O mapa consta do livro
manuscrito, em dois volumes e inédito, trazido por d. João VI com os volumes da Biblioteca da Ajuda, que transportou para o Brasil quando deixou
Portugal diante das hostes de Junot. O trabalho foi elaborado pelo conde de Val de Reis, nomeado por d. José provedor da Santa Casa, após o
terremoto de 1755. Destruído quase todo o prédio e arquivo, o conde Val Reis nesse documento restaurou tudo quanto pôde do referido arquivo. Vemos
nesta página que reproduzimos do manuscrito, conservado na Biblioteca Nacional, a indicação das primeiras assinaturas de d. Manoel e outras pessoas
reais. A nossa reprodução foi autorizada pelo diretor da Biblioteca Nacional, dr. Rodolfo Garcia
Imagem publicada com o
texto, página 50
O primeiro hospital do Brasil foi o da Santa Casa de Misericórdia de Santos
ntre os autores consultados e constantes do nosso elenco
bibliográfico, Felix Ferreira foi o único a discordar da primitiva existência do hospital a essa pergunta.
Para o autor da
Misericórdia Fluminense, a Irmandade santista foi a primeira a se estabelecer no país. Não possuía porém hospital. Teria exercido sua atividade
beneficente sem o aparelhamento destinado a dar agasalho e tratamento aos enfermos. Empenhando-se em demonstrar esta tese, procurou atribuir as
primícias de uma organização desse gênero à confraria análoga do Rio de Janeiro.
Segundo Ferreira, o hospital do Rio de
Janeiro teria surgido em 1545, quando a Misericórdia de Santos, criada em 1543,
ainda não dispunha de idêntico órgão de assistência médica.
O escritor carioca baseia seus argumentos em dois documentos:
um datado de 1605 e outro de 1654. O primeiro é um requerimento feito pelos Irmãos do Rio de Janeiro, de cujos termos deduz Felix Ferreira a
existência de um hospital de Misericórdia no Rio de Janeiro no ano de 1545. O segundo, o de 1654, consta de uma provisão de d. Jerônimo de
Ataíde, capitão general do Estado do Brasil, em que este diz "não haver na dita Vila (Santos) casa separada de Misericórdia", sendo grande a
necessidade que ali havia de hospital "por ser posto onde freqüenta o comércio de toda a capitania". Em suma: o Rio de Janeiro já dispunha de
hospital em 1545, ao passo que Santos só o teria instituído depois de 1654.
A Irmandade de Santos, para o autor, havia funcionado sem
hospital, por mais de um século, ou exatamente 111 anos (1543-1654).
Os paulistas, nesse caso, não haviam tomado o exemplo de
outras cidades, do nosso litoral, onde tais casas de caridade já funcionavam naquela época. Tentando reforçar suas conclusões, Ferreira foi buscar,
em uma carta de Nóbrega, a impressão de que em 1560, São Vicente seria inferior ao Rio de Janeiro.
Antes de entrar na análise dos dois documentos acima
referidos, vejamos o caso de Manoel da Nóbrega. A epístola mencionada é a escrita, em 1560, pelo ilustre provincial jesuíta ao cardeal d. Henrique.
Felix Ferreira extraiu dessa missiva o seguinte trecho:
"Esta capitania se
tem por a melhor cousa do Brasil, depois da do Rio de Janeiro".
Admitindo que Nóbrega se referia a São Vicente, o apressado
argumentador colocou, por sua conta, a palavra São Vicente, entre parêntesis, e assim fez a sua transcrição:
"Esta capitania
(de São Vicente) se tem por a melhor cousa do Brasil, depois da do Rio
de Janeiro".
O enxerto não é verdadeiro. A capitania a que se referiu Manoel da Nóbrega foi a
do Espírito Santo e não São Vicente. Ferreira, que tanto acusa monsenhor Pizarro de não saber ler o que teve sob os olhos, não soube com certeza
entender a carta do grande provincial do Brasil, publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1843, v. 5, pág. 352. Para
verificar que Nóbrega referiu-se ao Espírito Santo como inferior ao Rio de Janeiro e não São Vicente, basta transcrever o seguinte trecho da carta
de 1º de junho de 1560:
"Depois, sendo o
governador de muitos requerido que fosse vingar a morte do bispo e dos que com ele iam, por ser um grande opróbio dos cristãos, ser causa dos
índios ganharem muita soberba, porque morreram ali muita gente e muito principal, ele se fazia prestes aparelhando muitos índios da Bahia; mas
isto estorvou a vinda da armada que veio; com a vinda da qual se determinou de ir livrar o Rio de Janeiro do poder dos franceses todos luteranos.
E partiu, visitando algumas capitanias da costa até chegarão ao Espírito Santo, capitania de Vasco Fernandes Coutinho, onde achou uma pouca de
gente em grande perigo de ser comida dos índios, e tomados dos franceses quais todos pediram que ou tomasse a terra por el-rei, ou os levasse
dali, por não poderem jamais sustentar; e o mesmo requeria Vasco Fernandes Coutinho por suas cartas ao governador: depois de tomado sobre isto
conselho, aceitou, dando esperanças que da tornada a fortaleceria e favorecia no que pudesse, por não ter tempo para mais e por não se estorvar do
negócio a que vinha do Rio de Janeiro. Esta capitania se tem, por a melhor cousa do Brasil depois do Rio de Janeiro: nele temos uma casa onde se
faz fruitos com cristãos e com escravos, e com uma geração de índios, que ali está, que se chamam do Gato, que ali mandou vir Vasco Fernandes do
Rio de Janeiro, entendem-se também com alguns Tupinaquins; e se Nosso Senhor der tão boa mão ao governador à tornada, como lhe deu em todas as
outras partes, que os ponha a todos em sujeição e obediência, poder-se-á fazer muitos fruitos, porque este é o melhor meio que pode haver para sua
conversão".
Nem uma palavra aqui há sobre São Vicente e sim sobre Espírito Santo, de Vasco
Fernandes Coutinho. Ferreira não leu a carta e se a leu não a entendeu.
Este autor, com a carta de Nóbrega, quis provar que sendo o Rio de Janeiro
naquele tempo mais importante do que S. Vicente, o hospital com mais razão teria surgido primeiro naquela cidade. Sabemos que, ao contrário, S.
Vicente era naquela época um centro de maior vulto do que a atual capital do Brasil. Mas, se não fosse errôneo o fato histórico, errônea seria a
dedução de Ferreira. O México, por exemplo, lançou seu primeiro hospital e sua primeira universidade antes dos Estados Unidos da América do Norte.
Passemos, agora, a examinar o documento de 1605. Consta de uma petição enviada a
Felipe II de Portugal (III da Espanha) pela Santa Casa do Rio de Janeiro. Eis os seus termos:
"Dizem o Prouedor, Eirmãos
da sacta casa de Miâ da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro partes do Brazil q'h secenta anos que tem feito caza con seu Hospital para
enfermos; Sancrestia; palratorio; El he hua das boas da Costa, e alguas faz vantagem notavel com sempre ter sua irmandade guardando o compromisso,
fazendo mtas esmollas, casando orfans, edando ordinarias todos os sabados, conforme a possebilidade da terra. E porquanto attegora não tem
prouisão para ser miezricordia. P. aV. Mte. lhe mande passar prouisão para que aquela caza possa gosar de todos os preuilegios Egraças, honras
Eliberdades que tem Egosão as casas desta Cidade de Lx.ª Ez da Villa de Setuval, Eas mais do Rno. E. Rme. '12'".
Nesta petição Felipe II de Portugal deu o seguinte despacho:
"Ev
El Rey faço saber aos que este aluará uirem que auendo respeito ao que na petição atras escrita dizem o Pouedor, Eirmãos da Santa Misericordia da
Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, partes do Brazil, Euistas as causas que alegam, Ey porbem e mepraz que elles possam gosar E uzar de
todas as prouisões, Epriuilegios conçedidos ha casa de Mia desta Cidade de Lixboa e isto naquellas cousas em que selhes poderem aplicar, e ás
justiças a que este aluará for mostrado e o conhecimento pertencer ocupram como nelle secontem, o qual hey por bem que ualha como carta feito em
meu nome por my assinada, sem embargo de ordenação do segundo liuro titt.º quarenta emcontrario. João feo o fez em Lix.ª oito de Octubro de mil
seisçentos e cinquo e Duarte Correa o fez escreuer.
Aluará por que V. Mte. a por bem que o Prouedor Eirmãos da Sancta Miâ da Cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro possam gozar, Euzar de todas as prouisões Epriuilegios concedidos a mizericordia desta cidade de Lix.ª
naquellas cousas que se lhes podem aplicar.
Para V. Mte. ver".
Este é o único documento conhecido que faz recuar a data da
fundação dessa Misericórdia para o ano de 1545. É a diferença entre a data de 1605, do alvará de Felipe II de Portugal e os sessenta anos anteriores
alegados na petição da Santa Casa que, aliás, não tinha data. É Felix Ferreira quem nos assegura esta circunstância:
"De todos perdidos os
livros e papéis da nossa Misericórdia referentes ao século XVI, impossível fora hoje descobrir ao certo a data da sua fundação; a única luz que
esclarece a questão é a afirmação dos sessenta anos de existência, que em 1605 fez o provedor quando solicitou a provisão que foi concedida por
Felipe II, remontando assim aquela fundação a 1545, o que tanto repugnou a monsenhor Pizarro e a mim não custa a aceitar e por mais de uma razão".
