11 de novembro de 1943
Terceira Sessão Solene da Semana Médico-Social
No Consistório "João Batista Ribeiro",
efetuou-se no dia 11 de novembro de 1943 a terceira sessão solene da Semana Médico-Social.
A conferência da noite esteve a cargo
do provedor Alípio Corrêa neto, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que pronunciou interessante palestra científica
subordinada ao tema "Fisioterapia das queimaduras".
A sessão, que teve a assisti-la
elevado número de pessoas gradas, classe médica de Santos, elementos da O.F.A.G. e a Mesa Administrativa da Santa Casa, foi presidida pelo professor
dr. Clementino Fraga, da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil e presidente da Semana Médico-Social, tomando ainda lugar à mesa, além do
conferencista da noite, os srs. Benedito Gonçalves, provedor da Irmandade; tenente Álvaro Batista de Medeiros, representando o comando
do 4º B.C.; e monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, vigário geral representando d. Idilio Soares, bispo diocesano.
Saudou o professor Corrêa Neto o dr.
Emílio Navajas Filho, que leu o seguinte discurso:
"Ao fazer
a saudação protocolar à vossa pessoa numa assembléia de médicos, seria supérflua a apresentação do conferencista com a pormenorizada descrição do
curriculum vitae dos trabalhos e do acervo científico, pois tudo que vos diz respeito nesse particular está no seu conhecimento, deles médicos,
e já tivestes oportunidades de verificar quanto de admiração e de apreço lhe devota a classe médica desta cidade.
"Bastaria, naquela hipótese, transmitir-vos os
agradecimentos pela honrosa presença, e insistir pela repetição da visita. Mas em vosso auditório, além de médicos, estão numerosas pessoas alheias
às coisas da Medicina, para as quais devemos destacar vossos méritos indiscutidos, a fim de que possam nos acompanhar de plena consciência nos
aplausos que encerrarão a sessão de hoje.
"Menos pelo renome de cirurgião e mérito de todos
conhecido, de leigos e de iniciados, do que pelas qualidades invejáveis de professor que ensina e educa, hão de ser exaltados vossos merecimentos
que, sem alardes outros que os dos frutos colhidos, que na modéstia, natural e espontânea, que vos adorna o exercício da cirurgia e da
cátedra, marcam uma personalidade.
"Tendo recebido o grau de doutor em Medicina em
março de 1924, da turma de 1923 de que foi o orador, desde os tempos de estudante se afeiçoou aos trabalhos e aos estudos cirúrgicos com destaque.
Interno do Hospital Divisionário do Exército em S. Paulo, em 1920, passou, três anos após, para o internato do serviço do saudoso prof. Alves de
Lima, cargo em cujo exercício ficou definitivamente marcado seu caminho através do intrincado campo da cirurgia.
Médico interino substituto, médico interno
efetivo da Santa Casa de S. Paulo, cirurgião do Sanatório Vicentina Aranha, cirurgião do Hospital S. Luiz Gonzaga de Jaçanã, chefe do serviço de
cirurgia do Hospital de Sangue do Cruzeiro em 1932, assistente dedicado e constante da clínica do prof. Alves de Lima, em todos estes pontos, na
mesma orientação de conduta profissional, marcou em destaque sua personalidade estudiosa, esclarecida e honesta. Membro titular de prestigiosas
associações científicas, é volumosa a sua bagagem em livros, trabalhos publicados, monografias, conferências e comunicações.
"Sua contribuição em trabalhos ultrapassa o
número de 40, caracterizados todos eles pela simplicidade, pela precisão e honestidade com que encara os mais complexos problemas da cirurgia,
seja da patologia ou da técnica.
"Observador arguto, pesquisador incansável,
inovador ou renovador de táticas ou de técnicas, tem o prof. Alipio Corrêa Neto se revelado um profundo conhecedor da Patologia, especialmente da
Patologia Cirúrgica, campo onde investiga com notável eficiência. São valiosas suas contribuições nesse sentido, onde se destacam esclarecimentos
trazidos à patogenia e etiologia do megacólon e do megaesôfago e de outros distúrbios dos esfíncteres funcionais, onde o cunho de
originalidade se evidencia até na terapêutica. Divulgador criterioso, analisa a novidade sensacional do momento, observa, critica e conclui com
justeza para o seu uso e para o ensino.
