Ilustração do cartunista Seri, publicada com a matéria
IMAGENS DE UM MUNDO SUBMERSO
O Grupo Cidade de Santos e o seo Arthur
Nelson Salazar Marques (*)
Colaborador
Lembrança de infância é
lembrança que fica. Memória de criança é igual a fita cassete virgem que vai tudo gravando em sua banda magnética e depois a remete à posteridade
com uma nitidez assustadora. E é com essa nitidez assustadora que revejo agora o Grupo Escolar Cidade de Santos, minha primeira escola...
Ali fui eu introduzido no mundo mágico das palavras e dos livros, um tipo de
starting point de ignição permanente que me arremessaria a alturas nunca imaginadas. Muito poucas pessoas falaram ou escreveram sobre o Grupo
Cidade de Santos e isto é lamentável porque ele foi o grande marco da educação santista em termos de modernidade. Construído e entregue pela
Companhia Docas de Santos durante a gestão do dr. Ismael de Souza ali por volta de 1940, ele resgatou aquele Macuco bravio à civilização.
O Macuco em fins da década de 30 e começo da de 40 era ainda um imenso areal selvagem
recortado por valas que corriam barulhentas e românticas a céu aberto repletas de peixinhos dourados que faziam o encanto da molecada. As imensas
chácaras de japoneses tiravam daquelas áreas descampadas toda a idéia de arruamento e em muitos lugares caminhávamos por trilhas abertas pelo
constante bater de pé no solo coberto de capim-gordura. Andar por ali cansava porque os pés afundavam na areia fofa. O canto dos pássaros ressoava
por aquelas vastidões desérticas e o seu eco ia longe porque os campos eram abertos.
E nessas trilhas, lugares de passagem obrigatória dos escassos habitantes daquelas
regiões inóspitas, nós fazíamos um xaveco. O que era afinal de contas um xaveco? Era assim tipo de pega-troxa, como se dizia na
época. Abríamos um buraco de razoável fundura no centro da trilha e o enchíamos de água até as bordas. A boca era trançada por hastes e bambu e
recoberta com folha de jornal. Depois cobríamos tudo com areia do caminho, de tal modo que era impossível saber que ali havia um xaveco.
Então alguém era escalado para ficar de longe num posto de observação para anunciar a
aproximação da vítima e essa aproximação era revelada por um canto de carriça emitido por um garoto que se especializara em canto de pássaro. Esse
garoto chamava-se Fernando e por onde quer que ande agora eu o felicito pela excelência de sua imitação. Fernando era um perfeccionista e treinava
dia e noite, chegando a um tal grau de perfeição que seu canto confundia as próprias carriças, deixando-as desorientadas e confusas.
Ao ouvirmos o canto da carriça, púnhamo-nos de prontidão porque alguma coisa ia
acontecer. E muitas vezes era possível ouvir o baque amortecido pela água, seguido de gritos de surpresa e raiva. Palavrões naquele tempo não eram
usados em público, de maneira que os propostos naquele tempo vinham em linguagem limpa e com os pronomes bem colocados. Era notável a padronização
da linguagem naquela época: menino e velho, de um modo geral, falavam da mesma maneira. Gíria praticamente inexistia como meio de comunicação.
Do Bairro Chinês eu trouxe apenas duas: laúsa e tripas. Dizer alguém:
"Deixa de conversa, seo laúsa", era ofensa grande e acabava em briga. Ali por volta de 1943, acredito, surge o sambista Jorge Vieira e vai
alterar a fala jovem brasileira, colorir a sua linguagem. "Tu não te mancou?". "Eu quero é rosetar", foram inseridos no linguajar nacional. Mas a
grande ruptura mesmo, no campo da linguagem, viria com os anos loucos da década de 60.
Mas entre 1939 e 41 toda a região compreendida pelas ruas Frei Francisco Sampaio
(nosso quartel-general, onde essas estratégias eram cuidadosamente planejadas), Castro Alves, Benjamin Constant, Álvaro Alvim e Avenida Pedro Lessa,
era um campo minado por esses xavecos, e andar por ali não era risco pequeno, e a coisa era tão bem feita que às vezes nós próprios caíamos
nessas armadilhas. Nós criamos ali uma espécie de quadrilátero das Bermudas.
E então veio o Grupo Escolar Cidade de Santos e acabou com aquele reinado. E eu estou
certo de que nós, garotos daquela época, houvéramos sabido que aquelas muralhas em ascensão iriam por fim ao nosso mundo, teríamos ido lá à noite,
às centenas, e igual à Penélope, da Odisséia de Homero, teríamos desmanchado aquelas paredes que os pedreiros erguiam durante o dia e adiado
por mais uns três anos a destruição de nosso pequeno mundo de criança.