É realmente muito impreciso o argumento, e Felix Ferreira,
que o aceita e defende, junta mais este:
"Tendo-se fundado a
Misericórdia de Santos em 1543, não poderia fundar-se a de S. Sebastião em 1545? É bem possível até mesmo por simples imitação. É bom lembrar que
afinal de contas ambas futuras cidades não passavam então de centros de população que se disseminavam por muitas léguas em redor".
Outros escritores que se ocuparam desse tema, entre os que
consultamos, não se conformam com a data de 1545.
Entre eles está monsenhor Pizarro, que contesta os "sessenta
anos" referidos em 1605:
"Se os impetrantes
pretenderam (sem fundamento) deduzir a origem dessa casa da era de 1556, em que no Rio de Janeiro se estabeleceram os primeiros franceses, não
podiam chegar os anos a mais de 49; e se contaram desde a fundação da cidade em 1567, eram passados apenas 38 anos, seguindo a data da provisão
sobredita".
E acrescenta:
"Se aquela capitania
de S. Vicente, povoada pelos portugueses muito antes que a do Rio de Janeiro, principiou a ter casa da Misericórdia no ano de 1543, como seria
possível que se fundasse outra semelhante aqui, antes de se estabelecer e povoar a cidade".
Insurge-se Ferreira contra a data de 1567 como marco inicial
da cidade do Rio de Janeiro. Na sua opinião "está fora de dúvida que a origem desta capital remonta-se a 1503
ou 1504 e que foi Gonçalo Coelho quem lançou-lhe os primitivos fundamentos". Refere-se aos acontecimentos
ocorridos com a frota de Gonçalo Coelho. Encarregada de descobrir o caminho mais curto para Málaca, aqui aportou, dispersada por um temporal,
desembarcando em parte na Praia Vermelha, onde assentou um aldeamento.
Não esquece porém, o referido autor, de dizer que esta aldeia
foi logo destruída "pelos indômitas selvagens logo que o navegador se ausentou e seguiu no cumprimento de sua
missão em busca do caminho de Málaca".
E dando para Mem de Sá apenas o título de segundo fundador da
cidade, escreve:
"Meio século depois
da primeira fundação é que Mem de Sá tentou a segunda na Praia Vermelha onde se acastelou posteriormente Estácio de Sá com sua gente para dar
repetidos combates aos franceses, até conseguir afinal a vitória de 1564, seguida da transferência da povoação e fundação oficial da cidade".
Estas transcrições têm o intuito de demonstrar que o próprio
autor, empenhado em justificar a data de 1545, o faz baseado na existência de um aldeamento efêmero e uma reduzida população da capitania que se
procurava povoar.
Tem razão Felix Ferreira em recuar a data da fundação da
cidade do Rio de Janeiro? Passemos rápida revista no que dizem nossos escritores sobre este ponto da nossa história.
Tomemos, em primeiro lugar, o Apóstolo do Brasil:
"De S. Vicente, dizia
o padre José de Anchieta, em 1565, se escreveu largamente o que aconteceu à armada que foi povoar o Rio de Janeiro, este ano passado".
Antonio Duarte Nunes, na sua Memória do descobrimento e
fundação da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro (publicada no Tomo I, vol. 1 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
terceira edição de 1908, págs. 96 e seguintes e reproduzido no Tomo XXVII, parte primeira, de 1864 da mesma Revista, págs. 7 e seguintes),
diz o seguinte:
"As confusas
notícias, e diminutos conhecimentos com que ainda estava a nossa corte, no ano de 15530, a respeito dos mares, e continente que seguem da Bahia de
Todos os Santos para o Sul, até o Rio da Prata, deu bastante motivo para que o Senhor Rei d. João III, desejoso de conhecer este resto ainda não
explorado, fizesse aprontar uma armada, e mandasse examinar a costa do Sul de todo este continente, até o famoso Rio da Prata; nomeando para
comandante daquela expedição a Martim Affonso de Souza, seu conselheiro, a quem ordenou que se estabelecesse uma colônia no lugar que lhe
parecesse mais cômodo para isso.
Com próspera viagem chegou a esta altura de 23 graus,
avistando logo terra; e mandando aproximar as embarcações à costa, divisou, no dia 1 de janeiro de 1531, um boqueirão defendido de altos penhascos
por uma e outra parte, e com uma grande laje no centro, que, dividindo as águas, oferecia duas barras, para o interior de uma dilatada baía, com
muitas ilhas de diferentes grandezas.
Os naturais do país chamavam a este sítio Niterói, e Martim
Affonso de Souza o denominou Rio de Janeiro, pelo ter descoberto neste mês.
Por ordem sua fundearam todas as embarcações fora da barra;
e procurando a terra, em uma pequena lancha, que o conduzia, desembarcou junto ao Pão de Açúcar, na praia, que por isso chamaram até certo tempo
Porto de Martim Affonso de Souza, e depois Praia Vermelha.
Tendo explorado o terreno se retirou a seu bordo,
desprezando todas as comodidades deste belíssimo país, por não expor como se supõe a sua tropa e colonos às contingências de uma guerra perigosa e
com os índios de todo este continente, do qual se ausentou, continuando a diligência de explorar a costa, em conseqüência das ordens de que viera
encarregado".
Depois de descrever os feitos de Villegaignom, diz:
"Quatro anos haviam,
que os franceses dominavam esta porção de terra, confederados com os índios Tamoios, que sendo naturalmente indômitos, os tinha domesticado o
político trato daquela nação. De tal forma infestavam uns e outros estes mares, e toda a costa, que foi preciso aplicar maiores forças, para
embaraçar-lhes os progressos com que procuravam dilatar os seus domínios nesta província; até que, finalmente, pelos avisos do governador de S.
Vicente ao governador geral do Estado, foi ciente a nossa corte, que os franceses desde o ano de 1556 ocupavam a enseada do Rio de Janeiro,
apossando-se cavilosamente deste sítio, drogas do país, e comércio dos índios, e que estes auxiliados dos mesmos franceses, discorriam por toda a
costa, aumentando as suas hostilidades contra os portugueses. Estas notícias deram grande cuidado ao nosso ministério, e sendo logo participadas a
S. Alteza a Sereníssima Senhora d. Catharina de Áustria, que pela menoridade de seu neto o sr. rei d. Sebastião, regia o reino, fez expedir uma
armada, dirigindo-a o governador geral Mem de Sá, para que com todas as forças procurasse lançar fora aquela ignomínia do nome português.
Em conseqüência desta ordem (1560), marchou o governador
geral Mem de Sá - com a sua armada, que se compunha de duas naus, e oito ou nove navios, e avistando prosperamente esta barra, expediu um aviso
para a capitania de S. Vicente, donde em breve tempo lhe veio um bergantim guarnecido de artilharia e tropa, e unindo estas forças às que trazia
na sua armada, procurou a barra, onde felizmente entrou no dia 21 de fevereiro de 1560".
Mem de Sá vitorioso:
"De S. Vicente
expediu um aviso para Lisboa participando à Sereníssima Senhora d. Catharina a feliz vitória, que alcançara do orgulho dos franceses e tamoios do
Rio de Janeiro; narrando-lhe todo o sucesso nesta carta, fielmente extraída do original, que está na Torre de Tombo (gaveta 2, maço 10).
Senhor. - A armada que V. A. mandou para o Rio de Janeiro
chegou à Bahia o derradeiro dia de novembro; tanto que o capitão-mor Bartholomeu de Vasconcellos me deu as cartas de V. A., pratiquei com ele, com
os mais capitães e gente da terra, o que se faria, que fosse mais serviço de V. A.; a todos pareceu que o melhor era ir cometer a fortaleza,
porque o andar pela costa era gastar o tempo e monção em cousa muito incerta.
Eu me fiz logo prestes o melhor que pude, que foi o pior
que um governador podia ir, e partir a 16 de janeiro da Bahia e cheguei ao Rio de Janeiro a 21 de fevereiro, e em chegando soube que estava uma
mau pelo RIo dentro do próprio Monsieur De Villegaignon, que lhe mandei tomar pela Gale Ezaura que V. A. cá tem. Quando o capitão-mor e os mais da
armada viram a fortaleza, a sua fortaleza, a aspereza do sítio, a muita artilharia e gente que tinha, a todos pareceu que todo o trabalho era
debalde, e como prudente arreceavam de cometer cousa tão forte com tão pouca gente; requereram-me que lhes escrevesse primeiro uma carta, e os
admoestasse que deixassem a terra pois era de V. A.; eu lhes escrevi, e me responderam soberbamente.
Prouve a Nosso Senhor que nos determinamos de a combater, e
a combatemos por mar, e por todas as partes em uma sexta-feira, 15 de março, e naquele dia entramos a ilha onde a fortaleza estava posta, e todo
aquele dia e o outro, pelejamos sem descansar de dia e de noite, até que N. S. foi servido de a entrarmos com muita vitória e morte dos contrários
e dos nossos poucos; e se esta vitória me não tocará tanto, pudera afirmar a V. A., que há muitos anos se não fez outra tal entre cristãos.
