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PINEL, RUSH, ROCHA, MAIA: A DEFESA DO MANICÔMIO
A escola, a igreja, a polícia, o exército e o manicômio são instituições que garantem a dominação
desse estado democrático, que substitui o totalitário, mas que vai cumprir o papel de repressão voltado à preservação e à conservação do
Estado - que protege quem tem de quem não tem e mantém a ordem desejada pelos possuidores.
É curioso, contraditório aparentemente mas parte do processo histórico que os símbolos malvados
desta trajetória da psiquiatria institucional e autoritária – Pinel, Rush, Rocha, Maia – tenham, em seu momento, significado avanço e humanização no
tratamento psiquiátrico, em seu momento histórico. Todos eles ampliaram as condições do contingente sob seu controle, embora mantendo a visão de
dominação.
Toda esta história aqui narrada, de um hospício libertado em Santos, na construção de novas políticas
de Saúde Mental, não surgiu de comportamentos isolados, faz parte de uma trajetória das práticas aplicadas no mundo.
Desde que, como diz o psiquiatra americano Thomas Szasz, defensor das teses da antipsiquiatria de
Cooper e Laing - nascidas na Califórnia, se espalhando pelo Canadá, Inglaterra e Itália - a psiquiatria médica substituiu a caça às feiticeiras
religiosas da Inquisição católica, que durou do século XII até o XVII, impondo suas torturas e seu terror.
Muitas das torturas aplicadas como tratamentos até nossos tempos são, na verdade, cruéis
métodos de imposição de sofrimentos, são heranças da Inquisição que matou milhares de pessoas em cinco séculos.
A Inquisição como
matriz da psiquiatria institucional
Presente nos ritos de iniciação religiosa dos povos antigos, a tortura foi depois utilizada como
punição e aproveitada como método de "tratamento psiquiátrico", sem se alterar nos seus fundamentos, sobrevivendo até os nossos dias. Tem uma origem
religiosa: os deuses pagãos não tinham misericórdia, eram vingativos, injustos e cruéis. O Velho testamento mostra um Jeová, o Deus de
Israel, que aprovava a punição de negligências em relação ao dever com atitudes em que se queimavam e apedrejavam pessoas vivas até a morte.
"Não deixava de ser natural que as autoridades eclesiásticas ao punir faltas cometidas pelo
povo se inspirassem no exemplo do deus que admiravam e temiam", escreve o livro Torturas e Torturados, falando da
atitude da Igreja, em especial aqueles crimes contra Deus e seus mandamentos. Aliviava a concepção da vida eterna em que a morte não era
aniquilação, mas porta para uma vida despida de pecado, muito melhor. E isso os desobrigava da culpa da imposição do sofrimento, o que se nos sugere
absurdo.
A política de vingança dos hebreus foi adotada pelos cristãos primitivos, que não se afastou nem com o
humanismo cristão tão reiterado nos evangelhos. São Mateus: "O filho do homem mandará seus anjos e eles expulsarão de seu reino todas as coisas
faltosas e ofensivas e aqueles que perpetraram a iniqüidade; e os lançarão ao fogo do inferno; haverá gemidos e ranger de dentes", frisa o
pensamento.
A lei romana concernente à tortura relativamente à traição foi aplicada à heresia, entendida como uma
traição a Deus (Crimen laesae majestatis divinae), sem contar que o aspecto financeiro do confisco dos bens dos hereges favorecia o
procedimento, no interesse dos detentores do poder católico.
De tal modo a Igreja demonizou os hereges e todas as religiões não-católicas, despejando-lhes a cólera
divina, que toda grande catástrofe passou a ser atribuída aos hereges, ao inimigo de Deus. E praticou por si mesmo a tortura que, incorporada
pela Igreja de modo oficial, a lei da turba antecipou ou sugeriu a lei do estado (a Igreja), que alastrou sua aplicação e sistematizou-a,
implantando-se como o mais rigoroso sistema de tortura que queimava pessoas vivas entre outros bárbaros métodos, que se expandiram para as ações
penais, concomitantemente às da Inquisição em todos os países da Europa – denunciados por Beccaria só em 1764, mas que prosseguiram.
A Inquisição era uma corte de justiça ou tribunal fundado pela Igreja Católica Romana há mais de sete
séculos, com a finalidade expressa de suprimir a heresia, ou seja, qualquer desvio religioso. A guerra contra a heresia antecipou em mil anos a
Inquisição: desde o ano de 382 D.C. – século IV - já existiam normas da Igreja de execução aos apontados como hereges.
Como crescessem os cultos alternativos, ameaçando o domínio da Igreja Católica, na primeira metade do
século XIII foi instituída a Santa Inquisição, estabelecida pela primeira vez em Toulouse em 1233 e em 1238 em Aragon, ambos na França.
