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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Um dia no Miramar

Um dos articuladores do Movimento Modernista de 1922, Menotti del Pichia publicava regularmente suas crônicas no jornal santista A Tribuna. Em uma delas, na edição de 24 de julho de 1919, ele relatou como era um passeio domingueiro ao Cassino Recreio Miramar santista:


O Miramar, que funcionou de 1896 a 1940 no final da Avenida Conselheiro Nébias
Foto: História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco M. dos Santos e Fernando M. Lichti, 1986

No Miramar...

Menotti Del Picchia

Domingo. O mar era azul; um veleiro, no estuário manso, procurava o largo, como uma grande borboleta de asas espalmadas. O auto rodava nas praias, de areia escura, plúmbea, elástica e lisa como asfalto.

Fui ao Miramar. As crianças dançavam.

Pedi um wysky e, amesendando-me no bar, ao lado do dr. Fortes, comecei a examinar o garbo e a galanteria com que os fedelhos se iniciavam para as justas fidalgas dos salões senhoriais e iluminados.

- Lindo lugar este, disse Fortes acendendo um charuto.

O garçon trouxe a bebida venenosa e cheia de delícias na sua cor de ambar desmaiado.

- Traze-nos soda.

Senhores fumavam no bar, palestrando. Senhoras lindíssimas, como só as há nesta bendita terra tropical e luminosa, acompanhavam, puxando-os pelos bracitos frágeis, os dançarinos bizarros e miudos, que passavam triunfantes entre a turba que os admirava. Bebês loiros e corados, como feitos de ouro e de auroras, abriam os grandes olhos azuis e sorridentes, numa alegria inquieta.

Havia-os quase sisudos, compenetrados da sua missão de cavalheiros, arrastando um passo mal seguro, que a custo continha a irreverência dos saltos e das cabriolas. Procuravam já o aplomb dos gentlemen; punham, na carita jovial e cheia de saúde, uma serenidade artificial e precoce, que lhes aumentava a graça juvenil das fisionomias radiosas. Meninas galantes, já intuindo a graça das atitudes adamadas, espalhavam sorrisos magníficos pelo salão, onde papagueavam os mais pequerruchos; uns petizes, ousados e traquinas, fugindo à vigilância das mamãs que a custo continham o riso, cabriolavam nas cadeiras, como pássaros escapos à gaiola.

Por tudo uma deliciosa vida de mocidade, um espoucar de risos álacres, uma ânsia de divertir-se, de cantar, de gastar as energias numa grande expansão de jovialidade livre como a luz e como o ar!

- Vês como são felizes, dizia Fortes, bebericando o seu veneno, com uma gula calculada de sibarita. As crianças precisam de liberdade e de alegria como os pássaros de ar e de sol.

Demais, este salão é uma escola. Para aqui só vêm espíritos educados, gente fina. Encurralar uma criança num quarto é o mesmo que prender uma corça numa jaula. A criança presa só aleita maldades; somos todos ruins, ingenitamente; precisamos quebrar na sociabilidade, na alegria coletiva, as arestas iniciais do nosso espírito; a comunhão da vida pole as rebarbas, lima as anfractuosidades, acepilha, brune. A criança é como a vergôntea: é mister que se trate com o carinho com que um jardineiro trata de uma roseira...

Tocava agora orquestra um tango argentino. O violinista, hábil e artista, tirava ao instrumento sentimental e mavioso, ritmos e tonalidades olímpicas.

- E a música? E o bem que faz à educação artística da criança a beleza desta música incomparável. O ouvido se afina e se habitua à graça das cadências puras; a intuição poética deriva da compreensão exata e integral da música. Há, nesses petizes, gênios e talentos em embrião. Estes acordes e estas alegrias são como um adubo espiritual para estas almas nascentes. Os pais devem compreender isto.

Perto de mim, um senhor gordo, com uma enorme medalha de ouro pendurada na corrente, comentava com um cavalheiro escanifrado e ruivo:

- Isto é um horror! Os pequenos quiseram vir a todo o custo. Berravam como possessos e não houve outro recurso senão trazê-los. Para mim isto é uma massada...

O dr. Fortes fulminou-o com um olhar cerberino. Fisgou o charuto entre os lábios, tirou uma fumaçada e ponderou:

- Esse burguês é impertinente. Por preguiça ou pelo prazer de ir bebericar numa venda, quer roubar às suas crianças saúde e alegria. Isso é um crime, até!

Eu levantara-me. Os pequerruchos dançavam agora uma valsa lânguida como um latejo de vaga. Saí com o dr. Fortes. O mar continuava azul e o veleiro não era mais que u'a mancha indeterminada e negra no horizonte luminoso.

Pensei que o dr. Fortes tinha razão. Era um crime impedir que essas crianças se divertissem. E imaginei então o berreiro que fariam os filhos do burguês, anafado se, nesse dia radioso, em vez de estarem a saltar e dançar naquele salão esplêndido, os tivessem prendido no recinto estreito da casa, enquanto fora, nas ramas, os sabiás, em plena liberdade, voavam e cantavam sob a glória esplêndida do sol!

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