9 de novembro de
1943
Semana Médico-Social (cont.)
Sessão solene promovida pelo Departamento do Serviço
Social
No recinto do Consistório, realizou-se às 16 horas uma sessão
solene, promovida pelo Departamento do Serviço Social de Santos, e presidida pelo dr. Euclides de Campos, diretor do Fórum.
Entre os assistentes havia médicos, advogados, magistrados,
promotores públicos, diretores de instituições pias, exmas. senhoras e voluntárias da OFAG.
À mesa de honra, além do presidente, sentaram-se os srs. dr.
A. Gomide Ribeiro dos Santos, prefeito municipal; monsenhor Luiz Gonzaga Rizzo, vigário geral da diocese; dr. Afonso Celso de Paula Lima, delegado
auxiliar de polícia; J. J. Azevedo Marques,vice-provedor da Santa Casa; Polidoro de Oliveira Bitencourt, prefeito de S. Vicente; prof. Ernesto Souza
Campos, dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, dr. Gervásio Bonavides e dr. Alves Feitosa.
Abrindo a sessão, o dr. Euclides de Campos explicou sua
objetividade e transmitiu a palavra ao dr. Gervásio Bonavides, que, referindo-se à comemoração do 4º centenário da Santa Casa, enalteceu o sentido
da Semana Médico-Social, elogiando os oradores que já se fizeram ouvir, o embaixador Macedo Soares, prof. Clementino Fraga e o sr. Valentim Bouças.
E fez também o elogio do orador daquela sessão, sr. Joaquim Alves Feitosa, advogado encarregado da Procuradoria do Serviço Social em Santos,
instituição que, segundo sua expressão, realiza o milagre da caridade no seio da Justiça.
A oração do dr. Gervásio Bonavides é a seguinte:
"Exmas. senhoras.
"Meus senhores.
"Ressoam nesses dias e nesse lugar festivos, em ondulações orquestrais,
as vibrações canoras da inteligência,cultuando quatro centúrias de exaltação piedosa, em louvor à obra inestimável de benemerência desta ruidosa
instituição de caridade.
"Vamos em meio das homenagens comoventes que lhe são devidas e para as
quais a elas vieram associar-se os expoentes máximos da intelectualidade brasileira.
"Macedo Soares trouxe, desde as suas remotas origens, a risonha
idealização dessa obra imperecível de amor ao próximo e de carinho às suas dores e sofrimentos, para melhor aproximar o homem de Deus. Penetrou,
fundo, nas suas raízes históricas, para enaltecer a instituição até o cume de sua maravilhosa impotência, que não se diluirá jamais na consumidora
ampulheta dos tempos. Trabalho erudito, voltado, todo ele, a uma rigorosa observação de detalhes, que lhe marcará, definitivamente, toda a sua
sobrevivência e desafiarás obre ela as longevitudes seculares.
"Iniciando-se a Semana Médico-Social, essas arcadas venerandas agasalham
a luz de uma inteligência poderosa, que é toda a expressão do sentimento, de cultura e de bondade. Clementino Fraga, olhando paternalmente para os
médicos que aqui mourejam, nesta casa que é um hospital,não esqueceu de lhes aquecer a sensibilidade, numa lição de ensinamentos proveitosos. A essa
altura, a ciência acode ao mestre para que a sua palavra deslize, serenamente, nas escarpadas do seu pensamento criador.
"Depois disso, a meio de uma sonoridade comunicativa e estonteante, se
exalta o homem de letras, no escrínio modelar da pompante beleza da frase, em períodos de ouro, de vagas duradouras e eternas.
"Um rio de águas claras e marulhantes, rolando, majestoso e dolentemente,
no estuário, em sussurros ao sol, e em cujas margens adjacentes impera a música da prosa e a música do verso.
"A cadência mágica do poetar de Vicente de Carvalho e Martins Fontes se
confunde no mesmo ritmo de emoção espiritual. E a errante harmonia do belo, na plangência de seus acordes, enche de muito esplendor místico as
ternas e doces evocações.