Alemanha, Holanda, Portugal e Espanha também logo tinham seus tribunais, palácios com calabouços escuros e úmidos, cruéis.
A tortura inquisitorial foi introduzida pelo Papa Inocêncio em 1252, em uma bula papal - e durou cinco
séculos, matando na fogueira um número incalculável de pessoas, milhares, talvez milhões. Muitos dos métodos de tortura gravados pela história
permaneceram na trajetória da psiquiatria até os dias de hoje, inclusive as torturas aplicadas nas delegacias e mesmo as torturas aplicadas aos
presos políticos tem herança nos métodos da Inquisição católica.
Esse terror da Inquisição foi disciplinado pelo iluminismo e do positivismo da Revolução
Francesa que, pseudo-cientificamente, dissociando-se da Igreja, pretendeu dar soluções científicas aos males da terra, instituindo os manicômios,
separando os doentes mentais dos infratores legais.
O positivismo foi um pensamento dominante que, após o término da Segunda Guerra Mundial, foi colocado
em questão por sua ineficiência prática: a ciência, o progresso, a razão ("ordem e progresso", o lema de nossa bandeira extraído do positivismo) não
tinham impedido a tragédia, ao contrário, a acirraram. Desse pensamento antiquado nasceriam as experiências eugênicas e toda a barbárie psiquiátrica
que discorremos.
Herança e tradição
Como exemplo, o psiquiatra Benjamim Rush, o positivista iluminista, era um teórico obcecado da
violência, defensor obstinado do internamento psiquiátrico compulsório, de "terapias" como surras e fome impondo o controle absoluto sobre o doente
mental. E defendia o açoite e as correntes para conter as crises, assim como o encarceramento de bêbados.
Para Szasz, a chamada psiquiatria institucional foi uma conversão da teologia, da religião, para a
ciência. São muitas as semelhanças que ligam as tradições da tortura a estes tratamentos.
O que chamavam heresia, patifaria, possessão na Santa Inquisição da Idade
Média – que mandava para a fogueira os suspeitos de feitiçaria e desvio da fé católica -, foi reclassificado em termos médicos - levando ao que se
convencionou chamar de Psiquiatria: a natureza substituía Deus, o Estado substituía a Igreja, a doença mental substituía a feitiçaria e a linha da
autoridade igual. Ou como se diz aqui, "mudou o delegado mas a borracha é a mesma".
Nessa crítica, o pensamento do psiquiatra Thomas Szasz conflui com o de Foucault, que destaca
que o confinamento do louco, radicalizando o processo de dominação, se inicia muito antes do aparecimento da psiquiatria, como historia este
estudioso da mente humana.
É, na verdade, um processo de marginalização e exclusão. Como herdeiros dessas políticas de poder,
seria impossível falar de manicômios sem contar sobre um de seus maiores defensores, um de seus instituidores, da política de internações
compulsórias prisões sem condenação judicial: é o fundador da psiquiatria americana, o psiquiatra Benjamim Rush (1766–1813) – herdeiro pródigo
da Inquisição, que inaugurou muitas das políticas aplicadas até hoje no mundo, cujo absurdo e brutalidade falam por si mesmo, sem necessidade de
conferir valores a elas.
Para se entender o manicômio Anchieta, é preciso conhecer seus similares históricos, seu sentido, seus
defensores. e, principalmente, sua filosofia. Ela é vinculada a da dominação econômica das minorias sobre as maiorias, baseada no controle
social enclausurando os excluídos. Basaglia expõe que "podemos dizer que assim como o hospital é o túmulo do corpo, túmulo da doença e a derrota
da medicina, o manicômio é a derrota da psiquiatria". E que "o hospício é constituído para controlar e reprimir trabalhadores que perderam a
capacidade de responder aos interesses capitalistas da produção".
Em Vigiar e punir, o filósofo Michel Foucault (1926-1984) dá a
pista de que a partir das transformações das regulações jurídicas dos indivíduos – os suplícios, as punições, as disciplinas – ele investiga a forma
singular de organização de nossa sociedade, a que denominou disciplinar.
A constituição do homem da modernidade nesta sociedade é ditada pelos
dispositivos institucionais organizados sob os mesmos princípios coercitivos: a prisão, o hospital, o manicômio e a escola, revelando suas práticas
de adestramento, regulação, classificação e disciplinarização, micropoderes que interpenetram toda a sociedade. São relações de força construídas
com a imposição por estes institutos de verdades e saberes indiscutíveis que reproduzem o modelo e o justificam.
Entre os maiores defensores do manicômio enquanto instituto figuram
homens como Benjamim Rush, pai da psiquiatria americana, contemporâneo da independência daquele país e uma de suas expressões, amigo de
Thomas Jefferson e John Adams - líderes e presidentes da Nova República. Ele assinou a Constituição dos Estados Unidos da América. Rush era um
psiquiatra que igualava inconformismo social e saúde mental, atraindo todas as questões morais e sociais para a medicina: fosse contra, era louco –
só abrindo exceções aos poderosos, na típica e dual moral burguesa.
