Tem umas
nuvens no retrovisor, alguns pingos d'água na paisagem. As fotografias não são claras.
Estamos passando, no espelho de um carro, na tela da TV, numa passagem vermelha.
Uma luz nos atravessa. E do caminho quase nada podemos ver.
A não ser o exato instante da luz que passa e já não é mais.
Lembrar. Onde começou o caminho, como éramos, o que seremos na saída do túnel.
Atravessamos
a serra, túneis que passam. Esse é o caminho que vai dar no mar, e a primeira praia a gente nunca esquece.
Talvez por isso
Santos seja assim, o mar pra onde um dia, nós paulistas, sonhamos
voltar.
Aqui estar, aqui ser feliz, da maneira mais natural, como criança que brinca na areia.
Era uma
aula de dança. Na praia, para os que passam, quando o professor se deu conta, percebeu que dava aula para um grupo da terceira idade.
É que em Santos, 14 % de quem passa tem mais de 60 anos, uma das cidades com maior
índice de idosos do Brasil.
"Eu vim prá Santos, fiquei viúva vim embora prá cá, recomecei. Fiquei melhor dos
reumatismos, fiz muita ginástica e agora tô dançando." - Maria Borja Ramos, 80 anos
- Como é que a senhora descobriu isso aqui?
"Ah! Pela faixa que tinha aqui, eu venho sempre prá cá, passei aqui e vi a faixa."
- E o que a senhora pensou?
"Aí eu pensei logo: é comigo mesmo!"
Odete Pacífico
"Inclusive estou até machucada, mas estou aqui, levei um tombo, mas estou aqui."
- Gina Santos
"Só o pé que dói um pouco por causa da joanete, olha só o pé da escurinha. Isso
dói." - Maria Borja Ramos
"Eu sou
viúva há um ano e meio, precisei vir no baile porque chorava muito, né?
Então... adorei. Tirei todas aquelas minhocas da cabeça. Prá mim é uma delícia,
agora eu quero viver." - Maria Del Pilar
A música nasce nos vazios, nos espaços entre o metal e o nada, era assim que os discos
tocavam em 1784.
O Poliphon é quase um fantasma, um marcador de tempo, atravessou a revolução francesa, a
morte de Tiradentes, a independência do Brasil, a libertação dos escravos, o fim dos reis e dos que não eram reis e em dois séculos nada mudou no
seu jeito de fazer música.
Até hoje ele se sustenta no
Asilo dos Inválidos de Santos.
O olhar de Helvécio não se cansa. O retrato da sobrinha é tudo o que tem nas mãos.
E os seus olhos repetem o gesto para lembrar e lembrar de novo dessa tarde de
fotografia: um dia de visita.
- É o
senhor nesse retrato?
"É."
- Agora é horário de visita, não é? Duas e meia.
"Das duas e meia às quatro e meia."
- E vem alguém visitar o senhor?
"Vem meu irmão, minha cunhada.
Trazem fruta ou então bolacha." - Antonio João
Os parentes de Antonio não vieram, passaram por aqui alguns voluntários e deixaram
chocolates, balas, coisas de criança.
- Essas
coisas todas que estão aí são suas?
"São minhas."
- De quem o senhor ganhou aquele ursinho marrom?
"Aquele lá ganhei de uma moça.
- E o coelhinho branco?
"Também." - Benedito Pinheiro
"O número de pessoas que nos procuraram no ano de 98 por telefone, ou pessoalmente,
tirando informações chegou... eu acho que foram 337 pessoas. Infelizmente nós não temos vagas suficientes para isso. Nós atendemos o quê? Onze vagas
por ano, só.
Eu não
sei se é modo geral, mas é comum uma família que tem condições, com um apartamento de 3, 2 dormitórios indo para moradias menores. Com isso, o idoso
que hoje já não produz mais nada passa a ser um entulho, porque tem os filhos, tem os netos pra acomodar. Procuram uma instituição para livrar uma
cama, essa é a realidade." - Antônio Leite - presidente da Sociedade Asilo dos
Inválidos
Arrumar
as coisas no pouco espaço de uma cômoda, ali deixar suas marcas, ali se reconhecer. Bichos de pelúcia no sono da tarde, chapéu de retratos antigos,
rezas, santos, cortinas.
