Edifício da Santa Casa em construção
Imagem e capitular:
ilustrações na página 15 da obra
Breve notícia histórica sobre a origem das Misericórdias européias e do
Hospital de Todos os Santos de Lisboa
raz Cubas, fundando a Santa Casa de Santos, tomou por imagem a de
Lisboa. A invocação de "Todos os Santos" foi, porém, inspirada por outra organização hospitalar, de igual nome, instituída na metrópole portuguesa
antes da primeira Misericórdia. É um ponto que, entre nós, não estava esclarecido.
O Hospital de Todos os Santos foi iniciado em 1429, por
iniciativa de d. João II, e a Misericórdia, em 1498, por obra de sua esposa d. Leonor. Ocorreu quando esta rainha, já viúva, exercia regência
temporária do trono na ausência do irmão e rei d. Manoel. O soberano fora a Castela com sua esposa, garantir direitos à herança daquela coroa, na
esperança de reunir, sob o mesmo cetro, na casa de Aviz, os domínios de Portugal e Espanha.
Portugal, que nos fins do século XV já ocupava um posto
dianteiro entre as nações civilizadas, pelas suas conquistas e riquezas possuía a este tempo várias casas de caridade. Eram especialmente
albergarias, "espécie de pousadas para peregrinos com funções não raro de hospitais e até de asilos de pobres e inválidos". Dispunha, também, de
hospitais privativos de certas classes, como a dos marítimos, sapateiros, ourivéis (N.E.: o mesmo que
ourives, que trabalham e lavram ouro: "Hoje dizemos ourives do oiro, ou da prata: no plural Resende diz ourivis, e ouriveis, a Orden.
ourivezes; o usual he ourives" -
Diccionario da lingua portugueza, padre d. Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva, Tomo Segundo, página 142,
Lisboa, 1789) organizados sob princípios cooperativistas. Existiam, ainda naquele país, gafarias
(N.E.: gafaria é termo medieval para designar leprosaria, da mesma forma que gafo significava leproso)
e outros estabelecimentos piedosos fundados por monarcas, religiosos ou particulares.
Essas casas de assistência eram, porém, de organização
defeituosa e pouco eficiente.
O Príncipe Perfeito que foi o imperfeito rei d. João II, a
par da sua vida tumultuosa que culminou no homicídio do duque de Viseu e na execução de boa parte da fidalguia portuguesa, foi um avisado
administrador no tocante ao programa hospitalar do pais.
Pugnou pela centralização dos pequenos hospitais em
uma instituição única dotada de amplos recursos financeiros e técnicos.
Obteve do papa Sisto IV a Bula de 13 de agosto de 1429 que
autorizava o rei a reunir "em amplo e solene hospital dos pobres" todos os bens de estabelecimentos congêneres cujos proventos não excedessem
trezentos florins de ouro. Mais tarde conseguiu um Breve de Inocêncio VIII.
A pedra fundamental do Hospital Lisbonense de Todos os Santos
foi lançada a 15 de maio de 1492.
D. João não teve a ventura de concluir sua grande obra. No
seu testamento não deixou de mencionar aquela casa de caridade, concluída, com fausto, pelo seu sucessor e cunhado - d. Manoel, o Venturoso. Eis o
trecho testamentário:
Item porque minha tenção he mandar fazer pelo amor de Deus
hum sprital em Lisboa da advocação de todolos santos para remedio meu spretal, e corporale dos pobres e enfermos... mando que se faça na maneira
que he começado e a governança se faça como parecer bem o meu testamenteiro, o qual queira que pouco mais ou menos seguisse o regimento que se
them em Florença...
O hospital ficou concluído em 1501. Efetivou-se destarte o
plano centralizador de d. João II.
No Livro das Grandezas de Lisboa (Tratado Quinto, Cap.
V., pág. 223), frei Nicolau d'Oliveira, tratando "Do Hospital de Todos os Santos que se chama d'el Rey e de seu edifício grandezas e gastos",
escreve o seguinte:
"Nos dous terços antes mais que menos, que deste Recio
ficão liures do dormitorio dos Religiosos de São Domingos, fica situado o hospital de todos os Sanctos, a que vulgarmente chamão o hospital d'el'Rey,
pello auer mandado edificar el Rey, Dom João o segundo com sumptuosissima obra, e o acabou el rey Dom Manoel, e o dotou de muytas rendas, e
priuilegios. Esta obra e artificio do hospital está fabricada em figura de Cruz de quatro braços iguaes, ficandolhe em os quatro angulos quatro
claustros muy grandes, lageados de pedraria, e hum poço d'agua no meo de cada hum, tirando o claustro, sobre que cae a cosinha, que pera sua
limpeza fica o poço a hum canto. Tem mais alem destes claustros huma grande horta com muita agoa, naqual (alem da hortaliça, que se nella produz)
ha dous grandes tanques, em que se laua a roupa dos enfermos; e sobre esta horta a hum lado fica huma enfermaria de Religiosos Capuchos, onde se
vão curar os seus enfermos, e lhes dá o hospital todo o necessario".
