofia do velho Cabo de Machado era cheia
desse desprendimento das almas descuidadas, que não têm preocupações de nenhuma espécie: seu espírito, liberto dos pensamentos sérios, devia
proporcionar-lhe uma vida sem atribulações.
Com trabalho ou sem trabalho, com pão ou sem pão, com cama e teto ou sem eles, viver, para ele,
devia ser a coisa mais agradável do mundo. Ele era, como queria que todos nós o fôssemos, livre, porque não vivia preso a todas essas convenções
sociais que fazem da vida do homem uma eterna prestação de contas a tudo e a todos... |