"Valentim Bouças, a operosidade em ação, veio trazer a sua cooperação
afetiva à terra que lhe serviu de berço e ao sodalício que lhe honra a terra, em prodigalidade sentimental, para derramar o seu coração no trabalho
tentacular que se realiza nas Amazônias destes brasis afora.
"E como se tudo isso não fosse o desfecho de uma jornada já de glórias,
recebe a Santa Casa a honra desta solenidade, que decorre de uma admirável parcela da administração pública de S. Paulo
"O serviço da Procuradoria Social realiza o milagre e caridade, no
seio da justiça, 'que é o direito iluminado pela moral, protegendo os bons e úteis contra os maus e nocivos,
para facilitar o multifário desenvolvimento da vida social'.
"Há precisamente três anos, chegava a esta cidade o dr. Joaquim Alves
Feitosa, a mando de dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, advogado chefe da Procuradoria, para instalar esses serviços. Vinha sozinho, sobraçando uma
pequena máquina de escrever. Não tinha, sequer, um lugar para trabalhar, como um cenobita que trabalha, a esmo, somente para servir a humanidade
melhor do que merece a Deus. A então incipiente Procuradoria Social lutava com os mais sérios obstáculos e, se não fosse realmente a vontade
dinâmica do seu diretor, os serviços dessa natureza haviam desaparecido de Santos. Mas, esse grande beneditino da justiça social, que é Pedro Xisto,
a cujos talentos eu tenho a honra de lançar todas as flores de minha homenagem, não esmoreceu, não desanimou e não trepidou em hospedar-se na minha
própria sala de trabalhos, no Fórum local. Recebi-o, eu e o dr. João Batista de Arruda Sampaio, então curador de menores, com assentimento do dr.
Euclides de Campos, e recebi-o, meu caro Pedro Xisto, com o desborante defluir de reminiscências de nossa vida acadêmica, na saudosa Faculdade de
Direito de Recife, onde nós ambos sonhávamos os mesmos sonhos, pelejávamos as mesmas pelejas, trabalhávamos pelos mesmos ideais, em plena mocidade
em flor.
"Já naquela época a sua floração mental não era apenas uma esperança,
mas, ao revés, uma realidade forte, dirigindo e orientando a vida acadêmica, à frente de seu centro de cultura.
"É com profunda ambição de contentamento que olhamos para trás, na longa
curva do caminho, para reverenciar a velha escola que nos deu a luz da sabedoria jurídica e tanto tem engrandecido, como a de S. Paulo, o solo
pátrio, como centro de irradiação mental.
"De então para cá, a Procuradoria Social avolumou e desenvolveu os seus
trabalhos, de tal arte que ela é hoje uma necessidade palpável no nosso organismo judiciário. Testemunha presencial desse prestimoso serviço
público, bem posso agradecer aos seus dirigentes a colaboração que eles vêm aqui fazer, trazendo, com uma seção própria, no dia de hoje, aos pobres
da Santa Casa, a lei protetora, em todas as atividades da vida jurídica a seu alcance.
"A esse propósito, vem a talha o acerto de René Roland: 'Não
se saberá louvar bastante os poderes públicos quando, fora de todo o espírito do sistema e com o único amor do bem, eles entrarem francamente no
caminho que conduz a grandes progressos pela elevação moral dos indivíduos, da humanidade e da pátria'.
"Essa é a missão encantadora da Procuradoria Social e que em Santos tem
como abnegados servidores os drs. Joaquim Alves Feitosa e dr. Carlos Dias, o primeiro dos quais traçará perante esta douta assembléia os grandes
empreendimentos do sistema em foco, como lídimo encarregado de sua generosa realização.
"'O patriotismo
– disse um grande mestre – é a forma social do amor, e como tal, é força irresistível e incomensurável; aos
fracos dá alento, aos dúbios decisão, aos descrentes fé, aos fracos ilumina, a todos une, num feixe indestrutível, quando é preciso agir ou
resistir; não pede inspiração do ódio e não mede sacrifícios para alcançar o bem comum'.
"A Santa Casa, de pé, vos agradece".