Porque, posto que vi muito e li menos, a mim me parece que
se não viu outra fortaleza tão forte no mundo. Havia nela setenta e quatro franceses ao tempo que cheguei, e alguns escravos; depois entraram mais
de quarenta dos da nau e outro que andavam em terra, e havia muito mais de mil homens dos do gentio da terra, tudo gente escolhida, e tão bons
espingardeiros como os franceses; e nós seríamos cento e vinte homens portugueses, e cento e quarenta do gentio, os mais desarmados e com pouca
vontade de pelejar; a armada trazia dezoito soldados moços, que nunca viram pelejar.
A obra foi de N. S., que não quis que se nesta terra
plantasse gente de tãos maus zelos e pensamentos, eram luteranos e calvinos; o seu exercício era fazer guerra aos cristãos, e dados a comer ao
gentio, como tinham feito poucos tempos havia em S. Vicente. O Monseur de Vilgnhão havia oito ou nove meses se partira para a França com
determinação de trazer gente e naus para ir esperar as de V. A., que vem da Índia, e destruir ou tomar todas estas Capitanias e fazer-se um grande
senhor.
Pelo que parece muito serviço de V. A. mandar povoar este
Rio de Janeiro para segurança de todo o Brasil, e dest'outros maus pensamentos; porque se os franceses o tornam a povoar, hei medo que seja
verdade o que o Vilaganhão dizia que todo o poder d'Espanha nem do Gram Turco o poderá tomar.
Ele leva muito diferente ordem com o gentio, do que nós
levamos, é liberal em extremo com eles e faz-lhes muita justiça, e força os franceses por culpas sem processo, com isto é muito temido dos seus e
amado do gentio, manda-os ensinar a todo o gênero de ofícios e d'armas, ajuda-os nas suas guerras, o gentio é muito e dos mais valentes da costa,
em pouco tempo se pode fazer muito forte.
Por outra via escrevi a V. A. do estado da terra e do que
foi no Peroaçu; o que peço agora a V. A> é que me mande ir, porque são já velho e sei que não são para esta terra. Devo muito, porque guerras não
se querem com miséria, e perder-me-ei se mais cá estiver. N. S. a vida o estado real de V. A. acrescente. De S. Vicente a 16 do mês de junho de
1560 - Mendo de Sá".
Vê-se pela carta que em 1560 Mem de Sá pedia povoamento do
Rio de Janeiro, "para segurança de todo o Brasil".
Duarte Nunes, descrevendo os sucessos e morte de Estácio de
S´, assim narra as ocorrências:
"1567. Com todos os
sinais da maior alegria foi recebido o governador geral Mendo de Sá, por seu sobrinho Estácio de Sá, e igualmente por todos os seus subordinados;
e passando logo a informar-se do estado da guerra, e dos progressos que tinham feito, resolveu acometer aos inimigos no próprio dia do Santo,
dispondo com o capitão Estácio de Sá a forma de os investir.
Distribuídas as ordens, e animados os soldados com a
prática do general, e a bênção do prelado d. Pedro Leitão, que em companhia do governador geral tinha vindo a visitar as igrejas do Sul, saíram a
bater o inimigo na principal fortificação, que era a de Urasumery e mais dificultosa pela situação e número de franceses e índios com que estava
guarnecida.
Acometido o inimigo, era a sua resistência proporcionada ao
nosso furor, e a sua disciplina aprendida com os franceses, e muitas vezes praticada, fazia nesta ocasião tão difícil o seu rendimento, como
constante a porfia dos nossos soldados, os quais, avançando por diferentes partes, montaram a trincheira, matando inumeráveis gentios e muitos
franceses, exceto cinco, que assim mesmo vivos foram pendurados em altos postes, para exemplo, e terror dos mais.
Logo senhorearam os nossos toda a enseada; e em persecução
da vitória penetraram o continente, matando no alcance a muitos gentios, que formando vários corpos da sua gente intentavam impedir-nos o passo.
As terras conquistadas se repartiram por moradores ricos,
capazes de cultivar, e defender; de cuja vizinhança se davam o inimigo por tão mal seguros, que não ousaram mais aparecer, retirando-se para os
sítios mais distantes e remotos do país. Poucas vidas custou aos nossos esta vitória, porém saindo ferido de uma seta no rosto, o capitão Estácio
de Sá passou à melhor vida, um mês depois do conflito; deixando a todos no mais profundo desgosto, quando o apeteciam vivo, para gozar o fruto dos
grandes trabalhos com que se interessou nesta conquista, por cujo aumento deu a vida, começando desde então a viver com glória na Posteridade.
Concluídas estas empresas, e posto em sossego todo o
continente, determinou o governador geral Mendo de Sá lançar os primeiros fundamentos para a nova cidade, que pretendia edificar; e fazendo
abandonar o sítio da primeira povoação (chamada depois Vila Velha), veio estabelecer-se em distância de uma légua, no lugar em que hoje vemos os
quartéis do regimento de artilharia e santa casa de misericórdia, e outras mais, onde existem ainda monumentos, que fazem verdadeira esta notícia.
Intitulou-a Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, pela vitória que conseguiu no dia do Santo, e por obséquio ao soberano que naquela época
ocupava o trono de Portugal".
Quem quiser melhor esmiuçar os fatos fundamentais em relação
à fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro deve ler o alentado e precioso trabalho do dr. João da Costa Ferreira intitulado A cidade
do Rio de Janeiro e seu termo, que o indicou para sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
A Memória está publicada no tomo CLXIV - vol. 164
(1931) da revista da mesma associação.
Reproduzo aqui apenas alguns trechos que demonstram as
condições em que se acha o Rio de Janeiro por ocasião do desembarque de Estácio de Sá, em 1565.
"No dia
seguinte, 1º de março (80) Estácio de Sá desembarcou com parte da sua gente, na terra baixa e chã compreendida entre o Pão de Açúcar e a colina
que forma a ponta da Cara de Cão. Do lado de fora da barra? - do lado de dentro da enseada? - Não é possível precisar, com segurança, esse fato.
"Começaram a roçar em terra com grande fervor
- descreve Anchieta - e a cortar madeira para a cerca, sem querer saber dos tamoios nem dos franceses, mas como quem entrava em sua terra se foi
logo o capitão-mor a dormir em terra, e dando ânimo aos outros para fazer o mesmo, ocupando-se cada um em fazer o que lhe era ordenado por ele, a
saber: cortar madeira e acarretá-la aos ombros, terra, pedra, e outras coisas necessárias para a cerca, sem haver nenhum que a isso repugnasse;
desde o capitão-mor até o mais pequeno, todos andavam e se ocupavam em semelhantes trabalhos; e porque naquele lugar não havia mais que uma lagoa
de ruim água, e esta era pouca, o dia que entramos choveu tanto que se encheu, e rebentaram fontes em algumas partes, de que bebeu o exército em
abundância e durou até que se achou água boa, num poço, que logo se fez; (81) e como estava em termos de se beber, secou-se de todo a lagoa, e
além disto, se achou uma fontinha num penedo d'água muito boa, com que todos se alegraram muito, e se vão firmando mais n vontade que traziam de
levar aquela obra ao cabo, vendo-se tão particularmente favorecidos da Divina Providência".
"A preocupação dominante foi, então, a de
erguer a cerca ou tranqueira, feita de madeira, pedra e terra socada, que receberia, depois, a fortificação para a defesa comum. Teria baluartes e
guaritas de taipa nos lugares mais convenientes e portas com aldravas de ferro e postigos sobrepostos, comunicando com o exterior. Fecharia e
protegeria o recinto da cidadela interior, onde ficariam todos abrigados para a defesa do território contra os assaltos imprevistos e audaciosos
de tamoios e franceses. Para pôr o pé na terra e fixar-se nela definitivamente, era preciso, por conseguinte, dar à povoação a forma mediável do
recinto acastelado".
Outro trecho da excelente monografia de Costa Ferreira
elucida as verdadeiras origens do Rio de Janeiro português:
"Anchieta devia
partir para a Bahia a fim de se ordenar. Seguiu num dos navios, de João de Andrade, que fora encarregado, de novo, pelo capitão-mor, para agenciar
mantimentos e outros socorros de que muito careciam os povoadores do Rio de Janeiro.
"Quando deixava o povoado, a 31 de março de 1565, as cousas
iam prosperando, apesar das dificuldades que se antolhavam, a cada momento, àqueles desbravadores da terra.
"Descrevendo a situação naquele momento, assim a recordava,
mais tarde, o discípulo amado de Manoel da Nóbrega:
"'...já tinham feito
muitas roças ao derredor da cerca, plantado alguns legumes e inhames, e determinavam de ir a algumas roças de tamoios a buscar alguma mandioca
para comer e a rama dela para plantar; tinham já feito um baluarte muito forte de taipa de pilão, com muita artilharia dentro, com quatro ou cinco
guaritas de madeira e taipa de pilão, todas cobertas de telha que se trouxe de S. Vicente, e faziam-se outras e outros baluartes, e os índios e
mamelucos faziam já suas casas de madeira e barro, cobertas com umas palmas, feitas e cavadas como cales e telhas, que é grande defensão contra o
fogo... todos viviam com muita paz e concórdia, ficava com eles o padre Gonçalo de Oliveira que lhes dizia cada dia missa e confessava e comungava
a muitos para a glória do Senhor, o maior inconveniente que ali havia, era da fome, e que lá estão muitos homens de todas as capitanias, os quais
passa de um ano, que lá andam, e desejam vir-se para suas casas (como é razão): se os não deixam vir perdem-se-lhes suas fazendas; se os deixam
vir fica a povoação desamparada, e com grande perigo de serem comidos os que lá ficarem, de maneira que por todas as partes há grandes perigos e
trabalhos...'".
