A embuçada
Quem conta o episódio é Carlos Vitorino, em
Reminiscências, em que o saudoso jornalista narra uma série de acontecimentos verificados em Santos no outro século, aos quais assistiu.
Carlos Vitorino assinala que o Diário da Manhã foi o jornal que maior furo de
Imprensa conseguiu no século passado (N.E.: século XIX), devido à operosidade de seus
repórteres. Numa noite, já mais de 22 horas, Alberto de Souza, o alentado autor de Os Andradas, subiu apressadamente
às Oficinas e avisou ao paginador Eurico Saldanha que havia notícia muito importante, sensacional, autêntico "furo d'arromba".
Daí a pouco, Henrique Saldanha deixava a Redação e corria para as Oficinas, com
extensa lauda e recomendava ao compositor que empregasse título forte, vistoso, com os tipos mais berrantes que havia, pois a notícia, que deveria
sair na primeira página, era importante e teria grande repercussão na Cidade.
Era a história de uma mulher embuçada, que entrou intempestivamente na Confeitaria
Sagel & Cia., então no Largo do Carmo, e sem dizer nenhuma palavra entregou um bilhete a conhecido despachante da
Alfândega e retirou-se apressadamente. Não teve tempo o destinatário de reconhecer a estranha portadora, que num abrir e fechar de olhos entrou num
carro fechado, de lanternas apagadas, que a esperava e que rodou desabaladamente rua a fora.
O irmão do despachante aduaneiro, querendo reconhecer a misteriosa dama, deixou
instantânea e rapidamente a Confeitaria e conseguiu alcançar o eixo traseiro do carro ocupado pela Embuçada, nele acomodando-se de qualquer jeito,
interessado em descobrir pelo menos o local em que ela desceria.
Sucedeu, entretanto, que era tal a velocidade que o veículo levava, que ao virar uma
esquina, desequilibrando-se, caiu o irmão do despachante no leito da via pública, sobre pedras; feriu-se e, pior de tudo para ele, viu-se frustrado
em sua missão de reconhecimento.
Imagine-se, conta Carlos Vitorino, o sucesso do Diário da Manhã no dia
seguinte, quando saiu a público a história da Confeitaria, da dama misteriosa, do bilhete com a assinatura "L. O. - a Embuçada", do carro em louca
disparada, da queda do irmão do despachante, da cegueira da Polícia e da própria notícia, em estilo de reportagem, com toques de romance de Montepin,
em que se descrevem as cenas de vultos misteriosos dentro da carruagem às escuras pelas ruas desertas da gigantesca Paris...
Na verdade, o episódio causou sensação na incipiente Santos do outro século. Nos
lares, nos escritórios, nos bares e nas ruas só se falava na Embuçada.
- Quem será ela?
- É de coragem!
- Qual! Aquilo é algum marmanjo que se vestiu de mulher!
- E o despachante?
- Deve estar em apuros, porque é negócio só com a Alfândega...
O Diário da Manhã, durante dias seguidos, voltou ao assunto com o firme
propósito de desvendar o mistério e buscou providência da autoridade aduaneira, que mandou abrir inquérito; mas nada foi apurado. Falou-se muito no
caso da Embuçada, mas, como todos os casos, perdeu esse, também, a sensação, arrefeceu até morrer e sepultar-se no túmulo do indiferentismo geral,
mesmo porque o Diário da Manhã, algum tempo depois, deixou também de existir.
E jamais foi esclarecido o caso da Embuçada, o episódio muito explorado na penúltima
década do século transato, que não o seria, por certo, em nossos dias, em que vivemos muitos acontecimentos esdrúxulos e misteriosos...
Largo do Carmo, atual Praça Barão do Rio Branco, nos anos iniciais do século XX
Foto: Calendário de 1979, editado pela Prodesan -
Progresso e Desenvolvimento de Santos S.A., com o tema Imagens Antigas e Atuais. Santos/SP, 1979
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