Fez em seguida uso da palavra o dr. Joaquim Alves Feitosa, que
assim se manifestou:
"Exmas. senhoras, exmos. senhores
juiz diretor do Fórum de Santos, prefeitos municipais de Santos e S. Vicente, representante da s. excia. revdma. o sr. bispo de Santos, srs. médicos
e mesários da Santa Casa e demais ilustradas autoridades.
"Cabe-me, inicialmente, agradecer as palavras amigas que a meu respeito
pronunciou o sr. dr. Gervásio Bonavides, ilustre curador-geral da Comarca, palavras que eu, em virtude da boa amizade existente entre nós, de
antemão sabia que seriam tocadas de simpatia e generosidade. Quando, exmas. senhoras e exmos. senhores, pelo fato de ser o advogado encarregado da
Procuradoria de Serviço Social em Santos, recebi honrosa incumbência de transpor os umbrais deste recinto sagrado e sapientíssimo para falar,
confesso aqui publicamente, agarrei-me nada menos do que a Nosso Senhor Jesus Cristo, o divino protetor dos fracos, para que me valesse. E agora me
desculpo: fora eu a S. Paulo e, ao regressar, sem de nada saber, encontrei a coisa feita, e já noticiada nos jornais. Não me era mais possível,
pois, esquivar-me, e, ao mesmo tempo, bem natural era minha aflição; porque, senhores, estas comemorações do quarto centenário da Santa Casa de
Santos têm, por sua própria natureza, um caráter tão comovedor e grandioso que, dentro delas, eu não queria para mim nada mais do que um lugar à
sombra, de onde eu pudesse, tranqüilo e embevecido, apreciar o desfile da ciência, que por tantos de seus luminares acorre de vários pontos do país;
e, do meu delicioso recanto, ouvir extasiado a palavra da ciência suma e altíssima; e, pela voz de tantos oradores laureados, a história quatro
vezes secular desta Santa Casa, que, repito, é templo, é casa e Deus, e casa de sábios, e é fortaleza de heróis que consumiram e consomem suas
próprias vidas nas intermináveis vigílias do bem, na luta contra a morte e contra a dor; no árduo pelejar para o sustento desta instituição, desde o
início da nacionalidade, pugna travada em prol do Brasil que mal abria os olhos para a civilização cristã, recém-transplantada para estas
esplendorosas mas ásperas e selvagens regiões tropicais.
"Nestas paredes antigas, que neste local se alteiam desde 1836,
impregnou-se um espírito sublime: nas suas moléculas penetraram as vibrações de dor do homem; da dor que corrige e abate orgulhos, que purifica, que
redime e diviniza a criatura, obrigando-a a olhar angustiada e humilde para o céu, na ansiosa procura de Deus e penetraram-nas, santificando-as, as
vibrações do espírito desses anjos tutelares que, sob a forma humana de médicos, de enfermeiros, de sacerdotes, de mordomos e provedores, têm dado o
melhor de sua ciência, de sua energia, de suas vidas enfim, no combate ao sofrimento humano.
"Mas, para dentro destas paredes sagradas, não se mudou em 1836
apenas a instalação material de uma Santa Casa; para este recinto veio o mesmo espírito de 1543, de há quatro séculos passados, quando Braz Cubas,
português votado ao Brasil, ao seu rei na terra e a Jesus Cristo no céu, e inspirado pela doutrina suavíssima que ressuma do Sermão da Montanha –
levantou com quatro paredes um hospital, e escreveu-lhe no pórtico rústico e pequenino os dizeres tão grandes, tão formosos como a superior bondade
cristã: - 'Casa de Deus para os homens e porta aberta ao mar'.
"É preciso notar, senhoras e senhores, que Braz Cubas, guerreiro e
colonizador, revelou nessa inscrição não só o seu irresistível e eficiente pendor para o bem, como marcada vocação poética, pois nessa inscrição –
Casa de Deus para os homens e porta aberta ao mar – encerra-se também muita poesia, e da mais formosa, que é a que salta espontânea diretamente do
coração, como a água cristalina rebrilha ao sol deixando o seio da rocha viva.
