Biscardi levanta todos os dias por volta das 5 horas
na esperança de voltar com o seu barco carregado de peixes
Foto: Édison Baraçal, publicada com a matéria
PESCA ARTESANAL
Sobrevivência difícil
Na Ilha Diana, onde a atividade está praticamente extinta, a rotina de trabalho
exige sacrifício e não proporciona o suficiente para garantir o sustento dos moradores
Carlos Ratton
Da Reportagem
A vida é lenta, mas começa cedo na Ilha Diana, reduto
praticamente restrito a pescadores, localizado no Canal do Estuário de Santos. Por volta das 5 horas, às vezes até mais cedo, Vicente Biscardi, de
72 anos, se prepara para mais um dia de trabalho duro, principalmente para quem vive exclusivamente da pesca artesanal - atividade realizada única e
exclusivamente pelas mãos do pescador e quase extinta nos dias de hoje.
A rotina do velho pescador segue um verdadeiro ritual. Antes de pegar a rede e subir
em um barco de madeira com seu cachorro Papi (um vira-lata preto e branco manso, considerado o melhor amigo de Biscardi), ele passa na Capela
Bom Jesus da Ilha Diana e faz uma oração, pedindo um bom dia de pescaria.
As preces nem sempre são atendidas. Ao final do dia, depois de quase 12 horas no mar,
o resultado é insatisfatório mas, valendo-se do velho ditado A esperança é a última que morre, o velho pescador já pensa no dia seguinte e
sonha com sua embarcação repleta de peixes.
"Viver da pesca se tornou uma tarefa praticamente impossível. Consumimos uma parte do
pescado e vendemos a outra parte para poder comprar outros tipos de alimentos. Antigamente vendíamos tudo e mal dava para entrar no mangue em função
da grande quantidade de caranguejos".
Hoje, segundo Biscardi, não existe espaço para o pescador artesanal. "O mangue foi
invadido por centenas de pessoas e a pesca de arrasto está acabando com os peixes do estuário", comenta.
Biscardi, que aprendeu o ofício com o pai e, aos 12 anos, largou a escola para
sobreviver da pesca, está literalmente cansado da luta. Com 60 anos de mar, o pescador afirma que a atividade, dentro de mais alguns anos, somente
vai ser encontrada em velhos livros de História ou nas canções poéticas brasileiras.
"Eu sobrevivo da pesca, mas não aconselharia um menino a escolher um destino
semelhante ao meu. Às vezes, fico olhando um pai ensinando o ofício ao seu filho e me dá vontade de aconselhá-lo a mudar de idéia. Deixei minha rede
a noite inteira no canal e hoje, quando a tirei da água, só quatro peixes estavam presos. A pesca artesanal acabou porque o bicho homem acabou com a
natureza", conta, ao lado da esposa Lúcia Querino.
A dona-de-casa, por sinal, é a grande testemunha da vida sofrida do marido. "Ele sai à
noite e de madrugada, debaixo de chuva e no meio do frio, em busca do pescado, que muitas vezes é vendido a R$ 3,00 o quilo, enquanto os
atravessadores, que não têm essa vida sacrificada, vendem o peixe pelo dobro do preço. Tem gente que prefere pagar R$ 20,00 por um quilo de peixe em
uma peixaria bonita, do que R$ 3,00 na Ilha Diana", desabafa.
FRUSTRAÇÃO |
"Eu sobrevivo da pesca, mas não aconselharia um menino a escolher um destino semelhante ao meu"
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Vicente Biscardi
Pescador artesanal
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Jovem - Mas a vida dura do pescador artesanal não é restrita aos mais velhos.
Eduardo Hipólito Filho tem 32 anos e também começou na atividade aos 12. Casado, com uma filha de 9 anos para criar, o pescador teve que comprar um
bote de alumínio e um motor de popa para poder competir com os pescadores mais abastados.
"Não tive outra alternativa. Com esse equipamento, posso estar em vários lugares em
pouco tempo e defender até dois salários mínimos por mês (R$ 520,00). Quando parei de estudar para sobreviver da pesca, na 6ª série, a atividade
dava dinheiro. Hoje, a luta é grande. Quem utiliza um barco a remo não sobrevive", acredita.
O jovem pescador afirma que o desemprego fez com que muitas pessoas migrassem para a
pesca, tirando o espaço do artesanal. "Além disso, os pescadores profissionais, que utilizam equipamentos sofisticados, não estão deixando que os
peixes entrem no canal. A fiscalização não funciona. Não dá para sobreviver apenas com um barquinho a remo e uma pequena rede. Hoje, quem não
investe em equipamento morre de fome".
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80 por cento dos pescadores artesanais são semi-analfabetos
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Federação quer incentivar a criação de pescados
A vida de Vicente Biscardi e de Eduardo Hipólito Filho nada mais é
do que um exemplo da realidade de milhares de pescadores artesanais da Rebião Metropolitana da Baixada Santista.
Okida: financiamento
Foto: Édison Baraçal, publicada com a matéria
Segundo
o presidente da Federação dos Pescadores do Estado de São Paulo, Tsuneo Okida, existem dois tipos de pescadores na área litorânea: o que possui
vínculo empregatício e o artesanal, que é autônomo e utiliza praticamente todo o resultado de seu trabalho para sustentar a família.
Embora represente apenas o primeiro tipo de pescador, Okida, que esteve recentemente em
Santos, participando do V Congresso Brasileiro de Pesquisas Ambientais e Saúde, revela que a atividade artesanal agrega atualmente mais de 2.700
pescadores na região.