E, invocando a proteção del-rei e do provincial da Companhia
de Jesus para a nova cidade, concluía:
"...
a cerca que se tem feita não é mais que um pé a tomar posse da terra, sem se poder dilatar nem sair dela sem socorrer de S. A., a quem V. Rev.
deve lembrar e incitar que logo proveja, porque ainda é cousa pequena a que se tem feito, contudo é maior, e basta-lhe chamar-se cidade de S.
Sebastião para ser favorecida do Senhor, e merecimentos do glorioso mártir, e acrescentada de S. A. que lhe tem tanta devoção e obrigação. Esta é
a breve informação do Rio de Janeiro; resta pedir a V. Rev. nos encomende e faça encomendar muito a Nosso Senhor, e tenha particular memória dos
que residem e ao diante residirão naquela nova povoação, oferecidos a tantos perigos, daquela se espera haver de nascer muito fruto para a glória
do Senhor e salvação das almas" (84)."
Costa Ferreira, depois de descrever os acontecimentos de
1565, assevera:
"A cidade começava
agora a ter existência concreta no solo do RIo de Janeiro; condição primordial para que ela pudesse subsistir, e adquirir o complemento humano que
a devia integrar nos seus elementos essenciais; o território e a população; por conseguinte o corpo e a vida, o habitat e a organização urbana.
deixava de ser, assim, o que sempre fora durante tanto tempo, uma simples aspiração do governo geral, da metrópole, dos missionários jesuítas, de
quase toda a colônia, nos seus esforços, combinados em torno da idéia de criar no rio uma povoação honrada e boa.
Tinham sido duros e penosos os trabalhos e sacrifícios
despendidos pelos povoadores para conseguirem firmar o pé na terra do Rio de Janeiro. Era preciso, portanto, tornar definitiva a posse daquele
pequeno alfós, cercado e defendido por Estácio de Sá e a sua gente, onde estavam formando a cidade de São Sebastião, mas que não passava, ainda,
de uma simples fortaleza destinada a assegurar, pelas armas, a posse do território. As contingências do momento impunham essa condição".
E conclui Costa Ferreira:
"Não há notícia exata
de quando começou a funcionar como sede da cidade, o território fortificado, estabelecido no morro do Castelo, para onde se transferia a vila
instituída no cara de cão. Ao que parece foi no mês de agosto de 1567 que o andamento célere, das obras em execução, permitiu que se realizassem as
primeiras instalações".
Não é possível conciliar estes fatos históricos, ricamente
documentados na obra de Costa Ferreira, com as frágeis fantasias de Felix Ferreira.
Joaquim Norberto de Souza e Silva em 4 de outubro de 1889
propôs na 18ª Sessão Ordinária do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, realizada a 11 de outubro de 1889, com a presença de S.M. o imperador
d. Pedro II, o seguinte:
"Nem um estudo temos
do local em que se estabeleceu a primeira povoação do Rio de Janeiro, a chamada Aldeia-Velha, origem da futura capital do império. Consta que há
vestígios de uma cacimba, e bem assim da localidade em que existiu a capela consagrada a S. Sebastião, que pelo voto de Estácio de Sá tornou-se
padroeiro da nossa cidade, cimentada com as cinzas do intrépido conquistador, e convém proceder-se a indagações, guiadas pela leitura de nossos
historiadores, a fim de tirar-se a planta da localidade com as necessárias indicações, o que será de muito valor histórico, senão uma curiosidade
digna de apreço para os que se ocupam com as nossas coisas. Para ser levada a efeito esta proposta pedir-se-á licença ao Ministério de Guerra, a
fim de nos ser franqueado o exame do terreno, que ocupa a Escola Militar.
Convém igualmente examinar os edifícios públicos do morro
do Castelo, para onde Salvador Corrêa de Sá transferido a sede da nascente cidade e os da casa da misericórdia e suas imediações, cujas
datas de fundação, inscritas em seus frontispícios, se contradizem com as datas citadas por nossos historiadores e as que se lêem em documentos
oficiais, como por impulso próprio tem estudado o nosso consócio comendador Jozé Luiz Alves.
Levantar-se-ão também as plantas do morro do Castelo e das
imediações da casa da misericórdia e bem assim se tirarão fotografias dos edifícios públicos fundados no século décimo-sexto.
Para esses trabalhos, e aprovada que seja esta proposta,
nomeará o presidente do Instituto uma comissão composta de sete membros, dos quais um será presidente e relator, outro um profissional, embora não
seja sócio do Instituto, e os demais auxiliares.
Concluídos que sejam esses trabalhos e impressos na
Revista Trimensal, procurará o Instituto Histórico, com permissão do governo imperial, elevar em frente do edifício da escola militar um
monumento à fundação da cidade do Rio de Janeiro, simbolizada na estátua de Estácio de Sá, com altos relevos em seu pedestal, que se refiram aos
seus trabalhos e aos seus denodados companheiros, como Ararigbóia, Anchieta, Nóbrega e outros.
Sala das conferências do Instituto Histórico em 4 de
outubro de 1889. Joaquim Norberto de Souza Silva.
S. R. sala das sessões, 4 de outubro de 1889. J. N. de
Souza Silva".
Todas estas considerações indicam como absurda a data de 1545
para origem da Misericórdia do Rio de Janeiro. Não existiam elementos para uma tal instituição. Segundo frei Agostinho de Santa Maria, estas raízes
andam em derredor de 1582:
"Pelos anos de 1582
se entende teve princípio a Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, ou poucos anos antes: porque neste ano chegou àquele porto uma Armada de
Castela, que constava de dezesseis naus, em que iam três mil espanhóis, mandados por Felipe II de Espanha e I de Portugal, a segurar o estreito de
Magalhães, de que era general Diogo Flores Baldes. Com os temporais padeceu esta Armada muito porque lhe adoeceu muita gente, e assim chegou ao
Rio de Janeiro, bem necessitados de remédio & de agasalho. Achava-se naquela cidade o venerável padre José de Anchieta, visitando o Colégio que
ali tem a companhia fundado no ano de 1567. Como o venerável padre José de Anchieta era varão santo levado da Caridade, tomou muito por sua conta
a cura & o remédio de todos aqueles enfermos, dando troça como se lhes assinasse uma casa, em que pudessem ser curados todos & assistidos; para o
que destinou alguns religiosos & assistindo também ele ao mais com as medicinas, médico & cirurgião. Com esta ocasião teve princípio o hospital da
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E entendendo muitos que não tivera princípio a Casa de Santa Misericórdia, que hoje é nobilíssima.
Nesse tempo (como dizemos) os Irmãos daquela Santa Casa, novamente ereta, tomaram por sua conta acudir também ao Hospital; o que fizeram com
grande caridade & tão perfeitas enfermarias, como hoje se vêem, aonde se curam todos os enfermos de um & de outro sexo, com exímia Caridade.
Quanto aos princípios dela, acrescenta frei Agostinho de
Santa Maria, as notícias, que se acham ao presente, é uma provisão do Prelado Administrador Eclesiástico daquela repartição, Bartholomeu Simoens
Pereyra, passada no primeiro de julho de 1591, a favor do Provedor & Irmãos daquela casa, para que os vigários da paróquia não se intrometessem
nas suas eleições. Desde este tempo continuaram os provedores, Irmãos no serviço & administração do hospital, assistindo com as suas esmolas, dos
fiéis, que em seus testamentos as deixavam assim para o culto divino, como para o aumento da Casa & cura
dos pobres enfermos & desamparados".
Este histórico dá José de Anchieta como fundador da Santa
Casa do Rio de Janeiro e está de acordo com a narração de Simão de Vasconcelos sobre a Vida do Padre Anchieta. Descrevendo a chegada ao Rio
de Janeiro da armada de Diogo Flores Baldes, em 1582, armada castelhana enviada por Felipe II para "assegurar o estreito de Magalhães", diz Simão de
Vasconcelos:
"Aqui se vio o grande
espirito de charidade de Ioseph. Trazia esta armada muitos doentes & necessitados da demora & contrastes de longa viagem; deu troça cô que se lhe
assinalasse casa de hospital que tê entam nam hauia naquella Cidade, esta fez trazer os doentes & destinou os Religiosos para seruillos, &
assistir as suas curas, cô surgiam, medico, & todo o necessario, com grande despeza do Collegio; & para os sãaos, pobres, & necessitados mãdaua
dar todos os dias na portaria huã arroba de carne ou peixe, com toda a farinha necessaria pera quantos viessem, & andaua o mesmo Padre volante
pelas cazas dos que necessitauam, & nam podiam vir portaria, & lhes leuau a esmolas particulares, consolando com as suas palauras a todos em
terra estranha".
Este depoimento diz que até aquela data - 1582 - não havia
"casa de hospital" no Rio de janeiro.