Autor do livro "Pesquisas e observações médicas a respeito das
doenças da mente", editado em 1812, não fosse Rush tão defensor do poder e seu justificador e teria classificado como loucos seus amigos
que fizeram a Independência americana - na lógica de seu pensamento, pois que inconformes com o estado anterior de submissão nacional à Inglaterra.
Mas era amigo do poder este nosso personagem, tanto que o justificava clinicamente, como fez com a escravidão: os negros, para ele, eram
leprosos – e precisavam ser tratados.
Rush achava que o homem sem razão, assim julgado pelos médicos, não
tinha direitos de cidadania, restava anulado seu contrato social. Os médicos são os melhores juízes, respondia sobre quem deveriam ser os
julgadores. O crime era uma doença, para ele, a cuidado não da policia, mas dos médicos. A mentira era uma doença, para as pessoas comuns, mas
considerava terapêutico mentir para os pacientes, na hipótese de curá-los através da consolidação de suas próprias visões irreais.
Homem que acreditava no instituto do manicômio tanto que internou por
toda vida seu próprio filho, foi o criador da cela forte, como as que haviam no Anchieta – hospital em que só estava ausente a cama com
pregos que instituíra, entre outras inovações à sua época como a cadeira giratória, em que os pacientes eram amarrados e girados
para que o sangue lhes chegasse à cabeça.
Willian Bean, historiador da medicina e professor na universidade de
Yoha, nos Estados Unidos, diz que o dogmatismo de Rush e sua capacidade de enganar-se sempre o ajudaram a matar um número incalculável de pacientes
na Filadélfia. Mas como diria um inquisidor espanhol anônimo, "não importa se os que morrem por causa da religião sejam culpados ou inocentes,
desde que aterrorizemos o povo com estes exemplos".
Líder maior do chamado imperialismo psiquiátrico, ideólogo de suas
sanções quase-médicas, com seu retrato na sede da associação psiquiátrica americana como fundador e pai, Benjamim Rush é a descrição típica e
característica dessa "ciência" que se propagou e começou a ser destruída em Trieste e em Santos, exemplo mundial.
Também Phillipe Pinel, o iluminista francês da psiquiatria e chamado
humanizador dos tratamentos, era adepto da coerção e da intimidação, como se depreende de seus textos. Diz Szasz que a violência temida do
louco é a violência projetada de seu perseguidor, que a partir do século XIII não é mais a Santa Inquisição, mas os psiquiatras. Na
introdução deste trabalho, a memória das teorias e práticas de Benjamim Rush são elemento essencial para compreender os atos seguintes.
Em 1656, quando foi criado o Hospital Geral destinado aos pobres de
Paris, esta é uma instituição que mesclava caridade e previdência, assistência e repressão na sua função de impedir a desordem traduzida na
mendicância e o ócio. Base, pois, do manicômio, o Hospital Geral de Paris busca resolver o problema público que se tornara a miséria e a
multiplicação da população de rua nestes tempos de adensamento urbano e da proliferação de favelas, focos de doenças, mendigos e desocupados nas
ruas, disciplinando o cenário urbano na ótica positivista. No asilo, a medicina é a justiça e a terapêutica é a repressão. Como observamos, há pouco
a ver com a questão do transtorno mental.
A rejeição ao modelo veio com as novas políticas de Saúde Mental, a
chamada "teoria basagliana", a terceira revolução da psiquiatria. Chegaram em 1971, com a noticia da demolição das paredes do manicômio de Trieste.
Em maio de 1978, o parlamento italiano aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica (180), a chamada Lei Basaglia, proibindo novas internações e
estabelecendo a desativação gradativa dos manicômios. Reduzindo de 120 para 28 mil o número de internos – no caminho da evolução da psiquiatria que
superava sua face de coerção e dominação.
Em 1945, um levantamento jornalístico dos hospitais psiquiátricos
estaduais nos Estados Unidos - a maioria situado nos locais de maior riqueza -, efetuado pelo psiquiatra Albert Deustch, mostrava cenas que podiam
ser comparadas aos horrores dos campos de concentração nazistas, de acordo com o livro de Thomas Szasz: "..eram centenas de doentes mentais nus,
entulhados em enfermarias imensas, semelhantes a estrebarias, cheias de sujeira, em todos os graus de deterioração, não atendidos nem tratados,
despidos de qualquer vestígio de dignidade humana, muitos em estado de semi-inanição".
Qualquer semelhança com o quadro encontrado no Anchieta não será mera
coincidência. De Pinel a Maia, passando por Rocha e Rush, uma trajetória linear de opressão e invasão. |