"Aqui dentro destas paredes, velando amargurados
ao lado de agonias, ou sorrindo vitoriosos junto ao leito dos convalescentes, médicos doutíssimos mergulharam profundamente seus pensamentos em
busca de uma solução salvadora para vidas que se extinguiam ou que periclitavam. E essa concentração profunda de pensamento médico na descoberta da
víscera doente do remédio próprio vem se prolongando aqui há quatrocentos anos, de tal maneira que se esse pensamento, por vezes suado e torturado,
gotejasse, e formasse concressões, ele tomaria a forma de altíssimas estalactites. Estas, espiritualmente, estão na realidade formadas, e significam
o imenso cabedal de experiência acumulada, verificada e sancionada como ciência.
"E de início, senhoras e senhores, lá pelos
remotos mil e quinhentos e mil e seiscentos e tantos – reconheçamo-lo agradecidos – esses médicos eram quase sempre os próprios sacerdotes da igreja
católica, eis que não tínhamos aqui físicos e cirurgiões do reino. Eram porém eles, os padres jesuítas, os melhores cultores da ciência àquele
tempo, entre nós; eram eles os nossos grandes naturalistas, os profundos botânicos e físicos do tempo, que observando pessoalmente e colhendo dos
índios informações sobre as virtudes da nossa riquíssima flora medicinal; e eram eles os nossos grandes naturalistas, os profundos botânicos e
físicos do tempo, que observando pessoalmente e colhendo dos índios informações sobre as virtudes da nossa riquíssima flora medicinal; e eram eles
que, nesta colônia de sertão bravio e de litoral exposto aos corsários e piratas, eram eles, os sacerdotes de Cristo, que iam ministrando infusões e
aplicando sangria.
"Quanta vez, no mesmo homem, se acomodaram e
exerceram ao mesmo tempo as vocações de um grande sacerdote e de um grande médico, pelo menos do médico possível naqueles tempos – e uma coisa e
outra foi por certo o nosso imortal José de Anchieta.
"Esta casa, desde o seu remotíssimo início, por
natureza e por nome de batismo – Casa de Deus – foi templo; e, por destinação imediata, Santa Casa da Misericórdia – abençoado luzeiro a brilhar
neste perdido recanto do então ignoto Novo Mundo.
"Por todos esses motivos, senhores, assustei-me
quando fui surpreendido pelo dever de valar neste alto e magno recinto, quando já me não cabia recurso dessa decisão.
"E perguntei, ainda conturbado, ao meu
prezado amigo, dr. Gervasio Bonavides: - 'Mas, no meio de solenidades tão grandes, falar eu o
quê, em nome da nossa Procuradoria, em Santos, ainda tão modesta, e que diante dos quatrocentos anos da Santa Casa, está engatinhando nos seus três
anos de idade?'
"- 'Dirá, respondeu-me
peremptoriamente o Curador Geral, que a Procuradoria é uma Santa Casa jurídica para os pobres'.
"Essa definição, pois, certa ou errada, é dele.
Todavia, na verdade, em um agravo interposto perante o Egrégio Tribunal de Apelação do Estado, já eu dissera: 'Esta Procuradoria é uma clínica de
direitos de gente pobre!' E noutro recurso perante o mesmo Tribunal eu exclamara, apaixonado ao último ponto pela causa que defendia, quem sabe se
sem razão: - 'Não sejam, porém, os médicos melhores que os juízes, que estes também devem cortar tumores e curar feridas! Porque a sociedade é um
organismo vivo, atormentado de erros e de doenças físicas e morais, e, sob esse aspecto, o Direito é Medicina curativa!'
"De fato, senhores, na nossa Procuradoria não
corre o sangue, mas há os portadores de feridas profundas, e os sofredores de dores lancinantes, para as quais não há, infelizmente, o recurso
pronto das injeções sedativas; mas são dores reais, que abatem o espírito e aniquilam as energias do corpo. Não aparecem membros despedaçados, mas
direitos com lesões gravíssimas, que se não forem tratadas em tempo, poderão levar o pobre ao manicômio, ao hospital de caridade ou às
penitenciárias do Estado. E assim, tratando desses casos, dando-lhes adequado remédio jurídico a esses portadores do atestado de miserabilidade, a
Seção de Santos da Procuradoria de Serviço Social obteve, no espaço de três anos de sua existência, mil e trinta e seis sentenças judiciais
favoráveis aos assistidos.