"Em 1935 candidata-se ao cargo de professor de
Clínica Cirúrgica da Universidade de S. Paulo, vencendo brilhantemente as provas a que se submeteu e conquistando a cátedra.
"Chegamos onde, ao nosso ver, maiores são seus
méritos, porque, aos pesados encargos do exercício da própria clínica cirúrgica, teve daí por diante os do magistério,não menores os do magistério,
não menores de responsabilidade.
"A cirurgia, que no dizer de Leriche 'é
uma disciplina de ação, que exige o dom do homem todo inteiro, que não encoraja muito, nem as evasões do espírito, nem os sonhos sobre a acrópole',
requer de quem a exerce uma dedicação total, absorvente e contínua.
"Cabeça, coração, mãos hábeis e prudentes, os
três H ingleses – Head, Heart and Hand – entram em ação simultaneamente no diagnóstico, no prognóstico e na terapêutica.
"A cabeça, para o estudo, para a observação, para
o raciocínio analítico, sintético, exclusivo e conclusivo para comandar e ordenar a execução oportuna dos atos cirúrgicos.
"O coração, eterno símbolo dos sentimentos nobres
que aprimoram o homem, para enquadrar nossos atos de médicos cirurgiões num sentido humano e de piedade cristã.
"Mãos hábeis, para obedecer fielmente ao cérebro
e ao coração na execução dos mais delicados e complexos atos operatórios.
"A cirurgia, no dizer de Moynihan, não tem apenas
como objetivo operar com habilidade, requer para seu serviço qualidades de espírito e de coração que a elevam ao mais alto pináculo do esforço
humano.
"Se a estes requisitos imperativos se acrescentam
os do magistério, então vereis quanto árdua é a tarefa a realizar.
"A prática da cirurgia como fiel exemplo, dentro
dos seus mais rígidos cânones técnicos, morais e deontológicos, constitui, por certo, meio caminho andado, mas não é o bastante; há que juntar a
isso tudo a facilidade, a simplicidade e a clareza de expressões para a perfeita compreensão dos ensinamentos. Há que seguir na cátedra, ao lado das
aulas magistrais de ensino sistematizado ou planificado, as lições objetivas da clínica, nas quais os fatos devem ser apontados e analisados, e a
crítica serena e segura a permitir o julgamento diagnóstico, prognóstico e terapêutica.
"Há que forrar-se o professor da coragem moral
necessária para se sobrepor à vaidade e à egolatria, para, da lição dos erros, propiciar aos alunos o magnífico cabedal de ensinamentos que eles
trazem.
"Dizia Gide: 'se
eu me engano, o melhor que faço é reconhecer o erro o mais cedo possível, porque sou responsável pelos erros que meu erro acarreta'
(Si je me suis trompé, le lieu est de reconnaitre au plutôt mon ereur; car je suis responsable deceux mon
erreur enraine).
"Desta afirmação se deduz todo um código de
orientação no ensino médico e se avalia toda a responsabilidade que pesa sobre os ombros daqueles que procuraram a missão de ensinar.
"Tendes agora, sras. e srs., elementos para
julgar os méritos de vosso convidado. Em toda a sua carreira de cirurgião e de professor, o dr. Alipio Corrêa Neto tem sido um exemplo de dedicação
à causa da Medicina. Simples no trato e nas maneiras, sem pernosticismos de atitudes, abrindo para uso de seus discípulos os livros de seu saber e o
mostruário de sua experiência, tem o prof. Alipio, na sua moda seus deveres, honrando a cirurgia e o ensino universitário de S. Paulo e do Brasil,
porque o seu nome já é de há muito considerado e acatado em outros centros de cultura médica do exterior.
"A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia
de Santos agradece vossa honrosa e pronta aquiescência ao convite que foi dirigido para participar das solenidades comemorativas do 4º centenário de
sua fundação, e vos saúda.