Mas isso nós não sabíamos e o Cidade de Santos ficou pronto. Era um edifício
majestoso. O Cidade de Santos deu um novo status ao Macuco. O prédio tinha um revestimento original que nos deslumbrava. Era uma argamassa
meio granulada pontilhada de grãos de um calcário polido e aquilo brilhava intensamente ao ser banhado por qualquer tipo de luminosidade, dando ao
edifício um aspecto de coisa viva. Em Santos eu só havia visto coisa igual no prédio do R. Monteiro, ali na esquina da Rua Itororó com General
Câmara. R. Monteiro, o primeiro esboço de um arranha-céu que Santos teve, a nossa primeira construção funcional à maneira americana.
O Grupo Escolar Cidade de Santos revolucionou o conceito de ensinar em Santos e logo
assumiu a vanguarda no campo experimental do ensino. Era um palácio de pisos de mármore em que a arte estava presente em todos os detalhes. Classes
amplas, corredores imensos, árvores, gramados verdes e playground. A educação associada à distração e ao contato com a natureza.
O Cidade de Santos trouxe para Santos aquela concepção global de aprendizagem:
esporte, entretenimento, alimentação e desenvolvimento intelectual. Aquilo mais parecia um campus universitário com os seus gramados e jardins.
O Rotary Clube, com Alceu Martins Parreira à frente, estendeu
as suas asas protetoras por sobre aquela escola e, tomando-a como modelo da cidade, fazia ali promoções notáveis, incluindo nelas concursos sobre
Martins Fontes. Lembro-me de ter visto ali Lincoln Feliciano recitando em grande estilo A Dança dos Tangarás, de Martins Fontes. De outra
feita, fomos visitados por Arnaldo Pescuma, um cantor romântico que havia perdido a visão. Pescuma andou de classe em classe e cantou uma canção. Em
minha sala ele cantou Nervos de Aço, de Francisco Alves.
Naquela época a co-educação, meninos e meninas estudando juntos, ainda era tabu.
Menino ficava de um lado. Menina ficava de outro. Juntos, na mesma sala, é que nunca. De manhã as classes eram de meninos e à tarde de meninas -
pelo menos no início era assim. Mas já era possível ver-se mesmo no período da tarde algumas classes em que o sistema de co-educação começava a ser
tentado.
O Cidade de Santos transformou-se num vasto campo experimental da educação santista.
Exumo lembranças, nomes que flutuam no espaço desta cidade e atraídos para a minha órbita gravitacional. Professora Ada La Scala, Enedina, Izabel,
Isaurina, Vera de Souza, Elaine, Iperoig, Lurdes, os inspetores Hélio e Maurício, a servente Adalgiza. Ali formou-se uma elite pensante do Macuco,
homens que se distinguiram na vida da cidade. Albino de Oliveira e o Gordo Joaquim.
Havia também Álvaro Militello, sentávamo-nos lado a lado. Militello, cuja morte senti
fundamente, projetou-se mais do que todos nós nas lides forenses. Penso agora naquela gente, no seu amor ao estudo sério, na sua disciplina, no seu
patriotismo. E não sei se exagero, mas avanço um ponto de vista. Muitos daqueles adolescentes egressos da escola primária sabiam mais do que alguns
estudantes universitários de hoje.
Mas este trabalho ficaria incompleto se eu não fizesse menção à sua figura maior:
Arthur Bittencourt de Moraes, o seo Arthur. O que posso falar eu hoje, quase 50 anos já decorridos, daquela figura singular que deixou na
memória, de todos que passaram pelo Grupo Escolar Cidade de Santos, marcas fortes e lembranças inesquecíveis?
Eu diria que ele era o protótipo do grande homem que tinha missão a cumprir e a
cumpria a risco. As veleidades e fraquezas de procurar agradar estavam muito acima daquele homem. Ele tinha um conceito duro de justiça e, porque
colocava a sua tarefa num plano muito elevado, esperava que os outros também assim o fizessem.
Muito aluno que ensaiava bagunça saiu de sala de aula puxado pela orelha e conduzido
ao seu gabinete pela sua mão firme. O seo Arthur era um homem magro, circunspecto, sisudo no desempenho de sua função. Em quatro anos, só o vi rir
algumas vezes, um riso discreto. A sua só presença infundia respeito na garotada e isso fazia do Cidade de Santos uma escola disciplinada.
Depredação não havia, papel no chão nem pensar.
Um dia por mês a dona Adalgiza vinha com um pequeno garrafão de tinta encher os
tinteiros que nós usaríamos para fazer as provas mensais. Era uma hierarquização e disciplina de primeiro mundo. O aluno podia fazer uma bobagem e
impor à escola qualquer dano, mas teria de assumir o que fez, pagar por sua ação.