Estes são os pareceres de historiadores de méritos.
Nas anotações do segundo volume da História Geral do
Brasil de Varnhagem (visconde de Porto Seguro) feitas sob as vias de dois dos nossos mais conspícuos historiadores, como são Capistrano de Abreu
e Rodolfo Garcia, figura este trecho:
"Há quem date a casa
de Misericórdia do Rio de Janeiro da era de 1540, antes de povoada a cidade! Vejam-se os trabalhos de Francisco de Sá e Felix Ferreira. Atribuem
outros a criação a José de Anchieta, por ocasião de aportar a gente de Diogo Flores. Da relação de Sarmiento que chama os Jesuítas de Theatinos,
como os chamava d. Cristovão de Moura, nada consta a respeito (C)".
Pedro Cúrio de Carvalho, escrevendo sobre o Histórico da
Hospitalização Militar do Brasil para o Primeiro Congresso Nacional de História, realizado pelo Instituto Histórico, em 1914, aceita esta
versão. No seu trabalho, publicado no vol. 5 dos trabalhos do Congresso, diz o seguinte:
"Enquanto em Portugal
ia se desenvolvendo a ciência médica, aqui ia crescendo a população e o progresso começava. Em vista disto, resolveu d. Manoel aumentar as tropas
portuguesas no novo continente, para a manutenção da ordem e garantia do torrão há pouco descoberto, o qual já ia despertando a cobiça dos
franceses.
Aqui chegavam os soldados bastante doentes, depois de uma
travessia de dois a três meses de viagem, passando por grandes necessidades.
Não possuía ainda o Brasil estabelecimento hospitalar,
motivo pelo qual os soldados que chegavam doentes se recolhiam às casas particulares, de pessoas ricas, e aí permaneciam até seu completo
restabelecimento, sem que as mesmas recebessem indenização alguma por parte do governo português.
Devido ao mau procedimento dos soldados e às constantes
reclamações dos chefes de família, resolveu el-rei, em 1582, transferir os soldados para o hospital que a Irmandade de Santa Casa de Misericórdia
acabava de construir. Ali eram as praças tratadas pelos cirurgiões-mores dos corpos, pagando o governo a gratificação de 200$000 anuais àquela
irmandade".
Até pelo menos 1791, era esta a quantia paga pelo governo da
Metrópole Portuguesa, conforme a Carta Régia seguinte, copiada do nosso Arquivo Nacional, com o consentimento do seu eminente diretor dr. Vilhena de
Morais:
"Para o Govºr e Capªm
do Rio de Janº:
(No V. 13 das Cartas Regias, Provisões e Alvarás do Arquivo
Nacional - 1701 - Janeiro a outubro - pág. 6)
"A de Sá Menezes Am.º El Rey vos envia muito saudar... visto
o que me ... se não querer acceitar no Hospital dessa... os Soldados que adoeceram. alegareis ordenamos como por esta o faço mandeis dar os duzentos
mil reis que tem e informareis se tem obrigação de Curar os Soldados, ou só a gente da terra. Escrito em Lix.ª a 27 de Jan.º de 1701. Rey.
"Para o Gov.ºr e Cap.ªm. g. do Rio de Jan.º."
A data de 1595 é calorosamente defendida pelo provecto
historiador José Vieira Fazenda, em seu trabalho sobre o histórico da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, publicado na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo LXIX, Parte I, 1908 págs. 7 e seguintes.
Escrevendo em 1905, isto é, sete anos depois de Felix
Ferreira, Vieira Fazenda não se impressionou com os argumentos deste último e mantém a data de 1582. Eis as suas palavras de introdução sobre o
título Fundação:
"Comemora, mais uma
vez, a benemérita Irmandade da Misericórdia a tradicional festa da Visitação.
Vem, pois, de molde recordar os primórdios e antiguidades
deste santo e humanitário instituto a quem a pobreza enferma, os órfãos e enjeitados devem tantos e tão importantes serviços.
Quem transpõe o limiar do grandioso hospital da praia de
Santa Luzia divisa logo, à direita do vestíbulo, duas estátuas colossais, mandadas fazer pelo grande provedor José Clemente Pereira: a primeira,
de frei Miguel de Contreiras, instituidor da Misericórdia de Lisboa, e a segunda, do padre jesuíta José de Anchieta, fundador do primitivo
hospital da Santa Casa do Rio de Janeiro.
Dois escritores, entretanto, que se ocuparam desse assunto,
pretenderam, em vão, arrancar de José de Anchieta a glória de ter, por sua iniciativa, lançado os fundamentos daquilo que hoje todos vêem e
admiram, glória autenticada pelos testemunhos dos coevos, dos cronistas e incontestável, em face dos argumentos que apresentarei".
E acrescenta Vieira Fazenda:
"como recusar ao
venerável padre José de Anchieta o papel de fundador do Hospital da Misericórdia? (do Rio de Janeiro).
Como pretender recuar a época da Instituição da Confraria
ao no de 1545? Contra tal anacronismo, protesta a verdade da história. Em minha humilde opinião, foi ainda Anchieta que obteve do seu amigo, o
primeiro prelado eclesiástico, o padre Bartholomeu Simões Pereira, a provisão de 1 de julho de 1591, pela qual a Irmandade da Misericórdia ficou
isenta da jurisdição paroquial".
Refere-se em seguida aos dois autores que contestaram a
iniciativa de Anchieta:
"No dia 2 de julho de
1880, apareceu no Jornal do Commercio erudito e curioso artigo, depois reduzido a opúsculo e firmado por F.S. Soube-se depois que o seu
autor era o emérito e dedicado chefe da secretaria da Misericórdia, Francisco de Sá, cujo nome jamais será esquecido por todos quantos trataram
com tão distinto cavalheiro e exemplar funcionário.
Compulsando os livros do Arquivo da benemérita instituição
e lendo no chamado livro dos Privilégios os documentos acima copiados, aventou com toda a convicção o conceito de que José de Anchieta não fora o
fundador do primitivo hospital. Essa opinião foi, com maior desenvolvimento, seguida também de perto pelo operoso autor (Felix Ferreira) da
Noticia Historica - A Santa Casa de Misericordia Fluminense - Fundada no Seculo XV (1894-1898).
As razões de um e outro desses dois escritores não podem
satisfazer a quem conhece um pouco a história da descoberta do Rio de Janeiro e fundação desta cidade".
Pulveriza Vieira Fazenda os argumentos de Francisco Augusto
de Sá e conclui:
"Logo, a asserção de
existir aqui já em 1545 a Santa Casa carece de todo o fundamento. Essa idéia tem tomado vulto e até sem grande critério tal data tem sido
reproduzida em diversas publicações - entre outras o mui conhecido Almanack de Laemmert.
Demais, em nenhum dos trabalhos publicados de 1880 até hoje
se encontra o menor vestígio que patrocine semelhantes absurdo histórico.
De tudo, pois, se pode concluir: os sessenta anos citados
no requerimento referido são ou um fruto de exageração (antes lapso de memória)...".
Em relação a Felix Ferreira foi Vieira Fazenda impiedoso:
"Por aí se deixa ver
o modo superficial por que o historiógrafo, encarregado pela Santa Casa de escrever a Memória Histórica, pretendeu explicar os primórdios
da antiga e piedosa instituição. E porque, segundo informa frei Agostinho de Santa Maria, a igreja da Misericórdia teve a princípio a invocação de
Nossa Senhora da Copacabana, Felix Ferreira, sugestionado sempre pelo seu entusiasmo para com o chefe da expedição de 1503, conclui o capítulo da
fundação da Santa Casa do modo seguinte: 'Ora, se essa invocação (Copacabana) se desligou da Santa Casa, não
desapareceu das cercanias, onde Gonçalo Coelho primeiramente e depois dele Men de Sá! (sic) lançaram os fundamentos da extinta Vila Velha.
Copacabana persiste não só no atual bairro que se está desenvolvendo tão prometedoramente, como na secular capelinha ali levantada onde se venera
a Senhora cuja imagem seria talvez melhor ereta como sucessora da primitiva padroeira da nossa Misericórdia'.
A fundação da capela de Copacabna, na antiga praia de
Sacopenapan, obedeceu talvez a outras razões e nada tem com Gonçalo Coelho, em cujo tempo, com toda a certeza, não se cogitava de Misericórdia, no
Rio de Janeiro. A ermida supra assim como foi fundada ali poderia ter sido estabelecida em outra qualquer praia das redondezas desta cidade.
No intuito de sustentar a verdade da data de 1545 para a
fundação da Santa Casa, guiando-se pelo ano de 1605, exarado no despacho régio, exclama com toda a convicção o cronista da Santa Casa: 'E
tanto isto é verdade que nas primeiras cartas dirigidas à metrópole por três vezes sucessivas se sustenta que a Casa Fluminense contava nessa
época sessenta anos de existência, o que equivale a colocar sua fundação entre os anos de 1545 e 1548, isto é, justamente quando a incipiente
cidade ainda se achava na Vila Velha, onde Estácio de Sá (sic) concentrava as suas forças e fazia o centro de suas surtidas contra franceses e
tamoios'.