Um pouco do teu ser no salão de tantas camas.
"Eu não
tenho família e era muito difícil pra mim arrumar emprego, as pessoas não querem pessoas de idade. Então, eu tive que vir para o asilo. Sempre,
desde que eu me conheço por gente, a primeira coisa que eu sempre quis era aprender a ler. Então, desde quando eu aprendi, eu nunca me sinto só. Por
que tendo livros pra ler eu não me sinto sozinha. Tendo um gatinho, um cachorrinho por perto pra mim a minha vida tá completa. Eu me contento com
pouco." - Terezinha Délcia
Tirar
retrato na porta de casa outra vez. Eles moram juntos há dois anos.
São 8 mulheres e 4 homens.
Vivem como estudantes, numa república.
- São
pessoas que de alguma forma iriam acabar num asilo? Era a opção que teriam?
"Isso. Mas, aqui na República a gente preserva a autonomia deles. Então eles têm
liberdade para sair, alguns até viajam. Comem a hora que querem, vêem televisão se querem. Eles têm toda liberdade, como se estivessem na casa
deles. Aliás, eles estão na casa deles." - Gisela dos Santos - chefe da Seção de Atenção à Pessoa Idosa, Secretaria Ação Com. e Cidadania -
Santos
"Todo mundo na praia sabe que eu sou lavadeira. Filma eu de boné, bonita, pra minha
patroa ver." - Dulce da Silva
A República Bem Viver
foi criada pela Secretaria de Ação Comunitária, da prefeitura de Santos em
parceria com a Cohab. Esse tipo de vivência entre idosos é inédito no Brasil.
Para morar aqui é preciso ganhar de 1 a 3 salários, ter vínculos rompidos com a família
e ter mais de 60 anos.
"Nós que
escolhemos o nome. República Bem Viver."
- Vocês fazem tudo em grupo?
"Tudo em grupo, eu só não participo do gás porque eu não almoço aqui, mas água, luz, é
tudo dividido, cada um paga o seu aluguel e no fim dá tudo certo."
- Quanto é que vocês pagam de aluguel?
"É 33 e uns quebradinhos." - Neide Teixeira
"Eu
morava no porão. A minha situação lá estava muito ruim porque eu estava dormindo no chão, né? Aí, me arrumaram pra vir pra cá. Lá tinha rato, tinha
barata, tinha tudo."
- Quanto a senhora pagava pra morar nesse lugar?
"Lá onde eu estava? Eu estava pagando 180." - Dulce da Silva
A vida na república é como em qualquer casa cheia de gente, quereres, diferenças,
algumas encrencas.
"Agora,
eu moro com a Dona Ismênia,né?"
- Você está começando a fazer amizade com ela?
"Estou né? O que é que eu vou fazer?
É uma república não é? Não posso escolher, né?" - Margarida Rosa
"Pois é, muitas pessoas acham que eu sou jacu, acham que eu sou caipira, acham que eu
sou maloqueira, tudo.
Aqui mesmo eu tenho nome de maloqueira." - Ismênia Ferreira
"Eu não
gosto de comer junto com todo mundo. Eu tenho uma crença, minha crença é muito rígida, moral.
Então, a gente tem que fazer oração antes de comer, a gente não chama palavrão e
aqui é o que chove." - Maria de Lourdes Freire
"Aqui a gente é uma família, eu também não paro aqui. Venho só a noite. Eu trabalho,
só chego aqui a noite." - Neide Teixeira
Na casa da República Bem Viver também se aprende que para a alma humana sempre é tempo
para grandes encontros.
- Morava aqui com a senhora uma senhora de 86 anos? E a senhora cuidava dela?
"Cuidei dela, graças a Deus, cuidei dela. Fui conhecê-la aqui. Ela me chamava de
filhinha."
- O que a senhora fazia pra ela?
"Dava banho, fazia comida, tudo que ela precisava eu dava. Quando ela faleceu, faleceu
segurando na minha mão. Até hoje eu sinto ela segurando na minha mão. Ela apertou, apertou, quando largou tinha morrido."
- Como era o nome dela?
"Maria de Lourdes Lopes." - Margarida Rosa
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