"Porém, não viemos aqui proclamar o que a
Procuradoria tem buscado fazer no sentido do reajustamento social dos desvalidos desta terra, e sim viemos – data venia – sustentar
rapidamente um ponto de vista, o de que a assistência médica aos pobres e a assistência judiciária freqüentemente se completam, e, mesmo, que muita
vez se torna uma indispensável à outra, para que o verdadeiro escopo de ambas, isto é, reajustamento e recuperação social do indivíduo fisicamente
doente e economicamente débil, seja atingido.
"Se na doença física encontra-se a todo o momento
a origem da ruína de um patrimônio material e moral, não é menos certo que na lesão de um direito, ou na falta de amparo à realização de um direito,
encontra-se, muita vez, a origem do desespero, da desorganização do indivíduo e da família, da revolta, do desajustamento econômico e da miséria, e,
portanto, da deficiência orgânica e da instalação da moléstia fatal ao organismo humano.
"Está se aproximando a hora em que será
geralmente reconhecido e proclamado que o Direito não é nada cerebrino, nem fruto de lucubrações abstratas de gabinete, nem simples pilhas de
Códigos e de coleções de leis, mas sim o mais importante ramo da Sociologia, ciência de laboratório, que é o imenso laboratório constituído pelos
grupamentos humanos, cujas reações não são tão precisas e passíveis de redução a fórmulas como as reações realizadas no bojo das provetas, mas, nem
por isso menos certas, menos profundas e decisivas, e afinal, felizes ou infelizes para a condução dos destinos da sociedade.
"O tempo está chegando em que o médico e o
jurista fundirão fraternalmente seus esforços na consecução do bem social, ao invés de se colocarem em campos de atividade tão afastados um do
outro, como se num deles se tratasse do movimento dos astros nos espaços infinitos, e no outro se decifrassem hieróglifos e caracteres cuneiformes.
"Socializa-se cada dia mais a nobre profissão
médica, e, por sua vez, o direito social, isto é, o sistema legal de proteção aos economicamente débeis, mais se desenvolve. Aí está, modernamente,
o mais forte traço de união entre ambas as atividades, a atividade médica e a atividade jurídica. Todavia, o Direito sempre teve profundas raízes na
Medicina e na Biologia. Não só na criminologia, por sua fundamental dependência da Medicina Legal e da Psicopatologia, como em outras especialidades
de Direito, as suas relações com a Medicina e a Biologia em geral são patentes.
"Realmente, o Direito, de certo modo,não é mais
do que o invólucro protetor, regulador e moderador de energia vitais, das aspirações morais e das necessidades e instintos orgânicos, quer do
indivíduo, quer das coletividades, isto é, dos instintos de nutrição e de multiplicação, de formação e de conservação e progresso do grupo social,
dentro de normas gerais e superiores, tanto mais elevadas, justas e sábias, quanto mais alto o grau de cultura atingido pelo respectivo grupamento
humano.
"Quando, porém, esses impulsos vitais,
energias orgânicas, se hipertrofiam e despedaçam as peias moderadoras da norma jurídica, então surgem os atos brutais de assalto individual ou de
agressão e de conquista coletiva; e então, no comportamento puramente individual, manifesta-se a violência do salteador e do conspurcador de todos
os preceitos nobres e dignificantes da existência humana; e, no comportamento coletivo, dá-se o desencadeamento brutalíssimo de rapinagem
internacional; e é quando vemos, com a ruptura da norma jurídica. Asseguradora do desenvolvimento normal e moderadora dos instintos, é quando vemos,
numa franca manifestação de predatismo – e o predatismo é um fenômeno biológico – a interdevoração dentro da mesma espécie humana; o mais forte
despedaçando e devorando o mais fraco; e isso não só entre os canibais, como entre os trancos, soi-disant civilizados; do homem feroz
para com o seu semelhante: homo homini lupus; do grupo social feroz para com outro grupo social mais fraco; - vemos então a Holanda, a
Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Albânia e a Grécia – esta, a mãe gloriosa de toda a cultura ocidental – despedaçadas e devoradas pela monstruosa
fome patológica, pelo predatismo, pelo orgulho delirante de paranóicos que os manicômios não recolheram em tempo oportuno.