Além de, na nota da página 120, Felix Ferreira não citar as
datas de tais despachos, adultera o cronista, por modo imperdoável, a verdade dos fatos. Onde foi ele descobrir que em 1545 a 1548 Estácio, em Vil
Velha, fazia desta centro de operações? Os franceses de Villegaignon só vieram ao Rio de Janeiro em 1555, quase dez anos depois. Demais, é hoje
sabido: Estácio de Sá veio da primeira vez ao Rio de Janeiro em
1560, em companhia de seu tio Mem de Sá, quando este terceiro governador geral desalojou os franceses, sob a chefia de Bois Le Comte, sobrinho de
Villegaignon, que partira para a França.
Em 1545, Estácio era seguramente menino. Ainda há poucos
dias deu-me conhecimento desse fato o ilustre professor Capistrano de Abreu, dizendo-me que o sobrinho de Mem de Sá faleceram com 24 anos de idade
em 1567; porque, conforme uma carta encontrada, por ele, Capistrano, na Biblioteca Nacional, soube que Estácio tinha de idade 17 anos, quando veio
ao Brasil.
Para evidenciar o pouco cuidado com que Felix Ferreira
escreveu a introdução da sua Noticia Historica e pôr de sobreaviso o leitor contra o que aquele sustenta, basta citar o seguinte
fato por si eloqüente: o despacho do rei, em data de 8 de outubro de 1605, não podia ser firmado por Felipe II de Espanha e I de Portugal, mas sim
pelo filho, Felipe III de Espanha e II de Portugal, que reinou de 1598 a 1621. No entretanto, Felix Ferreira, em vários pontos da Noticia
Historica, assinala sempre o nome do primeiro daqueles monarcas, falecido em 17 de setembro de 1598".
Citando monsenhor Pizarro, sustenta Vieira Fazenda:
"Para combater a
prioridade do venerável padre José de Anchieta na fundação do primitivo Hospital da Misericórdia e pôr em dúvida a opinião de Pizarro, baseada nas
de frei Agostinho de Santa Maria e padre Simão de Vasconcellos, estabelece Felix Ferreira hipóteses que não provou.
"Ora diz que o Hospital de Anchieta era diferente do que a
Irmandade da misericórdia estava construindo (1582); ora que o jesuíta só assinalou casa e nada mais; ora que uma casa para agasalhar tão grande
número de doentes, como trazia a esquadra de Baldez, não se improvisa de momento, tampouco se encontra um dia para outro em uma cidade nascente,
como era então a nossa, que, transferida da Vila Velha (sisc), na Praia Vermelha (sic), para o morro do S. Januário ou do Castelo, como passou
posteriormente a denominar-se, 'não poderia em quinze anos, de 1567 a 1582, ter casa particular capaz de
servir tão prontamente de hospital'.
As considerações que se seguem apóiam os argumentos que
tenho apresentado para justificar os enganos em que incorreu o operoso sr. Felix Ferreira. Todas as vezes que eram fundadas vilas e cidades nos
domínios portugueses, instituía-se logo a Santa Casa de Misericórdia, isto é, a Irmandade ou Corporação com os fins humanitários estatuídos no
compromisso da Misericórdia de Lisboa, formulados por frei Miguel de Contreiras. Os encarregados da governação, os membros dos Conselhos e os
homens bons davam-se as mãos para auxiliar tão santo instituto.
Foi o que aconteceu aqui, conforme se depreende das
palavras de Gabriel Soares de Souza, quando se refere à partida de Mem de Sá em 1568, depois de ter permanecido no Rio de Janeiro perto de ano e
meio".
E, implacável contra os erros históricos do autor criticado,
conclui Vieira Fazenda:
"Sem querer
acompanhar o cronista da Misericórdia Fluminense em divagações históricas que não vêm ao caso e para provar a incerteza de sua opinião, citarei
apenas as suas últimas palavras, com que parece dar as mãos à palmatória: 'Dando de barato tudo quanto tenho
produzido em defesa da afirmação sustentada pelas petições da nossa Misericórdia, em 1605 e em 1671, admitindo-se mesmo que a administração deste
ano se baseasse no que encontrou escrito no requerimento daquele ano e que o escritor desta solicitação se houvesse enganado, esse engano não
podia ser tamanho como quer monsenhor Pizarro, firmando-se no que escreveu frei Agostinho de Santa Maria, bem como aqueles que o seguiram nos seus
insustentáveis argumentos, esse engano seria quando muito de vinte anos, podendo ler-se na petição de 1605, em vez de sessenta anos - quarenta, o
que remontaria a 1564 (sic), quando Estácio de Sá (sic) ainda se encastelava na Vila Velha (sic) etc.'
E foi
para chegar a tal resultado que o autor da Memoria escreveu páginas e páginas deturpando os fatos históricos e enchendo-as de anacronismos
imperdoáveis! Essa é a verdade: ou houve erro na petição e em vez de sessenta deve ler-se quarenta anos, ou não está certo o ano do despacho e em
vez de 1605 seja 1625, nem isso é caso único de engano de datas ou de número de anos. Haja vista o célebre testamento de João Ramalho, que tanto
tem dado de si.
Comparando a data do alvará (8 de outubro de 1605) com os
primeiros Cumpra-se (1630), Antonio Duarte Nunes supõe talvez houvesse engano de quem lavrou o documento assinado pelo rei. Para desta
hipótese formar opinião segura seria mister ter presente a rubrica autêntica ou um fac-simile de Felipe III de Espanha e II de Portugal
para poder comparar com a assinatura régia do documento da Santa
Casa. A despeito da maior diligência, não me foi possível encontrar aqui no Rio de Janeiro o que tanto desejava e vinha muito de molde.
João Feo, entretanto, cujo nome figura no precitado
documento, foi, em verdade, do serviço de Felipe III de Espanha (II de Portugal). Fez ele vários alvarás no tempo desse monarca, como tive ocasião
de verificar na precisa coleção (manuscrita) de leis, constante de 37 volumes e existente no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
Feo, porém, serviu também com Filipe IV de Espanha e III de
Portugal. Nas Memorias Historico-Genealogicas dos Duques Portugueses do seculo XIX, de João Carlos Feo de Carodos Castello branco e Torres
e visconde de Sanches Baena, a páginas 682 vê-se o referido Feo
assinando em 9 de novembro de 1626 um alvará com referência a d. Luiza de Motta Feo, viúva de Manoel Lopes Pinto.
Este João Feo não deve ser confundido com João Feo Cabral,
beneficiado de uma das igrejas de Cintra e proprietário do ofício de aljubeiro do Aljube de Lisboa. Em 1624, estava doido, como se infere da pág.
672 das referidas Memorias Historico-Genealogicas.
Não foi mais feliz ainda Felix Ferreira, na argumentação
apresentada contra as dúvidas de Duarte Nunes, isto é, que os sessenta anos da petição dos Irmãos da Misericórdia podiam estar certos, porém
errada a data de 8 de outubro de 1605. Depois de interpretar os nomes dos signatários dos diversos Cumpra-se, todos posteriores a 1625,
assevera F. Ferreira que a letra da petição era de Martim de Sá, que governou entre os anos de 1607 e 1608; sem se lembrar que Martim governou por
duas vezes o Rio de janeiro e que poderia ter escrito em 1625, o que Ferreira supõe ter o filho de Salvador Correia de Sá feito vinte anos antes.
O mesmo acontece com a assinatura do prelado eclesiástico
Matheus da Costa Aborim. Este exerceu o cargo, como é sabido, de 2 de outubro de 1607 a 8 de fevereiro de 1629 e poderia ter posto o seu
cumpra-se tanto em documento do tempo de Filipe III, como de seu filho e sucessor, que começou a reinar em 1621.
Do exposto, salvo melhor juízo, pode-se concluir: nem
Francisco Augusto de Sá, nem Felix Ferreira, conseguiram tirar ao venerável padre José de Anchieta a glória de ter iniciado a criação do velho
hospital da Misericórdia.
Os confrades, pois, desta grande agremiação, bem fizeram
colocando a estátua do inolvidável jesuíta ao lado da de frei Miguel de Contreiras, fundador da Misericórdia
de Lisboa, no vestíbulo do grandioso edifício da praia de Santa Luzia".
Procurou Felix Ferreira contestar que a Santa Casa de
Misericórdia de Santos possuísse hospital em 1543. Existiria como simples associação encarregada de cuidar dos presos, enterrar os mortos.
Para justificar este ponto, Ferreira cita o seguinte documento que consta da Cronologia Paulista de José Jacinto Ribeiro Vol. 2, pág. 27:
"D. Jeronymo de
Athayde, conde de Athouguia, do Conselho de Sua Majestade, capitão general do estado do Brasil etc. Faço saber aos que esta provisão virem que os
Irmãos da Misericórdia da Vila de Santos, capitania de S. Vicente, me representaram por sua petição que por não haver na dita vila casa separada
da Misericórdia celebravam seus ofícios divinos na Matriz e por ser grande a necessidade que ali há de hospital, por ser o posto por onde
freqüenta o comércio de toda a capitania, haviam resolvido fazer casa de Misericórdia e hospital, mas que por serem todos eles pobres, não podiam
concorrer com as despesas necessárias para aquelas obras, por cujo respeito me pediam lhes fizesse mercê em nome de Sua Majestade, que Deus
Guarde, conceder para as ditas obras o dinheiro que existe em depósito naquela capitania do pedido que se fez por ordem deste governo e tendo em
consideração a informação, que sobre este particular deu o procurador da Fazenda Real deste Estado, e constar da certidão da mesma capitania, não
haver nela mais do que 300$ em depósito, hei por bem de lhe conceder a esmola, em nome de Sua Majestade, 100$ para as referidas obras, os quais se
despenderão com assistência do procurador da Fazenda e com mandado em forma que se passará em virtude desta provisão. Dada na cidade do Salvador
da Bahia de Todos os Santos em 3 de outubro de 1654".