"Que seja longa e brilhante vossa carreira
de cirurgião, e farta na colheita a sementeira do ensino, e que quando chegar o momento do exame retrospectivo de vossa vida, quando ao tribunal de
vossa consciência mostrardes o galardão do dever cumprido, tenhais o direito de exclamar como o grande cirurgião Dupuytren: 'je
me suis trompé, mais je me suis trompé moins que les autres'; 'tenho errado,
mas tenho errado menos que outrem'".
Preleção do dr. Alipio Corrêa Neto
Agradecendo as palavras do
representante da Irmandade da Santa Casa, e louvando a cidade de Santos, o prof. Alipio Corrêa Neto nesta assim se exprimiu inicialmente:
"Falar
desta tribuna é uma súbita honra porque se comemora o IV centenário do hospital mais antigo do País. Este foi o marco vanguardeiro das realizações
de São Paulo para o bem do Brasil; daqui, destas praias, partiu o jesuíta magnífico que fundou São Paulo; dali os bandeirantes investiram contra o
sertão para alargar os horizontes da Pátria; no clima tépido desta encosta, os Andradas forjaram o espírito da Independência, plasmaram,
portanto, a alma da Nação; ávidos de liberdade, instalaram aqui, os paulistas, o quartel mestre da propaganda republicana; o protesto de 32 e ainda
aclarado pela luz viva da democracia, cujo revérbero, mesmo agora, ilumina o céu da Pátria em lampejos incoercíveis, sobre o contraste de uma
ambiente sombrio.
"O mais velho hospital do Brasil, a mais antiga
casa de assistência hospitalar das Américas; daqui portanto não se fala só à nobre classe médica santista,daqui se dirige à Pátria e o eco da nossa
voz abrange os 4 ângulos das Nações livres do Novo Continente.
"O orador é, pois, um pigmeu esmagado no panorama
de reminiscências e um gigante empolgado pela ansiedade de melhores dias.
"Santos, que é a boca de ouro da economia
nacional, hoje encarna a síntese do espírito de solidariedade humana, de cordura, e paz e de liberdade, que são os traços mestres da suave
psicologia brasileira".
Em seguida, o professor Corrêa Neto
inicia, de improviso, sua interessante palestra, abordando sugestivo tema, qual o da fisiopatologia das queimaduras, cuja importância se
atesta nos tempos atuais da guerra, pois a quase totalidade das vítimas do furor bélico tomba por efeito de queimaduras, citando exemplificadamente
o episódio de Pearl Harbor e a guerra aérea contra a Inglaterra, onde os bombardeios incessantes tantas vítimas causaram por queimaduras.
Afirma que a queimadura é uma afecção
muito grave, que busca métodos racionais e modernos de terapêutica. Estuda, sob o ponto de vista patológico, o estado do queimado, as perturbações
causadas pelos choques primário e secundário, o déficit sanguíneo provocado pela afecção da zona queimada, alinhando considerações de ordem
técnico-científica oportunas que repontavam dos seus largos conhecimentos no campo da experimentação, sem deixar de citar os grandes mestres da
especialização, confrontando teorias e apresentando argumentos próprios.
Focalizou, por último, o problema
terapêutico aplicado à fisiopatologia das queimaduras, dizendo que os tratamentos mais comuns, entre outros, são o banho de imersão, a aplicação da
gaze embebida na vaselina, método antigo mas que se restabelece modernamente, e, até mesmo, o aparelho de gesso na zona afetada.
E entrou em outra série de
considerações científicas, ouvidas com viva atenção pelo auditório.
- O professor Clementino Fraga,
encerrando a cerimônia, felicitou o conferencista e felicitou-se a si mesmo, pois, afirmou, ouvira ele verdadeira lição sobre a matéria.
Ponderou que o perfil sobre o
conferencista, traçado pelo dr. Navajas Filho, se confirmou plenamente, pois o prof. Corrêa Neto é um tático e um técnico. Sentia-se à vontade para
enaltecer a personalidade do conferencista, porque naquele momento resgatava uma dívida de gratidão, explicando que, há vinte anos passados, pela
primeira vez falava à mocidade universitária em São Paulo, numa recepção que se lhe ofereceu, quem o saudara, em nome dos então futuros médicos,
fora exatamente o prof. Corrêa Neto.
E cabia-lhe, ali, naquele momento, resgatar aquela dívida contraída pelo
coração, terminou o professor Clementino Fraga. |