"Contra a hipertrofia dessas terríveis
personalidades psicopáticas, que lançam uns povos contra os outros, a força magnética e invencível do Direito – que é também Justiça – tem levantado
a força dos exércitos, mas sem poder impedir que o sangue humano corra em catadupas. Porém temos fé, senhores, e especialmente vós, senhores
médicos, em que o esplendoroso desenvolvimento da Medicina e, neste caso, da Psiquiatria, da Endocrinologia e da Psicanálise, tornará, em breve,
impossível o desenvolvimento internacional desses trágicos desequilibrados, porque eles serão oportunamente reconhecidos nas suas taras, suas
perturbações endócrinas, no seu hábito paranóico, e serão em tempo recolhidos a clínicas psiquiátricas, como perigosos megalomaníacos, histéricos
mitomaníacos, e como loucos morais. Ainda mais esse benefício a humanidade sofredora espera do progresso da Medicina.
"Mas, busquemos ainda outra profunda correlação
entre a Biologia e o Direito. Se a Biologia é a ciência da vida, e a vida é marcada nas suas diferentes fases, pela concepção do novo ser, pelo seu
nascimento, crescimento, maturidade, decadência e morte, é bem claro que o homem, ainda no ventre materno, e depois no berço, e mais tarde na
juventude, e, após, na estação dos frutos sazonados, e na velhice, e no ponto final do derradeiro batimento cardíaco – o homem tem sempre, quer
queira, quer não o queira, ao redor de sua pessoa física e moral, um invólucro jurídico, que deve ser forte como uma armadura, mas que, se não for
bem constituído, se romper na luta, ou se enfraquecer, a criatura se debilitará economicamente, e fisiologicamente, e iniciará, de modo fatal, a
decida que termina na miséria, no hospital de caridade e na cadeia pública.
"Quando o direito recolhe as energias físicas e
efetivas que levam à constituição da família humana, e regula institutos tais como o matrimônio, pátrio poder, não faz mais do que impor à
proto-energia reprodutiva os imperativos da consciência jurídica, da moral e da religião cristã.
"Da mesma forma, quando o direito civil, no
direito das coisas regula a posse e a propriedade dos bens materiais, está dando preceito, de acordo com a cultura geral da época, a uma outra força
orgânica tremendamente poderosa, isto é, ao instinto de nutrição, a suprema força vital e orgânica, que agita desde os últimos seres monocelulares
aos mais complexos grupamentos sociais.
"Onde, senhores, maior entrelaçamento do Direito
Social e da Medicina Social do que nas leis trabalhistas? Onde, mais do que nesse ramo jurídico, a colaboração do médico e do jurista é mais íntima?
O médico e higienista apontando as medidas indispensáveis à defesa orgânica do operário em geral, do menor trabalhador, da operária gestante, do
repouso da operária antes e depois do parto, dos descansos especiais para amamentação do recém-nascido etc. O jurista e legislador, recolhendo
cuidadosamente esses preceitos da ciência médica, para dar-lhes a forma jurídica possível dentro da estrutura legal do país, fazendo-os absorver
pelo organismo jurídico nacional, isto é, articulando-os organicamente com as normas do Direito Constitucional, com o Direito Civil e Penal, e com
possibilidades da organização economico-social do país.
"Assim, a função social do médico e a função
social do advogado são sinérgicas e irmãs, indispensáveis uma à outra para que ambas atinjam, não elementarmente, mas superiormente, o mesmo fim,
que é o bem extra-individual e coletivo. Eis pois, senhores, porque venho aqui sustentar o ponto de vista de que a assistência médica para os pobres
– nem sempre, é certo, mas num sem número de casos – exige como complemento indispensável a assistência judiciária, se não se visar apenas tirar
momentaneamente esse pobre do estado de doença que o inutiliza socialmente.