Ora, as Misericórdias poderiam existir sem necessariamente
possuírem hospital, limitando sua ação a cuidar dos presos, enterrar os mortos etc.
Entretanto, o próprio Felix Ferreira acentua que a
Misericórdia de Lisboa nasceu, por assim dizer, em simbiose com um hospital:
"O primeiro hospital
da Misericórdia, como já vimos, foi estabelecido por frei Miguel de Contreiras, no velho casarão abandonado das audiências do Cível, em Lisboa,
antes de existir a instituição que deveria dirigir e manter. Aí, como também já disse, aglomeravam-se doentes curáveis, incuráveis, órfãos,
viúvas, todos enfim quantos não tinham amparo e proteção e para ali se arrastavam, certos de que não seriam repelidos; mas tendo o cardeal d.
Henrique, em nome de d. Sebastião ausente que representava, feito doação à Misericórdia do Hospital de Todos os Santos, passou o primitivo que
funcionava sob a invocação de Nossa Senhora do Amparo a ser privativo dos incuráveis do sexo masculino, como para o feminino foi posteriormente
estabelecido o de Sant'Anna.
O regime destes dois hospitais de incuráveis não era o
mesmo que o dos curáveis, a Misericórdia dava aos enfermos ou antes asilados, tanto de Nossa Senhora do Amparo como de Sant'Anna, casa, cama, uma
esmola em dinheiro todas as semanas e a assistência espiritual, como naqueles tempos tanto se esmeravam as instituições de piedade. Recomendava o
Compromisso aos Mordomos daqueles hospitais que só deviam dar entrada neles aos incuráveis e por despacho da Mesa, à qual deveriam requerer; que
os visitasse diariamente, 'dando uma volta a todos os doentes, para ver se lhes faltava alguma cousa
necessária, indo todas as sextas-feiras à Mesa pedir dinheiro, para a porção ordinária, repartindo-a pela ordem, que lhe fosse ordenada,
procurando juntamente que as pessoas que fossem comprar as cousas de comer aos doentes, lhes não levassem mais que aquilo que custavam!
Quando se agravavam os padecimentos crônicos ou sobrevinham
outras enfermidades aos asilados, suspendiam-se-lhes as esmolas pecuniárias e passando para a classe dos enfermos curáveis eram tratados então
como tais, assistidos de médico e botica. Mas quer como asilados, quer como enfermos, recebiam sempre os maiores desvelos, pois determinavam
também o Compromisso aos Mordomos que fizessem 'sempre diligência sobre a limpeza das enfermarias e sobre o
modo, com que os enfermeiros acudiam aos doentes', mandando que se lhes mudasse a cama três vezes por semana'.
No grande hospital de Todos os Santos é que se recolhiam os
enfermos curáveis. Edificação magnífica começada por d. João II e concluída por d. Manuel com a maior largueza de vistas. Depois de concluído,
fora a sua superintendência entregue à Congregação de S. João Evangelista, que o dirigiu por alguns anos até que pediu escusa do encargo, alegando
ser prejudicial aos interesses da comunidade por absorver o tempo aos mais capazes de seus membros.
Atendendo ao reclamo, o cardeal d. Henrique, que exercia a
regência na menoridade do sobrinho d. Sebastião, por alvará de 27 de junho de 1654 mandou entregar à Misericórdia o hospital de Todos os Santos,
com todo o seu patrimônio, 'depois de ouvir, diz o príncipe naquele
extenso documento, pessoas que me pareceu que tinham zelo do serviço de Nosso Senhor e do assentamento e boa
governança do dito hospital, que eu devia encomendar o regimento dele à Irmandade da Misericórdia desta cidade de Lisboa, não somente por serem
das obras que no dito hospital se exercita conforme as que se compara a dita Misericórdia por serviço de Nosso Senhor e proveito do próximo, mas
também por se ter nisto por experiência de muitos anos a fidelidade, zelo, fervor e caridade com que os Irmãos da dita Confraria, os nobres como
os oficiais, servem os cargos da dita Irmandade e aceitam e sofrem os trabalhos delas'.
'Todos os padres da
Congregação de S. João Evangelista, por sentirem a perda da sua Congregação recebida em trazer fora do regimento dela os principais padres que lhe
convinha ocupar no governo dos hospitais que lhe foram encomendados, me pediram com muita instância que houvesse por bem de prover de outras
pessoas, que entendessem na ordenança e provimento do dito hospital de Todos os Santos, que era o que lhe dava maior trabalho e com que
recebiam maior torvação e distraimento...' Cardeal d. Henrique, alvará de 27 de junho de 1564".
Lisboa era o modelo do Brasil. Como, então, conceber que a
próspera e vigorosa população do litoral de São Paulo fundando uma confraria idêntica à da Metrópole, nenhum esforço fizesse durante um século,
para ter um hospital? As outras capitanias o tiveram, como, em contradição com os seus argumentos, acentua o próprio Felix Ferreira, transcrevendo
como exato o seguinte depoimento:
"Na Enformação do
Brazil e das suas Capitanias, escripta em 1584 por um jesuita, se lê: que em todas as capitanias ha Cazas de mizericordia que seruem de hospitais,
edificadas e sustentadas pelos moradores da terra cô mutta devaçam em que se dão muytas esmolas assi em vida como em morte e se casam muytas
filhas orfãas, curam os enfermos de toda sorte e fazem outras obras pias comforme o seu instituto e possebilidade de cada huã e anda o regimento
della nos principaes da terra".
Que a Santa Casa de Santos teve por espelho Lisboa, basta ler
o seu compromisso, de 1551, idêntico ao da capital do reino, e mais ainda, atentar para o nome de Todos os Santos, reflexo de denominação idêntica
dada, naquela metrópole, ao grande hospital fundado por d. João II.
Se hospitais havia em todas as capitanias em 1584, como
poderemos admitir que S. Vicente não possuísse tal instituição até o ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1654? Sendo população florescente
que deu origem à esplêndida colonização vicentina, faria exceção à regra... É hipótese inadmissível. O documento de 1654 não nega a existência de
hospital naquela época. Diz apenas que os irmãos da Misericórdia reconheciam a necessidade de hospital e que desejavam fazer casa de Misericórdia e
hospital. O hospital poderia existir mas ser inadequado. Mesmo porém que, naquela época (1654), não houvesse hospital por um motivo qualquer, não
quer isto dizer que tal instituição não tivesse existido em época anterior.
Em 1730, por exemplo, o edifício hospitalar de S. Paulo
estava destruído e carecia reedificar-se apesar de existir naquele tempo "tanta multidão de enfermos forasteiros" que "concorriam" àquela capitania.
Era aquela casa, na época, a única existente "em toda a capitania de serra acima" e não possuía hospital em que pudessem ser recolhidos e curados
"assim os ditos forasteiros, como os soldados que assistiam em companhia do Governo". O documento abaixo, que nos dá conta do fato, é reproduzido do
vol. XXIV, dos Documentos Interessantes, publicados pelo Arquivo do Estado de São Paulo.
"Dom João por graça
de Ds. Rey de Portugal e de Algs. dqm e dalem mar em Africa Sr. de Guine etc. Faço saber a vós Antonio da Silva Caldeira Pimentel Governador da
Capitania de S. Paulo, q o Provedor e mais Irmãos da Misericordia dessa Cide. me representarão em carta de vinte e seis de julho passado que a
causa della ir em diminuição, e de se não poder augmentar a Irmandade, fora a da Igreja della padecer grande ruina. E supposto entrara a
reedifical-a o provedor Manoel Luis Ferraz a sua custa: porem que não pudera fazer toda a obra por depender de mais tempo: E supposto fora outra
vez elleito, e continuar-se na mesma obra com excessivo gasto, não pode ainda chegar á fabrica dos Hospitais, porque tambem está de todo destruida
a qual carece de reedificar-se e muito mais no tempo presente em que se acha tanta multidão de Enfermos forasteiros que concorrem a esta
Capitania: e sendo esta casa a unica que ha em toda a Capitania de serra assima, não tem Hospital, em q possam ser recolhidos e curados, assim os
ditos forasteiros como os soldados que assistem em companhia do Governador e assim me pedião que lhe mandasse dar por Esmolla algua ajuda de custo
para as referidas obras, sahindo esta, ou dos rendimentos dos quintos ou das dizimas da mesma Capitania: Em cuja atenção lhe parece ordenar-vos
informeis com vosso parecer. El Rey Nosso Senhor o Mandou Frz Vargas e Conçalo Manuel Galvão de Lacerda. Cons. do Cons. Ultram. e se passou por
duas vias. Antonio de Souza Pereyra a fez em Lixb. occal. em quatro de Mayo de mil sette centos e trinta. Secr. André Lopes Lavre a fez escrever.