E é triste vermos hoje a que ponto chegou a escola brasileira, principalmente a escola
pública paulista, onde educadores sem vivência alguma da Educação, educadores de gabinete, homens da USP e da Unicamp, doutores em teorias,
introduziram nas escolas a permissividade como um símbolo de modernidade.
Há muita gente que pensa que liberdade é bagunça e democracia permissividade. Oh, será
que essas criaturas não percebem que o Universo é regido por leis inflexíveis, imutáveis, e que qualquer desvio da complexa engenharia celular cria
monstrengos? Que diabólica concepção das coisas que vê no caos uma ordem superior. Que doentia persistência pode apoiar o que hoje está aí em
matéria de educação pública?
Entrar hoje numa escola pública é o mesmo que entrar num mercado persa: alunos de
short e bermudas, pés sujos à mostra, sovaco fedendo, camisetas cavadas ou sem camiseta nenhuma, depredando, enchendo as salas de aula com
símbolos da maior pornografia, usando palavras de baixo calão, ofendendo professores grosseiramente, certos da impunidade completa, certos de que
passarão de ano sem estudar. E tudo isso sob os olhares complacentes dos diretores de escola, pelo menos da maioria dos diretores de escola.
Não sei se o seo Arthur era casado, se deixou descendência. Mas ele era um
homem notável, por quem tive grande admiração. Ele era, coisa rara neste país leviano e cheio de gente que só busca "fazer média" sem assumir em
plenitude o que faz, um homem que se propunha a fazer alguma coisa e a fazia bem. Em quatro anos que lá estive era o primeiro a chegar e não consta
que tivesse faltado uma só vez. Ele era um diretor que tinha um profundo respeito pelos professores.
Arthur Bittencourt de Moraes era um homem singular no agir e no... vestir. Trajava
sempre um terno escuro... azul-marinho ou cinza, gravata e não raro vestia um colete. Seus sapatos eram de verniz preto e suas calças nunca perdiam
o friso. Outra coisa notável é que nunca o vi andar de bonde, dependurado num estribo ou mesmo sentado. Ele caminhava ao longo da Avenida Senador
Dantas ereto e com grande dignidade.
Arthur Bittencourt de Moraes parecia uma personagem saída das páginas de Hemingway.
Ele tinha aquele sentido de dignidade estóica de um Santiago em O Velho e o Mar, para quem a tarefa a realizar importava mais do que a
própria vida. E eu acho que aqui, agora, eu estou tocando cordas íntimas, aquelas lembranças profundas que, semelhantes à brasa, cobertas com cinzas
e aparentemente adormecidas, despertam um sopro de vento.
Mas eu não sei se ele está vivo ou se já morreu. Em 1965 estava eu tomando um chope
sentado a uma das mesas de um daqueles bares do Gonzaga, quando o reconheci à distância. Que eu o reconhecesse era explicável porque a sua figura
restava inalterada ao embate daqueles mais de 20 anos decorridos, mas ele a mim, isto é que é de espantar.
Mas já era um outro homem: desacorrentado da função de diretor do Cidade de Santos, já
era um outro homem. Estava de camisa esporte e o rosto todo abria-se num sorriso imenso. Abraçou-me com efusão e senti emocionado pelo inesperado do
encontro. Eu era uma espécie de época distante que vinha à sua lembrança. Disse-me que continuava no setor da Educação.
Mais de 40 anos se passaram sem que eu entrasse no Cidade de Santos. Então, em 15 de
novembro de 86, lá voltei eu na qualidade de eleitor da seção 78. Percorri aqueles amplos corredores, examinei a classe em que estudei. Um leve
traço da velha majestade ainda podia ser visto. Mas, coisa extraordinária: a figura do seo Arthur impregnava todo o edifício. Era como se ele
ainda estivesse ali agarrado à paredes e seus passos pareciam ressoar ao longo dos corredores e escadarias de mármore.
Há figuras assim que se mitificam no cargo que desempenharam e passam a representar o
próprio cargo. Principalmente em educação. Quatro nomes me vêm à memória. Quatro nomes de diretores que se notabilizaram nas escolas que dirigiram:
professora Reny, na direção do Colégio dos Estivadores, Mary Clea, na direção do Primo Ferreira, Edésio Del Santoro, no
Colégio Canadá, e Arthur Bittencourt de Moraes, regendo aquela afinada orquestra que era o Grupo Escolar Cidade de Santos.
O que essas pessoas teriam? Competência? Dignidade do cargo? Carisma pessoal?
Independência nas atitudes? Ausência de servilismo e de espírito bajulatório? Eu não tenho as respostas.
(*)
Nelson Salazar Marques é professor de línguas e de Literatura Americana, delegado regional da UBE e da Academia Santista de Letras. |