As Misericórdias não são de origem portuguesa. Há notícias da sua existência na
China e em Florença antes de surgir a primeira confraria lisboeta. Consta a existência de tal Irmandade florentina a partir de 1350.
Ora, eram ativas as relações comerciais entre Florença e Portugal e neste último
país residiam numerosos e influentes florentinos em virtude das regalias e mercês concedidas aos oriundos daquela região, pela Carta de Afonso III
de 4 de abril de 1338.
D. Leonor, a fundadora das Misericórdias portuguesas, certamente se inspirou na
Misericórdia de Florença, pois o Compromisso das duas instituições tem diversos pontos de contato. Certos trechos destes estatutos denotam terem
sido traduzidos do italiano para a língua portuguesa.
Não é, pois, de estranhar que o preâmbulo da Misericórdia do Porto, de 1646,
tivesse abordado este problema e que Magalhães Basto, fazendo a história das Misericórdias portuguesas, conclua pela sua
origem florentina.
Rebelo da Silva, na História de Portugal (5º vol.), assevera que o
compromisso de Lisboa foi em parte modelado pelo de Florença.
Incontestável é, porém, que as Misericórdias assumiram grande desenvolvimento em
Portugal, espalhando-se por todos os recantos da metrópole e colônias. No Brasil, mais vigoroso impulso tomaram, constituindo-se em modelares
organizações de assistência aos desvalidos.
E o mais interessante é que, obedecendo ao mesmo tipo sistemático, na sua
organização geral, são como as Beneficências portuguesas semelhantes ou idênticas, mas inteiramente independentes quanto à administração técnica e
financeira.
D. Manoel, pondo em execução o plano de sua irmã, cuja influência fora decisiva
na sua ascensão ao trono, edificou obra suntuária, no estilo que lhe tomou o nome (estilo manuelino).
O terremoto de Lisboa, ao tempo de d. José, destruiu a casa e o arquivo. Ficou de
pé uma ala lateral que hoje forma o belo frontispício da igreja da Conceição Velha. em alto relevo, sobre a porta, figura a representação de uma das
faces da bandeira da Misericórdia: Nossa Senhora abrigando sob o seu manto bispos, monarcas e vassalos.
O arquivo da Misericórdia de Lisboa, consumido pelo fogo, foi reconstituído pelo
conde de Val de Reis, nomeado provedor por d. José, após o desastre.
O documento reunido em dois grandes volumes manuscritos, assinados pelo conde e
oferecido à Sua Majestade Fidelíssima, está ricamente encadernado em couro com aplicações em ouro. Fez parte da valiosa Biblioteca da Ajuda
transportada por d. João VI na frota em que viajou para o Brasil fugindo às hostes de Junot.
Encontramos o precioso documento na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional.
É o mais primitivo assento sobre a vida das Misericórdias lusitanas. Nele figura a relação dos primeiros donativos, entre os quais o de d. Manoel
(1:500$000), sua filha d. Maria (160$597), rainha d. Catarina (300$000), o do malogrado d. Sebastião (12$000) etc.
Há um quadro maravilhoso que perpetua, na tela, a fundação das Misericórdias
portuguesas: é o Fons Vitae, de autor desconhecido. Representa enorme taça, dentro da qual jorra o sangue de Cristo pregado na cruz. O
instrumento de martírio ergue-se ao centro da monumental peça sobre cujos bordos figuram, de pé, de um lado a Virgem Maria e do outro S. João
Batista.
Em torno da taça ajoelham-se, de um lado d. Manoel e seus filhos, entre os quais
os futuros reis d. João III e o cardeal d. Henrique. No outro lado aparecem a segunda esposa de d. Manoel e suas filhas. Mais ao fundo está d.
Leonor, instituidora das Misericórdias. Seguem-se doze irmãos, o provedor com o livro de compromisso e o arcebispo de Lisboa.
A tela é reputada como maravilhosa obra d'arte.
O compromisso pedia cem homens "de boa fama, sã consciência e honestidade, mansos
e humildes a todo serviço de Deus e da dita Confraria", cem homens cristãos "não de palavras, nem de línguas, mas por obra e em verdade". Socorrendo
os vivos e enterrando os mortos, rezariam, ainda, cinqüenta padre-nosso e ave-maria pela alma dos companheiros de ideal.