"E, mutatis mutandi, a assistência
judiciária, muita vez, torna-se inoperante e até mesmo impossível, sem a imediata colaboração da assistência médica.
"São do eminentíssimo professor Clementino Fraga,
que ainda anteontem nos encantou a todos com a sua palavra tão rica de beleza e de ciência, estas palavras de largo descortino transcritas de sua
excelente monografia, Medicina Social:
'A
Assistência Social abona a personalidade médica na expansão, transpõe o dever clínico, modesto e unilateral, realizando obra de outro vulto, porque
de proteção do maio número sem distinção de classe, condições e hierarquia. É, pois,o trabalho que visa a comunhão social, que se inspira nos votos
auspiciosos de sua defesa, que busca o benefício comum da solidariedade do movimento tutelar. Assim a obra da Medicina preventiva vai da
subtração do contágio ao cuidado da resistência individual, aos imperativos orgânicos da higidez às cogitações da previdência social'.
"Ora, a previdência social ultrapassa o âmbito
puramente médico e higiênico.
"Senhores: colaboração, eis a palavra mágica para
as realizações da assistência social integral. Colaboração ampla e intensa, entrosamento perfeito entre as diversas instituições assistenciais de
finalidades específicas diversas, eis a fórmula para consecução desse ideal tão claramente exposto pelo eminentíssimo mestre. E onde, melhor do que
em Santos, poder-se-á praticar essa assistência integral? Parece-nos que em nenhuma outra parte do mundo. Porque, senhoras e senhores, a gente desta
terra é singularmente acolhedora e colaboradora de todos os impulsos nobres. As suas instituições particulares de assistência social tão
notavelmente bem organizadas. Parece que todos têm a volúpia de colaborar. E não há como fazer distinções.
"Encarregado, nesta cidade, de um serviço social
público, que me foi entregue pela honrosa confiança que em mim depositaram meus chefes, o eminentíssimo cientista, médico e homem público, o dr.
Francisco Salles Gomes Junior, diretor geral do Departamento de Serviço Social, e dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, ilustre diretor advogado
chefe da Procuradoria, aqui presentes, eu posso sinceramente declarar que nada tenho feito que mereça menção especial, porque aqui em Santos todos
ajudam a trabalhar pelo bem coletivo, e quem não fizer alguma coisa pelos desvalidos nesta terra, é porque não tem jeito mesmo: o Ministério
Público, os cartórios, hospitais, asilos, sociedades de beneficências em geral.
"Da Justiça, que havemos de dizer, se o diretor
do Fórum, o meritíssimo juiz da 1ª Vara, essa estimadíssima e paternal figura do dr. Euclydes e Campos é um dos visitadores da Sociedade S. Vicente
de Paulo, que com as suas próprias mãos distribui pelas casas dos pobres os dons de sua imensa bondade?
"É bem possível que, em tanta e tão singular
magnanimidade, tenha influído profundamente, como escola, esta Santa Casa que há quatrocentos anos cultiva e ensina pelo exemplo a prática do bem.
"Quanta vez, senhores, os nossos assistidos,
famintos de Justiça, têm também urgentes necessidades de pão para mitigar sua fome, e assim, temos invariavelmente batido ás portas da nunca assaz
louvada Sociedade S. Vicente de Paulo, para que os alimente. No início, ainda incipiente, da nossa atividade em Santos, inúmeras vezes, e a nosso
pedido, sob o ardente sol de dezembro e março, irmãos de S. Vicente de Paulo subiram as ásperas encostas dos morros de S. Bento, do Fontana, da Nova
Cintra, a fim de verificarem in loco a situação de pobreza dos nossos assistidos, apresentando-nos relatórios notáveis pela franqueza e
fidelidade. Por isso, aproveitamos agora esta oportunidade sem igual para rendermos – a Seção de Santos – nossa comovida homenagem também a essa
Sociedade S. Vicente de Paulo, tão digna de trazer o nome do santo que é o mais antigo e continua sendo o mais alto patrono do serviço social no
mundo inteiro.