Mel. Frz Vargas - Gonçalo Mel. Galvão de Lacerda.
Na Exposição que faz o Governador e Capitão General da
Capitania de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta ao seu sucessor o Marquez de Alegrete, em Outubro de 1811, sobre o estado dos negócios
concernentes à administração do Govêrno da mesma Capitania há uma referência que demonstra o estado precário da Confraria santista naquela
época. O documento é inédito. Encontramo-lo na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional. Eis o trecho em questão:
"Havia tambem em
Santos huns vestigios, que faziam ver ter havido Irmandade de Misericordia, vistos pelos restos que ainda havião de uma Igreja porem sem renda,
nem irmãos, o que me obrigou a pedir ao Exmo. Prelado hua não acabada Igreja, que alli havia, para a mandar cobrir, pois se achava em paredes não
acabadas, para nella se erigir a Irmandade, o que obtendo fiz o mesmo, q havia feito nesta cidade, supplicando as principais pessoas se quizessem
assentar por Irmãos, o q consegui, hum com o q todos concorrenssem com algumas esmollas para a reedificação da mesma Igreja, e dar-se principio
aos Officios de Caridade, curando a alguns necessitados, por conta da mesma, para o q igualmente concorri do meu proprio.
O primeiro passo que dei para lhe estabelecer alguma renda
foi o de convencionar com os proprietarios das Embarcações residentes em Santos, e todos os mais que alli se achavam, a curarem-se a custa da
Santa Casa todos os individuos de sua tripulação que adoecessem, pagando-se em cada viagem, sendo para dentro da Capitania 320 reis e de fóra 640
reis, de cujo trato se lavrou a escritura, q remetti a Secretaria d'Estado, pedindo a Real Aprovação, porem supposto não ter-se resposta decisiva,
como se me acusou o recebimento do dicto Officio, a considero Approvada.
Seguiu-se o estabelecimento de hua Botica pela não haverem
em Santos, auxiliando este projecto com alguma quantia do caminho de Santos, e restos da contribuição voluntária imposta nos Gados que passavam
elo caminho de Lorenk, destinada para reparos do dicto caminho, com os rendimentos da dicta Botica, do que pagavam as Embarcações, e de algumas
moradas de casas, que se tem reparado e levantado, se acha aquella Irmandade com a renda de hum conto de reis, cuja renda se applica para cura de
todos os miseraveis, que imploram serem curados à custa da Sancta Casa, se auxilia algum pobre impossibilitado de adquirir o necessario sustento,
e se tem reedificado a Igreja q se acha muito adiantada como V. Excia veria, e se vão reedificando alguns chãos, que ainda lhe restão de maneira
que nas ultimas contas que tomaram ainda restou na mão do Thesoureiro algum resto.
Com bastante pena minha via que esta Irmandade não dava os
passos q podia dar; porque tendo entrado nela para Thesoureiro hum José Carvalho elle esteve senhor desta Casa, por espaço de quatro annos sem dar
conta, nem haver nova elleição, o qual sendo temido de todos pelo seu orgulho e malevolencia, todos o censuravam pelo seu procedimento mas nemhum
atrevia-se a promover nova elleição para o excluirem; e sendo instado por alguns de mais piedade a q acudisse aquela desordem: fui a Santos vae em
dois annos, acetei o lugar do Provedor, a conseguir excluil-o do lugar e q se lhe tomassem contas, as quais foram tão informes, e tão faltas de
Documento, q fui consultado, para que eu dicesse se assim mesmo devião ser (não conseguimos decifrar esta palavra), no q convim por ficarem de hua
vez as questoens acabadas, e poder-se principiar um escrituração regular.
Como o rendimento de qualquer destas duas casas
(o governador refere-se a Santos e S. Paulo) não he bastante para se
construir hum hospital proprio (o grifo é nosso), porque apenas o
que tem chega para pagar o Medico, Cirurgião, Enfermeiros e Serventes; tinha-se aqui adotado no tempo do meu antecessor, o receber-se com licença
sua no Hospital Militar todo o doente pobre, a quem por esmola algua pessoa de bem queria valer, obrigando-se esta a pagar hum tanto por dia pelo
seu curativo.
Essa pratica me fez lembrar em Junta, que sendo a irmandade
da Misericordia da immediata protecção dos Nossos Augustos Soberanos, huma vez que ellas se obrigassem a contribuir com a despeza diaria aos
pobres enfermos, me parecia justo fossem igualmente admittidos, até que pelo decurso do tempo tivessem hospitais. Esta proposição foi unanimimente
aceita calculando-se para esta Cidade (o governador referia-se a S. Paulo)
a despesa de hum doente por dia 160 reis e para a de Santos 200 reis, o que é pago por cada huma das respectivas Casas; no q certamente a Fazenda
Real nem hum prejuizo recebe, antes interesse, a vista das indagações que se fizeram antes desta deliberação".
Franca e Horta, na sua longa exposição sobre as
Misericórdias, da qual extraímos o trecho acima reproduzido, continua a falar sobre a Santa Casa de Sorocaba por ele fundada, para a qual fora
construído um hospital novo, com auxílio pecuniário fornecido pelo coronel Bento Glz. Discorre, depois, sobre a Misericórdia de Itu, fundação nova
para a qual conseguira a doação da capela do senhor Bom Jesus "e com ella o grande edificio q lhe pertencia, o
qual forma hum hospital com todas as proporções, e commodidades que se requerem".
Fica assim demonstrado que em certas épocas as Misericórdias
estiveram desprovidas de edificação hospitalar própria. Era talvez a conseqüência de se arruinarem as frágeis edificações da época.
Quem tiver a curiosidade de compulsar os numerosos volumes
das atas da Câmara de S. Paulo verificará como eram freqüentemente tratados nas reuniões os problemas de reconstrução da casa do Conselho, da
Igreja, da Cadeia, tão precários eram os materiais empregados nas edificações da época. Em sessões sucessivas estas questões eram discutidas e
repisadas. Em certa ocasião solicitaram a "todos os moradores (de
S. Paulo) desta q segunda feura até terça quem tiver de outo peças de serviso pera sima mande trazer dous
feixes de saper e quem tiver menos hu com pena de meio tostão para o Comselho".
Tratava-se de cobrir a "quaixa da Camara" que
freqüentemente estava imprestável, obrigando os edis a se congregarem nas pousadas do "vreador mais velho" ou do escrivão.
A ata referida foi lavrada a 18 de julho de 1579 (Atas da
Câmara da Vila de S. Paulo. Vol. I. Século XVI, 1914 - Trabalho Oficial do Arquivo Municipal de S. Paulo) quando se tornou necessário "cubrir
esta casa do comselho porquanto chove nelle por as paredes" (pág. 148).
Muitos exemplos semelhantes podem ser encontrados na leitura
destas atas. É razoável, portanto, admitir-se, logicamente, que o hospital ficasse algumas vezes em ruínas, já que a Irmandade teve períodos
de declínio.
ANTIGA FONTE DAS DUAS
PEDRAS - Vêem-se os bancos remodelados que serviam para os aguadeiros e lavadeiras esperarem a sua vez. Este trecho corresponde atualmente à
extremidade, sem saída, da Rua do Tiro Naval. Esta extremidade da rua é fechada por uma caixa d'água. Mais para o alto do morro ainda jorra a fonte
que forneceu água aos nossos antepassados de quatro séculos idos. Era um fonte pública. A outra, existente no fim da Rua Itororó, era de propriedade
de Braz Cubas e fornecia água para seu curtume
Imagem publicada com o
texto (página 65)
LEGENDA
I - Primeira localização
da Igreja da Misericórdia
Ia - Primeira localização
do Hospital da Misericórdia
II - Segunda localização
da Igreja e Hospital
IIa - Segunda localização
de uma parte do Hospital ou Hospital Velho
1. Primitiva
igrejinha de Santa Catarina
2. Casa do Trem
3. Atual Rua Tiro
11
4. Antigos quartéis
5. R. Visconde do
Rio Branco - antiga Santa Catarina
6. Rua Braz Cubas
7. Antiga Casa dos
Governadores
8. Alfândega
9. Rua Senador
Feijó - Caminho que vai para a fonte
10. Zona de casas
demolidas
11. Rua Meridional
da Matriz - antiga Rua da Cruz
12. Rua
Setentrional da Matriz - antiga Rua Pequena
13. Rua Martim
Afonso - antiga Rua da Cadeia
14. Cadeia -
Pelourinho |
15. Ordem Terceira do Carmo - com a cruz C.
16. Convento do Carmo
17. Rua Itororó
18. Residência e curtume de Braz Cubas
19. Canal
20. Praça Mauá - antigo Campo da Misericórdia
21. Rua General Câmara - antiga Rua do Campo
22. Rua Riachuelo
23. Rua do Rosário
24. Fonte Itororó - particular de Braz Cubas, de
onde foi canalizada a água para o seu curtume (18), através da rua que por isso se chamou do Cano (em parte hoje Rua Pedro II)
25. Fonte pública Duas Pedras, onde hoje ainda
existem os bancos em que os aguadeiros esperavam a vez de se servirem. |
Imagem e legenda
publicadas com o texto, página 59 - Clique na imagem acima para ampliá-la |