"A maioria vive com o equivalente a um salário mínimo (R$ 260,00) mensal e 80% são
semi-analfabetos. A atividade passa de pai para filho mas, agora, estamos tentando fomentar junto a essa comunidade o abandono da pesca extrativista
e a adoção da aqüicultura (criação de pescados), que vem crescendo no País", afirma.
Ele explica que, no mês passado, foram instituídas as novas normas para utilização das
águas de domínio da União.
"Isso vai propiciar a elaboração de projetos que fomentem a aqüicultura. O canal de
Bertioga, por exemplo, é um excelente lugar para esses projetos", acredita.
O dirigente salienta, ainda, que o Governo Federal instituiu um programa de
financiamento, por intermédio do Banco do Brasil, que vem servindo para que alguns pescadores reformem suas embarcações. Há, também, segundo ele,
financiamento para a compra de equipamentos de pesca.
Okida revela que, para poder ter acesso ao financiamento, o pescador precisa comprovar
que é artesanal, por intermédio de um documento expedido pela Secretaria de Pesca e Aqüicultura do Estado. "O Centro de Atendimento Técnico
Integrado (CATI), da Secretaria da Agricultura, é o órgão responsável por viabilizar o financiamento".
País tem cerca de 30 mil embarcações, sendo a maioria usada para a prática da pesca
artesanal
Foto: Édison Baraçal, publicada com a matéria
Atividade representa 60% da produção nacional
Segundo publicado no site Mercado da Pesca, especializado no assunto, o Brasil possui
cerca de 30 mil embarcações e a grande maioria é utilizada pela pesca artesanal. São barcos, jangadas, canoas que, embora pequenos, respondem por
60% de toda a produção de pescados nacional, que é de 500 mil toneladas anuais. Cerca de dois milhões de pessoas trabalham na atividade, espalhadas
pelos 8,5 (N.E.: 8,5 mil) quilômetros do litoral brasileiro.
Em recente entrevista, o ministro de Aqüicultura e Pesca, José Fritsch, da Secretaria
Especial de Aqüicultura e Pesca (Seap) - criada pelo Governo Federal para desenvolver o setor pesqueiro brasileiro - disse que o Governo está
trabalhando em programas para incentivar e aumentar a produção pesqueira nacional. Além de fortalecer a atividade, a intenção do Governo Lula,
segundo frisou, é valorizar os trabalhadores desse setor, que há anos vem sendo esquecido.
Conforme o ministro, o Governo Federal irá trabalhar para dar condições de produção às
colônias de pescadores, às associações e cooperativas, por intermédio da implantação de fábricas de gelo para os pescadores artesanais e melhoria de
terminais pesqueiros.
Um dos objetivos é diminuir a distância entre o pescador e o consumidor, visando não
só o aumento da produção e da venda, como também a diminuição dos custos do pescado para os consumidores.
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José Fritsch dia que Governo quer ajudar o setor
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Projeto - Outra iniciativa da Seap é a apresentação, ao Fundo Global para o
Meio-Ambiente, de uma proposta para a criação de um projeto já intitulado Iniciativas de Sustentabilidade para a Pesca Artesanal, Biodiversidade
Marinha e Manejo Participativo.
O objetivo é promover a sustentabilidade das pescarias artesanais e fomentar novas
tecnologias para o aproveitamento do pescado, assegurando a melhor distribuição dos benefícios decorrentes da atividade e a conservação dos recursos
marinhos costeiros.
O projeto demandará 18 meses de trabalho a partir de estudos que mapeiem a situação da
pesca artesanal e as demandas de construção de um sistema nacional de manejo e de ações para estimular a exploração sustentável dos recursos
pesqueiros. Estima-se que o financiamento para o projeto chegue à casa dos US$ 5 milhões (cerca de R$ 15 milhões).
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Pesquisa aborda a captura acidental de animais
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Bióloga desenvolve estudo em comunidade de Praia Grande
A bióloga Carolina Pacheco Bertozzi desenvolveu recentemente um estudo sobre a pesca
artesanal numa comunidade em Praia Grande. O estudo deu origem à Organização Não-Governamental (ONG) Projeto Biopesca, que conta com duas biólogas,
um oceanógrafo e duas veterinárias para monitorar 20 embarcações de pequeno porte em três comunidades pesqueiras da região.
A pesquisa de Carolina se tornou uma dissertação, defendida no Instituto Oceanográfico
da Universidade de São Paulo (USP), abordando o trabalho dos pescadores e a captura acidental de animais marinhos não-visados pela pesca.
Segundo a bióloga, a pesca artesanal é pouco estudada no Brasil e não há estatísticas
precisas sobre a atividade. Ela conta que na Região Sudeste, por exemplo, inexistem dados da produção artesanal, sendo necessária uma coleta de
informações para desenvolvimento de uma política para o setor.
A bióloga acompanhou a saída para o mar dos pescadores entre 1999 e 2001 e pesquisou
as características sociais do grupo. O estudo aponta a desestruturação da comunidade pesqueira. "Antes, famílias inteiras estavam envolvidas,
transmitindo o conhecimento da pesca e uma tradição de respeito ao mar. Hoje, a atividade tem sido feita por pessoas alheias a essa tradição, que
pescam sem conhecer o mar", afirma no estudo.
Ainda conforme a pesquisadora, o impacto da pesca artesanal na
população de peixes da região é pequeno. O maior problema, segundo conta, é a pesca de camarões em escala industrial, com o uso de redes de arrasto.
A malha retém os peixes mais jovens, reduzindo a reprodução das espécies.
(Agência USP de Notícias)
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