"Outra vez, senhores, é o Asilo Anália Franco;
outra é o Asilo de Proteção à Infância, dirigido por essa nobilíssima figura de homem ilustre, bom e eficiente que é o dr. Vitor De Lamare; outra, é
a Gota de Leite, conduzida por outro homem de ciência que é o dr. Othon Feliciano. E assim são todos, derramando bondade às mancheias, fazendo desta
cidade a cidade santa da solidariedade humana.
"Mas, senhores, e vós particularmente, senhores
médicos da Santa Casa, quiserdes saber ao certo o que a assistência jurídica, retribuindo, pode fazer pelos vossos assistidos, realizai apenas, por
exemplo, um inquérito entre as vossas parturientes pobres! Vereis quanto sedutor bem abonado e impenitente, e quanto pai relapso deveria ser chamado
perante a justiça, através das ações de alimentos e de investigação de paternidade. Fazei entre os vossos doentes pobres uma pesquisa social, e
vereis quantos deles, antes de chegarem a essa situação de penúria econômica e descalabro orgânico, foram antes privados de tudo, lesados nos seus
direitos patrimoniais, e assim privados do agasalho e do pão de cada dia!
"Termino, e já não é fora de tempo. Perdoai-me,
exmas. senhoras e senhores, pelo muito que falei; julgo merecer perdão, ao menos pelo espírito de disciplina que demonstrei, deixando a modesta
penumbra, em que tanto amo viver, para cumprir uma determinação, aliás sobremodo honrosa para mim. Perdoai-me, principalmente, pelo desejo da
Procuradoria de Serviço Social de também servir a esta casa ilustre, gloriosa e santa; que se algum de vossos doentes pobres precisar também do
amparo da Lei, a um simples aceno a Procuradoria do Serviço Social aqui estará, a qualquer hora do dia ou da noite, rente à sua cabeceira, seja qual
for a moléstia, eis que esse é o vosso abnegado e magnífico exemplo, srs. médicos, administradores e enfermeiros desta casa.
"E eis que, transpor os umbrais da Santa
Casa de Santos para prestar serviço, é, para qualquer um, honra muito excelsa; é servir a Deus e à Pátria, é servir ao próximo sofredor; é
conquistar um bem alto brasão de benemerência.
"Mais ainda: é fazer com que as vibrações
atuais de nossa alma alcancem, maravilhosamente, pela prática do bem, os homens do porvir; porque, como estamos vendo, as gerações passam e
passarão, mas esta Santa Casa não passará a não ser com a geração derradeira. E daqui a cinco séculos, haverá nesta cidade esta Santa Casa; e será
honrada a memória dos seus grandes vultos emoldurando a figura imortal de Braz Cubas; e esplenderá nos seus pórticos monumentais a velha, amada e
abençoada divisa: 'Casa de Deus para homens,
porta aberta ao mar'".
Palavras do dr. Xisto Pereira de Carvalho
Após ouvir-se a palavra do dr. Alves
Feitosa, falou ligeiramente o dr. Pedro Xisto Pereira de Carvalho, advogado-chefe da Procuradoria de Serviço Social em São Paulo.
Disse que a Procuradoria do Serviço
Social poderá, segundo os preceitos do Departamento do Serviço Social, dispor de "instalações ad-hoc" onde e quando seja necessário tal
serviço de proteção social. Em Santos, por exemplo, e no próprio recinto da Santa Casa, em seu novo hospital, onde haveria uma sala para o advogado
da Procuradoria do Serviço Social prestar assistência específica à assistência geral dessa secular instituição de caridade.
E terminou por declarar,
simbolicamente, inaugurada a "instalação ad-hoc" – importante atribuição do Serviço Social do Estado – junto à Santa Casa de Misericórdia, em
homenagem ao quarto centenário de sua fundação.
- O dr. Euclides de Campos, depois de
agradecer as palavras dos oradores e de referir com entusiasmo a obra assistencial da Sociedade de S. Vicente de Paulo, citada pelo dr. Alves
Feitosa, declarou encerrada a cerimônia. |