Orate pro invicem ut salvemini... Exigia o compromisso em suma: que os
condenados fossem acompanhados ao local da execução, com ladainhas, estimuladoras do arrependimento; que os irmãos, rezando, clamassem MISERICÓRDIA;
que se desse sepultura aos criminosos justiçados "porque a Misericórdia de Deus a todos abrange"; que se pagasse pela realização de missa para cada
finado levado a enterrar; que se cuidasse do corpo e da alma dos mortos e dos vivos; que se considerassem todos os irmãos iguais "posto que fossem
de desvairadas condições", que tomassem o exemplo "no Evangelho de N. S. Jesus Cristo Mathei, 20º capítulo, em que disse dos seus discípulos e
apóstolos que fossem humildes e que o maior fosse o menor servindo os outros que assim fazia ele por nos dar o exemplo"; que aceitassem todos os
cargos para que fossem nomeados sem nenhuma retribuição material pois o "prêmio e galardão viria de Deus Todo Poderoso"; que vivessem em perfeita
comunhão de almas e coração que os merecimentos das obras de misericórdia praticadas por um recaíssem sobre todos, como dizia São Paulo; alter
alterius onera portate; que ouvindo das ruas e praças da cidade a campainha da Confraria, chamando os irmãos, todos deveriam acorrer ao
chamamento.
Santa Isabel era a padroeira da irmandade. Em 2 de julho reuniam-se os irmãos na
capela da Misericórdia e elegiam 13 dos seus companheiros para administrar a irmandade durante um ano, um deles assumindo o cargo de provedor.
Provedor e oficiais reuniam-se duas vezes por semana para "fazer conselho,
despachar petição de pobres e presos, tratar do livramento destes e distribuir esmolas aos mendigos que aparecessem". Nos outros dias, os oficiais
levavam esmolas às "casas dos doentes, aos pobres envergonhados, à cadeia e aos hospitais". A comida fornecida aos presos consistia de uma posta de
carne e meia canada de vinho, aos domingos "que lhes abaste até quarta feira" e meia canada de vinho e pão, na quarta-feira, "que lhes abaste até
domingo".
Cuidava especialmente a Misericórdia dos justiçados: "Os desgraçados que iam
morrer pelos seus crimes deviam ser acompanhados, desde a enxovia até o lugar do suplício, pelos irmãos da Misericórdia, envoltos estes em
balandraus negros, aa entoar ladainhas, formando longo préstito com padres, bandeira e cruz alçada, tochas e círios. Consolariam os padecentes
espiritualmente com orações, corporalmente com doces e cordiais. Assistiriam à execução; à noitinha desceriam o cadáver da forca, deposita-lo-iam
na tumba e leva-lo-iam a enterrar; porém se a condenação fosse para sempre, o condenado continuava a bambolear-se nos ares, sinistramente
até que chegasse o dia de Todos os Santos, data em que a Irmandade, em procissão, iria recolhê-lo ou levantar do solo e dar sepultura às ossadas,
que os cães não tivessem ainda devorado".
É horrível pensar no que se passava. Além da pena de morte, punição bárbara que a
civilização há de eliminar e que no Brasil felizmente não existe, a lei nos tempos anteriores à fundação da Misericórdia exigia que os corpos dos
condenados para sempre permanecessem, no local da execução, insepultos, servindo de pasto aos corvos e cães. Penas severas seriam aplicadas a
quem por piedade ou parentesco ousasse tocar no cadáver para lhe dar sepultura.
Parece incrível que mãos humanas tivessem escrito um tal preceito e entes humanos
o executassem.
E assim rezava a autorização do rei:
"Nós El rei fazemos saber
a quantos este nosso Alvará uirem que nos apraz auendo asy por serviço de Deus nosso Sr. que a Confraria da Santa Misericórdia Dagora nouamente
feita emesta Cidade possa tirar os justiçados da forca desta Cidade e Ossadas delles por dia de todos os santos de cada hum año e soterrallos nos
cimiterios da dita confraria e isto para sempre em cada hum año. (Por isso) notificamos e por este mandamos as nossas justiças da dita cidade que
se não ponham a este duuida sem embaraço algum porque asy nos praz feito em Lisboa em dous de Nouembro Antonio Carneiro o fez, no año de mil
quatrosentos e nouenta e oito. - Rey".
E acrescentava:
"E asy mesmo se teeraa
esta maneira acerqua dos Justiçados esquartejados, cujos quartos son postos aas portas da cidade, e assy dos membros daquelles em que se faz
justiça que estam no pelourinho ou em outras quaesquer partes, a que depois de feicta justiça a tres dias hiram os dictos hoficiees com muyta
devoçam pellos dictos membros e hos tiraram e trazeram a enterrar no cimiteyo da dicta confraya."
Primeira página do
Compromisso da Misericórdia portuguesa de 1498-99. Faz parte do Arquivo da Misericórdia do Porto
Imagem publicada com o
texto, página 19
Portal e duas janelas
laterais da primitiva Misericórdia de Lisboa edificada por d. Manoel e concluída por seu sucessor a 25 de março de 1531. Era a capela do Espírito
Santo, única que resistiu ao terremoto de 1755. D. José mandou-a reconstruir para a Igreja da N. S. da Conceição. Ainda se observa um alto-relevo
representando N. S. da Misericórdia, abrigando, sob seu manto, reis, bispos e irmãos da confraria. Esculpido em pedra, este belo grupo foi
vandalicamente demolido em 1813 e substituído por uma grade para... dar mais luz
Imagens publicadas com o
texto, página 23 |